Gelado. Guerras de água. Rir com tanta força que se espirra pelo nariz. Bolachinhas no leite. Encontrar um cabeleireiro que ouve mesmo aquilo que queremos. A sensação de calma que se segue à constatação de se estar metido em sarilhos mas que já não há nada a fazer em relação a isso. Quantas coisas maravilhosas temos na nossa vida, se nos dermos ao trabalho de pararmos e desfrutarmos? E não serão essas pequenas coisas que dão sentido a isto tudo?, pergunta, entre risos e lágrimas, o protagonista do espetáculo Todas as Coisas Maravilhosas..A poucos dias da estreia, em janeiro do ano passado, havia apenas três bilhetes vendidos. Ivo Canelas sentiu alguma ansiedade. Era a primeira vez que o ator fazia um monólogo. Além disso, fazia-o por sua conta: foi ele que adaptou o texto do britânico Duncan MacMillan, em parceria com a poetisa e tradutora Margarida Vale de Gato; foi ele que criou todo o espetáculo, apenas com assistência na encenação de Dora Bernardo; foi ele que escolheu a música de Elis Regina e as outras músicas que são essenciais para contar aquela história. E apresentava-o no Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, longe das salas de teatro convencionais e dos habituais circuitos de público. Sim, a ansiedade era muita. "Então, decidimos oferecer tudo, convites para todos no primeiro dia e vamos ver o que é que acontece. E foi incrível. A partir desse dia esgotámos em non stop. O boca-a-boca foi muito forte", recorda.."A única vez que me senti uma rock star foi em Chelas, na altura do Fura-Vidas".Depois de janeiro, seguiu-se uma segunda temporada em setembro, com várias sessões extra, sempre esgotadas. E agora, depois da pandemia, mais uma temporada: começa em Leiria (16 de setembro), depois Barreiro (26), Lisboa (de 30 de setembro a 18 de outubro), Loures (6 de novembro), Porto (7 e 8 de novembro), Lagos (13 de novembro) - e outras datas ainda poderão surgir..Instagraminstagramhttps://www.instagram.com/p/CEuigUyBLgq/."Quando o li, pela primeira vez, o texto emocionou-me muito, senti logo uma grande empatia", conta o ator de 46 anos. "A forma como está escrito é falsamente simples, engana-nos a parecer que é a minha vida e consequentemente a vossa - o cão, a namorada, o casamento, o divórcio...Qualquer pessoa consegue relacionar-se com aquilo." Neste espetáculo o ator está sempre no arame, num equilíbrio instável. Entre verdade e ficção. "Foi mais um despir do que um vestir", diz ele, sobre a criação da personagem. "O rapaz não tem nome mas eu decidi que se me perguntassem eu diria o meu, sou o Ivo. O que agudiza ainda mais a questão: isto é teu, esta é a tua história? Não é, mas procuro não ter nada por cima que me proteja, para parecer mesmo que aquilo aconteceu." Não é muito diferente de fazer outra personagem qualquer, admite, mas como é um monólogo na primeira pessoa e o ator está muito exposto e próximo do público, interagindo com os espectadores, sem grandes efeitos, tudo ganha uma dimensão mais real..No final, não é raro haver quem queira falar com ele e partilhar alguma história parecida. "Surpreendeu-me a disponibilidade e a vontade de as pessoas quererem ouvir falar sobre este assunto e a partilha que fazem após o espetáculo tem sido altamente emocionante. Naquele pós-espetáculo as realidades confundem-se, a minha história e a história dos outros, a verdade e a ficção, não há tempo para reenquadrarmos as realidades, e há abraços que eu levo que me mandam para a 25.ª casa da emoção"..O texto, é preciso lembrar, fala de doença mental, de depressão e suicídio. É um tema difícil. Mas por isso necessário. Ivo Canelas falou com especialistas da linha SOS Voz Amiga e quis ter a opinião de psicólogos: "Há afirmações muito interessantes ao longo do texto que eu tinha de perceber se tinham valor psicológico ou se poderiam ser insensíveis. Eu posso falar assim quando o próprio texto diz que temos de ter cuidado ao falar deste assunto? E, sim, foi tudo validado.".O espetáculo, entre o drama e a comédia, entre a euforia e o desespero, permitiu-lhe explorar zonas diferentes da representação: "Duvido de que fosse capaz de fazer isto mais novo, ou pelo menos fazê-lo desta maneira. Há uma maturidade emocional que é preciso ter, uma experiência de vida, um grau de empatia que tens de desenvolver. Uma dimensão humana. No texto ele faz as perguntas e muitas vezes não sabe as respostas, mas está tranquilo com esse não saber. Acho que é esse o sítio, como pessoa, onde já cheguei.".Nos últimos meses, Ivo Canelas começou a fazer pequenos vídeos, que depois publica nas redes sociais, a ler textos diversos. "Foi durante o confinamento. Estávamos todos fechados e parados. Eu preciso produzir e deitar cá para fora, há um lado catártico no meu trabalho e tenho a sorte de, de cada vez que me acontece qualquer coisa, boa ou má, eu não ter de a meter numa caixinha e ir para o trabalho, antes pelo contrário, eu levo-a e aplico-a e uso-a e celebro-a ou apago-a, o que se justificar. Aqueles vídeos são isso. São textos de que gosto. É uma coisa muito individualista, sou eu que faço à minha janela, quando eu quiser, mas tem-me dado imenso prazer.".Também fotografa cada vez mais - um hobby de há anos - e em outubro vai ter uma exposição em Loures com 30 fotografias a preto e branco. Para o título escolheu Suspension of Disbelief, um conceito criado no século XIX por Samuel Taylor Coleridge que remete precisamente para aquela "suspensão da descrença" que acontece quando lemos um livro ou vamos ao teatro e que nos permite envolver-nos e emocionar-nos..Instagraminstagramhttps://www.instagram.com/p/CEHNR9bB6cw/.Para o próximo ano tem planos de fazer Cenas de Um Casamento, de Ingmar Bergman, com encenação de Rita Calçada Bastos, e está a trabalhar num projeto com o humorista Diogo Faro, que ainda não sabe bem o que será mas será seguramente algo bastante interventivo, que espelhe muitas das preocupações que ambos têm sobre os tempos que vivemos..Ivo Canelas fala disto tudo com um enorme entusiasmo, um sorriso largo, as palavras a atropelarem-se. Aconteça o que acontecer, todos os dias podemos descobrir uma nova coisa maravilhosa. O ator acrescentou recentemente uma coisa à sua lista: acordar com a Elis, a cadelinha de 3 meses, a olhar para ele, de orelhas arrebitadas, à espera de festinhas. Elis vai com ele para todo o lado, numa mochila que Ivo Canelas leva às costas quando anda de moto: "Se o espetáculo fala sobre aproveitar as coisas que parecem insignificantes, o confinamento deu-nos uma nova perceção disso. Ir à rua, dar um abraço. Essas também são coisas maravilhosas. A Elis está aqui como consequência dessa tomada de consciência. Eu sempre quis ter um cão mas achava que não estava preparado para assumir esse compromisso ou que não era o momento certo. Mas nunca sabemos o amanhã. Decidi que era agora. E tem sido mesmo uma coisa maravilhosa."