Há uma semana as equipas do bloco operatório central do Centro Hospitalar Universitário São João, no Porto, estavam a trabalhar. Só no sábado, fizeram 60 cirurgias. Na sexta-feira à tarde tinham feito 40. Neste sábado o ritmo vai ser o mesmo..No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central há consultas de oftalmologia ao sábado e vai haver também de neurocirurgia, endocrinologia, ginecologia e eventualmente de dermatologia e cirurgia geral. A atividade pode estender-se ao domingo também..No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte antecipam-se consultas, a produção em julho já quase que atingiu os números de 2019 e na cirurgia preparam-se para recuperar mais de duas mil..Em Coimbra, o Centro Hospitalar Universitário já está a negociar com as equipas médicas a produção adicional, embora com a clara perceção de que nada poderá ser igual ao período pré-covid, porque as próprias "regras de segurança impõem restrições"..É desta forma que quatro dos maiores hospitais do país tentam regressar à normalidade ao mesmo tempo que procuram recuperar o que dois meses e meio de pandemia deixaram para trás. E não foi pouco. .Em todo o país, e segundo a ministra da Saúde, 1,4 milhões de consultas, entre hospitais e centros de saúde do SNS, e mais de 50 mil cirurgias. Um número que Marta Temido admitiu ser assustador e que teria de ser resolvido..A portaria 171/2020, que autoriza a produção acrescida nas unidades de saúde, com pagamento até 95% às equipas de profissionais, foi publicada na semana passada e muitos hospitais começaram logo a funcionar em horários fora do normal. .Ao DN, todos dizem que o "esforço está a ser grande", mas que se "está a trabalhar em força". O objetivo é recuperar a normalidade, mas também mudar o que há a mudar para equilibrar os cuidados aos doentes covid e aos doentes normais..De norte a sul do país, todos se preparam para o cenário da estabilidade, mas também para o pior dos cenários, porque não há quem não receie uma segunda vaga de covid-19. E se tal acontecer, "os hospitais voltam a parar", porque "não aumentámos de tamanho nem temos mais recursos humanos"..Mas no cenário do agora ainda há outras batalhas a travar, como convencer os doentes de que os riscos que correm se não forem tratados é superior ao do medo da covid-19..Doentes recusam cirurgias."Há doentes que faltam às cirurgias, mesmo depois de confirmarem ao telefone que virão", explica ao DN o vogal do conselho de administração do CHULC, Paulo Espiga. Acrescentando: "É um problema para o próprio doente e que está a ter impacto na atividade cirúrgica. Estou a falar de situações que são transversais, que vão das mais simples às mais complexas.".Por exemplo, "temos a unidade cerebrovascular, onde se fazem intervenções cirúrgicas a pessoas que estão em risco de ter AVC, e há muitas que têm a intervenção marcada e não aparecem. São doentes que podem ter complicações graves, como rebentar um aneurisma a qualquer momento, são alertadas para a situação e mesmo assim não vêm"..De acordo com o vogal, esta é, aliás, uma das razões para que a unidade ainda registe uma quebra na atividade cirúrgica de cerca de 21%, relativamente ao primeiro semestre do ano passado, mas há outras que antes não eram uma condicionante e que agora são, nomeadamente um número elevado de profissionais com mais idade que têm de ser protegidos.."Temos muitos anestesistas já com bastante idade e que, por precaução ou por doença crónica, não podem operar." Outra situação tem que ver com a quebra na afluência às urgências, que, nos meses de março e abril, chegou a atingir os 60% e 70% , e que agora ainda regista metade dos episódios em relação ao período pré-covid e ao mesmo período de verão de 2019..Dados revelados ao DN mostram que durante a pandemia a média de casos nas urgências era de 297 por dia, enquanto há um ano variava entre os 552 os 763. E este serviço, como refere Paulo Espiga, "é um dos setores que canalizam muitos doentes para a cirurgia"..Por fim, o vogal refere ainda as medidas de distanciamento social que, quer se queira quer não, impõem restrições, pois em termos de cirurgias "há salas que estão preparadas só para os doentes infetados e que estão restritas a outras utilizações". Por outro lado, "os procedimentos de desinfeção também levam mais tempo, o que faz que não se possa ter tantos doentes a usar a mesma sala"..Aposta nas tele e videoconsultas.No regresso à normalidade, o CHULC aposta na área das consultas, embora aqui registe também a recusa de alguns doentes. Paulo Espiga refere que a falta de doentes às consultas é de 25% a 30%, mas, como sublinha, nesta área a