Lisboa tem "escondido" um Hospital de Bonecas que é um grande quarto de brinquedos
Era uma vez uma senhora velhinha que há muitos anos (ainda não havia automóveis) se sentava a fazer bonecas de trapo à porta da sua pequena loja de ervas secas".
Tal como nos contos literários, as histórias da vida real também podem começar por "Era uma vez". É uma forma de levar o imaginário do leitor a períodos que não conheceu, a cenas que não viveu e a histórias que podem ser de faz de conta. Ou não. E é essa a beleza da imaginação de cada um.
E motivos para escrever um livro ou regressar à infância é o que não falta quando se sobe ao primeiro andar do número 7 da Praça da Figueira, em Lisboa. É ali que está instalado o discreto Hospital de Bonecas.
São centenas de exemplares de modelos de vários feitios, idades, tipos e vestes. Uns de porcelana, outros de trapos, mais antigos ou mais recentes. Uns com riscos, com menos uma perna - todos a precisar de uma intervenção especializada para voltarem a ter o esplendor de outrora.
Regressemos por momentos à descrição do Hospital pela sua própria apresentação: "Assim, de vez em quando, a manhã era passada junto à D. Carlota (era assim que se chamava) a espreitar as sonecas que ela ia fazendo. Depois conversando sempre se ia contando os males das bonecas e ela a pouco e pouco lá as ia consertando."
Hoje já não é assim: não há ninguém a dormitar junto à pequena porta da antiga ervanária que se transformou em hospital, e as crianças também não param por ali. Aliás, nem passam, pois devido à pandemia provocada pela covid-19 as visitas caíram a pique acompanhando o "desaparecimento" dos principais curiosos sobre o que se passa nos quartos - adaptados a "enfermarias" - do primeiro piso deste prédio de uma das praças mais visitadas de Lisboa: os turistas que até março chegavam à capital em grande número, com muitos a ter como visita obrigatória este hospital sui generis e que tem mais atenção além-fronteiras do que no seu país, como se comprova pelas reportagens de, por exemplo, CNN, Reuters, jornais ingleses, australianos, etc., cujos textos estão expostos em algumas paredes.
Toda esta história e a divulgação além-fronteiras deixa a atual diretora do hospital orgulhosa de uma história que começou com a D. Carlota e foi passando de geração em geração até se chegar a 2020.
"Isto é uma coisa de família. Não me pergunte como chegámos aqui, acho que foi uma coisa do destino. Hoje é mais uma missão do que um negócio, apesar de termos de ter dinheiro para pagar as contas. Mas sentimos a obrigação de tomar conta delas [bonecas]."
É com carinho e orgulho que Manuela Cutileiro recebe os visitantes no seu hospital. Tem a companhia de Isabel Francisco e Marta Machado nesta, como lhe chama, missão. Recebem as bonecas, encaminham-nas para a "enfermaria", onde lhes dão o tratamento necessário para que quando regressam aos seus donos voltem a ser a "boneca".
E o primeiro passo de um "doente" começa como qualquer doente: com o preenchimento da ficha com o número da cama. "Corresponde à ficha que é feita quando entram", explica Manuela enquanto vai fazendo de cicerone pelas salas deste piso que é muito mais do que uma clínica, como vamos perceber mais à frente.
"Aqui começa o nosso hospital. É a sala onde temos as bonecas que vieram para arranjar e já estão prontas. São de porcelana, papelão, plástico antigo", conta, quando se entra na sala mais próxima da porta de entrada daquele andar.
Passamos para outra sala: "Aqui são as bonecas mais atuais, bonecas e peluches. Nós também arranjamos muitos peluches, desde os pequenos até aqueles ursos grandes que estão nas lojas da Natura; todos são nossos doentes."
Passeamos assim por salas com armários cheios de bonecas, de partes de bonecas que servem para substituir o que já não tem reparação. Armários que remetem para países onde Manuela nunca pensou chegar a fama do seu primeiro piso neste edifício da Praça da Figueira que em 1830 era uma ervanária - como se pode ler na inscrição por cima da porta da rua: Hospital de Bonecas - Ervanária Portuguesa.
CitaçãocitacaoO mais surpreendente foi um boneco que veio de Hong Kong para se arranjar.