unidade está a avançar e já atingiu 92% da produção realizada nos primeiros seis meses do ano passado..Para isto contribuiu o facto de terem incrementado um projeto de teleconsultas durante a pandemia, conseguindo realizar mais de três mil mensais e que agora será uma das apostas para o futuro, e o terem criado circuitos autónomos para doentes normais e doentes covid..Mas não só. Os horários das consultas foram prolongados até às 20.00, "antes a produção estava concentrada até às 13.00", e o dos profissionais também. "Tivemos de tomar medidas estruturais", porque, argumenta, "não há soluções únicas ou milagrosas. Se as novas regras impuseram aos nossos hospitais uma quebra de cerca de um terço na lotação de doentes, não podíamos aceitar que esta se refletisse na resposta às consultas.".Foi criada uma plataforma digital para facilitar as tele e videoconsultas. O objetivo é evitar que os doentes se desloquem às unidades, quando não é estritamente necessário. Este tipo de consultas será sugerido pelos próprios médicos aos doentes, que podem ou não aceitar..Para os doentes oncológicos haverá até uma modalidade diferente. "Poderá ser mesmo o doente a solicitar no portal das consultas uma videoconsulta com o seu médico, que será depois marcada." .Nesta reorganização de funcionamento, Paulo Espiga foi pedindo também aos médicos que repensassem se haveria consultas que estavam a ser feitas sem necessidade. "Não é que estivéssemos a prestar cuidados em excesso", refere, mas há que repensar se, por exemplo, se deve ou não continuar a acompanhar doentes que há muito foram intervencionados aqui e que continuam a vir só para consultas anuais de rotina. "Talvez estas já não sejam necessárias", sublinha..A covid-19 obrigou a repensar os hospitais, a sua reorganização em termos de funcionamento e de espaços, impondo reduções de lotação não só nas salas de espera, mas também nas enfermarias, o que nalguns casos levou à redução de internamentos e até de exames de diagnóstico. .O Lisboa Central está a preparar-se para o futuro. "Estamos a pensar em medidas globais que nos permitam dar respostas ao nível da urgência, da consulta, da cirurgia e dos cuidados ambulatórios." E, por isto, Paulo Espiga lança um alerta: "O CHULC tem cerca de oito mil profissionais e o número dos que foram infetados não chega aos cem, muitos foram contaminados lá fora". Portanto, "é mais seguro virem ao hospital do que andarem noutros locais"..No norte, urgências voltam em força.No Porto, o regresso à normalidade dos hospitais passa igualmente pelos serviços de urgência. E este pode tornar-se num verdadeiro problema, segundo Cristina Marujo, diretora da urgência do Centro Hospitalar Universitário São João, "porque os hospitais não aumentaram nem têm mais recursos humanos"..A questão é que neste serviço a afluência, e ao contrário do que ainda acontece na região de Lisboa e Vale do Tejo, começa a aumentar e muito, estando a atingir o número de casos do período pré-covid e do verão passado. .Para a médica, a mensagem deixada aos portugueses no início da pandemia, no sentido de usarem as urgências de um hospital central de forma adequada, "não passou. De todo, e é preciso fazer passar. Em maio, notámos logo um acréscimo claro da procura", que se mantém até agora..Abril foi o mês com menos afluência, 314 por dia, quando era de 454 em 2019, e maio o que teve mais episódios, 480, chegando aos números do ano passado, junho registou 375 casos e a primeira quinzena de julho já vai com 407 casos, quando a média de 2019 foi de 472 por dia..Ou seja, "ainda não chegámos aos números do período pré-covid e aos do verão anterior, mas acredito que chegaremos lá rapidamente", alerta Cristina Marujo. Na semana passada, "tivemos dos piores dias de urgência, com uma grande procura de doentes com todo o tipo de patologias". Alguns "não precisavam sequer de ser tratados num hospital central. Mas como estamos de porta aberta temos de os receber e de os tratar"..A médica refere-se a doentes com "queixas menores, como dores num joelho há muito tempo ou ter muitas borbulhas. São situações que deveriam ser tratadas nos cuidados de proximidade, mas compreendo que vão até nós por falta de respostas aqui, provavelmente, porque ainda estão virados para situações urgentes"..A manter-se este fluxo de doentes, Cristina Marujo diz que não haverá um regresso à normalidade com "tranquilidade e menos riscos" em tempos de pandemia. Até porque outra das situações que o seu serviço está a identificar é o aumento de suspeitos de covid a entrarem pela urgência. "O calor potencia algumas situações respiratórias e muitos doentes estão a dirigir-se