"Recebemos muitas bonecas que vêm do estrangeiro, EUA, China, Austrália, de repúblicas que saíram da antiga União Soviética, da Rússia. Fazemos trabalhos para países que achávamos que não davam por nós. Mas para mim o mais surpreendente foi um boneco que veio de Hong Kong para arranjar", conta a nossa cicerone.
E como se explica esta procura? "Muitas vezes porque viram entrevistas que demos para os países deles ou passaram por cá. Graças a Deus temos tido várias divulgações, incluindo nas revistas dos aviões, quando se voa tem-se tempo para ler. Às vezes tem a ver com a própria mentalidade de cada país, com os seus hábitos. Por vezes, a dedicação a um boneco ou a um peluche é diferente em cada país." Apesar de muitos dos clientes serem internacionais, o Hospital das Bonecas também tem tratado "pacientes" nacionais: "Recebemos muitas que nos chegam agora pelo correio. Com a pandemia as pessoas movimentam-se menos."
Entre as "enfermarias" que é visita obrigatória como obrigatória é a foto que ali se tira: a sala onde está um armário com vários compartimentos e onde são arrumadas as diversas partes de bonecas que ajudam a recuperar as "doentes".
"Esta é, talvez, a sala mais representativa do nosso trabalho. Este armário é muito antigo e é sempre fotografado. Estas gavetinhas têm vários acessórios que são extremamente úteis para nós. Às vezes vem uma boneca, por exemplo, de porcelana com a cabeça partida, e nesses casos nós não restauramos pois sai mais caro. Mudamos a cabeça e ela volta para casa direitinha", conta.
Se é verdade que a principal função deste peculiar hospital é recuperar bonecas e depois devolvê-las aos donos, também é certo que, por vezes, a equipa de Manuela Cutileiro é surpreendida. "Vêm oferecer-nos muitas coisas e aceitamos tudo, esteja partido, estragado, limpo ou sujo. Achamos que se as pessoas nos veem trazer é por boa vontade. Há dias tínhamos uns noivos dentro de um saco aqui à porta, nem esperaram pela abertura. Deve ter metido um divórcio pelo meio, não tiveram coragem de deitar fora os noivos do bolo e vieram deixá-los aqui. Por isso aqui há as histórias mais estranhas e imprevistas", diz.
Além das áreas onde se recuperam os bonecos e peluches que aqui chegam, há uma zona histórica que se pode apreciar - cada bilhete custa 2,5 euros, apesar de atualmente não existirem muitos visitantes. A nossa anfitriã não lhe chama museu, não gosta dessa designação. "O que nós somos é um grande quarto de brinquedos. Um museu tem peças muito boas, muito especiais, muito referenciadas. Nós não, juntamos tudo, temos esta loucura completa, tanto nos faz que tenham uma perna doente ou um olho", explica Manuela Cutileiro.
É nesta zona que está a sala dedicada à anterior - cerca de duas dezenas de anos - função do primeiro piso deste número 7 da praça lisboeta: a escola que ali existiu.
"Nós sempre estivemos neste edifício, mas no quarto piso. Aqui estava a Escola 78, quando acabou aqui foi aí que viemos para baixo. E este cantinho tem curiosidades relacionadas com a escola. Aquele senhor de bigodes [aponta para um foto] era muito amigo dos meus avós, que sempre viveram neste prédio, e era o maestro Alves Coelho [compositor que ganhou fama no teatro musical], o pai do Alves Coelho Filho [autor de temas como Cartas de Amor e Olhos Castanhos]. Ele, Alves Coelho, foi diretor da escola", recorda a antiga educadora de infância que veio tomar conta desta missão familiar depois de se reformar.
DestaquedestaqueNeste hospital não há "doentes de primeira e de segunda" e encontra-se "todo um mundo".
É igualmente aqui que estão muitos objetos que fazem as delícias, pela surpresa que são para eles, dos alunos em visitas de estudo. "É interessante observar como acham divertido ver como eram as televisões - a preto e branco -, os telefones, às vezes perguntam para que servem as rodas que existiam nos telefones. Nunca pensaram que podia ser assim."
Surpresa que os oito netos de Manuela não têm, pois estão habituados a visitar - apesar de três viverem nos EUA e outros três na Holanda - e até ajudam a compor comprando brinquedos para a avó acrescentar nas vitrinas do seu "grande quarto de brinquedos", onde não há "doentes de primeira e de segunda" e onde se encontra "todo um mundo".