pelo seu próprio pé à urgência, o que, não sendo possível identificar numa primeira triagem se é uma situação de covid ou não, faz que todos tenham de ser tratados como doentes suspeitos.".Esta situação, associada ao aumento dos restantes casos, está a dificultar "um pouco a organização do espaço". A médica diz perceber a situação dos doentes, "sabem que precisam de ajuda e procuram-na", mas tal também significa que os alertas feitos pelas autoridades de saúde "não passaram. E tínhamos alguma esperança de que tal acontecesse"..A diretora da urgência do São João diz que é necessário perceber-se que "há limites para a nossa a capacidade". E se a afluência às urgências não reduzir é da opinião que "se calhar tem de haver uma decisão central que, de alguma forma, reprima a possibilidade de os doentes poderem ir a qualquer serviço de saúde e a qualquer momento". Sublinhando: "Os serviços de saúde são diferenciados e se as pessoas não percebem isso, tem de haver uma forma de as direcionar para os locais adequados e onde possam ser bem tratadas de cada vez que tenham necessidade de cuidados mais ou menos diferenciados.".De 40 a 60 cirurgias por dia.Na área da cirurgia, o maior centro hospitalar do norte está a tentar regressar à normalidade o mais rapidamente possível para evitar "mais complicações para os doentes e que estes sejam transferidos para outras unidades..Susana Vargas, diretora do bloco operatório central, assume que "estamos a trabalhar em força, mas com grande esforço dos profissionais". Durante o dia, e no horário normal, a média de cirurgias voltou a ser de 50 a 60, como era antes da covid-19. E a programação adicional já começou no fim de semana passado. "No sábado fizemos 60 cirurgias e na sexta-feira cerca de 40 de várias especialidades, cirurgia geral, plástica, ortopedia e cirurgia torácica." E à medida que os casos covid forem diminuindo, poderão operar mais quatro a cinco doentes por dia..O ritmo tem sido este no bloco central, desde maio. "À medida que a pandemia diminuía ia abrindo uma sala, depois outras, de acordo com as necessidades." Agora, das 12 salas que o bloco central tem, dez já estão a funcionar em pleno, sem contar com a que está destinada à covid e outra à litotrícia..Em março e abril só fizeram situações urgentes. "Os doentes oncológicos por exemplo foram sempre operados. Só tínhamos três salas para os doentes normais. Grande parte dos recursos humanos estavam distribuídos pelas áreas consideradas prioritárias para a covid. Tive enfermeiros deslocados nos cuidados intensivos e nas urgências, porque são profissionais muito diferenciados que se adaptam rapidamente a qualquer área.".Portanto, "mesmo que quisesse neste período não poderia ter as 12 salas a funcionar, até porque isso implicaria mais recursos de internamento e mais recobro, que estavam desviados também para os doentes covid.".Para a médica, "já se sabe que o que foi feito, parar completamente o hospital para os doentes não covid, teve repercussões graves, as patologias ficaram em espera e os doentes também". Por isso, agora, a ideia é alocar o mínimo de recursos e de espaço aos doentes covid para se prestar cuidados aos doentes não covid, mas "tal só será possível se a pandemia não voltar em força, porque se voltar teremos mesmo de parar". Ou, então, das duas uma: "Ou há hospitais só para tratar doentes covid e hospitais para tratar doentes normais ou se consegue mais recursos, porque senão os hospitais voltam a parar, porque não conseguem prestar cuidados aos dois tipos de doentes.".Consultas quase recuperadas.O Hospital de São João foi o primeiro do país a receber doentes com covid-19. Foi dos primeiros a ter de reorganizar todo o espaço, a pensar circuitos e a fazer consultas por telefone. O diretor do centro ambulatório (CAM), Xavier Barreto, diz: "Nunca deixámos de funcionar", o que fizeram foi "passar a maior parte da atividade para consultas por telefone, chegámos a fazer sete mil por mês, mas mantivemos sempre cerca de 200 a 300 presenciais por dia aos doentes que tinham mesmo de ser vistos sob risco de terem alguma deterioração do seu estado de saúde.".Começaram por alterar os circuitos na consulta externa, os doentes passaram a ser obrigados a estar de máscara e a higienizar as mãos, marcaram todos os lugares nas salas de espera para haver distanciamento social e colocaram acrílicos nos balcões..Em maio, disseram aos médicos que "já podiam passar a ver mais doentes presencialmente e as consultas passaram para 600 a 700. Em junho, aumentaram para 1000 a 1200 consultas presenciais. Mas, em julho, na primeira quinzena, atingiram os números de 2019, 38 392 consultas, tendo só 20% sido por telefone. Portanto, a produção em consulta externa está praticamente normalizada"..Mas agora é tempo também de recuperar "o stock de milhares que ficou para trás". Xavier Barreto explica que foi pedido às equipas médicas para alargarem "o período de consulta até às 20.00, normalmente só trabalhávamos até às 18.00, para redistribuir os doentes e para não termos salas sobrelotadas"..A adesão tem sido boa, porque "melhor do que ninguém os médicos têm a noção clara do que está em jogo e quão importante é recuperar o que ficou para trás. Estamos todos a remar para o mesmo lado"..Aliás, "se conseguimos estar a produzir tanto como estávamos em 2019 por esta altura é porque não estamos a confrontar-nos com o mesmo número de casos que tem agora a região de Lisboa e vale do Tejo. O cenário ideal é conseguirmos fazer conviver a realidade covid com a não-covid. Vamos ver se o conseguimos. Estamos a prepararmo-nos para isso"..Resolver duas mil cirurgias.O Centro Hospitalar Lisboa Norte também tem em curso um plano de recuperação para área cirúrgica e consulta externa. O objetivo é conseguir resolver cerca de duas mil cirurgias com a produção adicional, se bem que este número possa até ser ultrapassado, refere o presidente do conselho de administração, Daniel Ferro..O programa está a ser negociado com as equipas, mas embora também tenha a noção de que há profissionais exaustos, porque "os que estão agora nas salas de cirurgia são os que estavam há um mês no teatro covid", acredita que "a intenção é realista"..Daniel Ferro sabe que a sua unidade ainda não está a funcionar em pleno, mas "estamos quase". Aliás, nos últimos três meses o centro tem vindo a aumentar a sua produção de forma sustentada e garantindo todos os aspetos de segurança em relação aos doentes e aos profissionais. E desde o início do ano até agora, já conseguiu realizar 315 mil consultas e oito mil cirurgias..Na área das consultas, os últimos números de junho indicam mesmo que estão muito próximos da produtividade realizada no mesmo mês de 2019 - 49 208 agora para 53 mil no ano passado. Nas cirurgias também. Em junho foram feitas 1221, em 2019 tinham feito 1300. .Nas urgências, o CHULN não regista o mesmo problema que São João. A afluência é metade da registada em junho do ano passado. Neste ano, no mesmo mês recebeu 13 mil urgências, mais 1200 do que em maio e mais 4300 do que em abril. Mas a média de abril a junho em 2019 foi de 21 mil episódios por mês. A explicação, diz, pode estar no facto de a região de Lisboa ainda estar com algumas ameaças e riscos maiores em relação à doença e é natural haver pessoas com receio de se deslocarem a estes serviços..A aposta deste centro para o futuro são os cuidados ambulatórios e domiciliários e há já projetos que estão no terreno..Coimbra negoceia produção adicional.Em Coimbra, a atividade do centro hospitalar universitário está a voltar ao normal e o objetivo "é conseguir recuperar o que não fizemos durante os meses de pandemia, mas também o que temos em lista de espera"..Para isto também estão a negociar e a planear com as equipas médicas um plano de recuperação, mas com a perceção de que "nunca poderemos retomar a atividade com a normalidade que existia pré-covid", diz a diretora do gabinete de planeamento e controlo de gestão do CHUC..Joana Cunha refere mesmo que a questão do distanciamento social traz limitações reais e "não podemos achar que vamos fazer exatamente o mesmo que fazíamos antes". Para a diretora, as novas regras servem para garantir a segurança dos utentes e dos profissionais e tal já implicou naquela unidade "a redução do número de consultas por hora, para haver menos doentes nos espaços, e ajustes no internamento, para se cumprir também as normas de lotação"..No entanto, a diretora do gabinete de planeamento sublinha que o CHUC nunca parou verdadeiramente a sua atividade. "Reduzimos alguma atividade, mas respondemos sempre às situações que necessitavam de ser atendidas e num espaço de tempo curto." .Nos dados disponibilizados, Joana Cunha sublinha o facto de mesmo em março, abril e maio terem continuado a realizar milhares de consultas - 60 240, 42 509 e 50 937, respetivamente. Em junho, já passaram para as 58 mil e nos primeiros 15 dias de julho já vão com mais de 33 mil..O mesmo acontece nas cirurgias. Em janeiro, realizaram mais de 26 mil, mas nos meses da pandemia andaram sempre pelas 14 mil e em junho já atingiram quase as 16 mil ..Neste momento, a unidade já está a preparar-se para "um cenário de estabilidade e para um menos favorável. Tem de ser, não podemos ignorar que pode vir aí um cenário pior".