Mantendo-se confinado ao espaço de casa, o que é continua a fazer? Neste período de isolamento social, continuo a dar aulas, a partir da plataforma zoom, e a coordenar o MediaLab ISCTE-IUL, Estou a tentar manter a equipa a funcionar, continuamos a fazer análise do que está a fluir nas redes sociais..E projetos para o futuro? Tentar construir um observatório para a desinformação no ISCTE e tentar arranjar financiamento, no seguimento do que fazemos no MediaLab. Durante os dias em que andámos a tratar das fake news, estavam 16 pessoas a trabalhar ao mesmo tempo, entre doutorados, investigadores, bolseiros, em regime de voluntariado. E estou a ultimar a tradução para português do livro Europe's Crises [de Michel Wieviorka, Gustavo Cardoso, Olivier Bouin, João Caraça, John Thompson e Manuel Castells] e acho que vamos ter de escrever um novo capítulo - por diferentes razões, o covid-19 pode ser também a pandemia da Europa - sobre o que vai acontecer quando isto terminar. Pode haver muitas feridas para sarar..O que é que o covid-19 nos diz sobre Portugal? Aparentemente, aceitámos melhor a mudança de hábitos do que outros países, pelo que nos chega pelas ruas e pelas imagens. Há algo para refletir sobre a nossa dinâmica de sociedade. Heinz Bude [sociólogo] tem um livro, The Mood of the World, em que caracteriza as sociedades como tendo estados de alma. Há momentos em que há uma espécie de contágio de alegria, outros momentos são soturnos, não é algo individual. O nosso estado de ânimo individual acaba por ocasionar uma determinada onda que dá origem a esses estados de espírito. Temos tido momentos de grande alegria, como vencer o Euro, agora estamos a viver um momento de preocupação generalizada. Assumimos rapidamente o papel de partilhar um estado de preocupação comum e que tem que ver com o que somos culturalmente e as coisas pelas quais passámos..O que é que poderá explicá-lo? Provavelmente, a quarentena do Presidente da República e o semblante carregado do primeiro-ministro quando fala nestas questões, tudo isso nos transmitiu uma preocupação generalizada. Um PR mais à direita e um PM mais à esquerda, que apanha todos os quadrantes políticos, além de representarem duas instituições, contribuíram para que o estado de preocupação individual, e partilhado socialmente, se atingisse muito rapidamente em Portugal, o que é diferente de pânico. Tentou generalizar-se o pânico, através das fake news e das redes sociais, logo a seguir ao aparecimento dos primeiros infetados..Será por sermos eternamente preocupados e não dizermos abertamente quando estamos felizes? Isso acontece numa lógica de reserva, nunca gostamos de dizer que estamos bem, isso tem que ver com práticas de uma sociedade não muito rica, nunca se pode dizer que se está muito bem porque se tem medo de que as pessoas pensem mal de nós. O que está a acontecer é diferente. A partir do momento em que temos de alterar as nossas rotinas, tentamos fazê-lo de um modo que seja melhor para nós. Não estamos num processo de martirizarão, não creio que seja esse o posicionamento, agora a preocupação, sim, é um traço do nosso momento social atual..A situação da Itália também nos fez perceber melhor a dimensão da epidemia. A França e a Espanha também tinham essa informação e, aparentemente, esse sentimento não foi rapidamente partilhado. Em França, há centenas de pessoas multadas e está a discutir-se o recolher obrigatório. Tem de haver algo diferente em Portugal..No que é que somos diferentes dos outros países? Temos o problema em cima da mesa, mas, ao mesmo tempo, não está cada um a puxar para o seu lado, de repente todos os lados estão a preocupar-se. O PR e o PM, pelas suas ações e palavras, criaram um amplo consenso de preocupação a nível partidário e que passou a um estado de espírito nacional. Na Assembleia da República, não houve vozes discordantes, mesmo as mais populistas não o fizeram, tudo isso fez que achemos que as coisas não estão a ser levadas de ânimo leve, como parece que aconteceu em outros sítios. Não quer dizer que todos estejam a cumprir, há incongruências no comportamento social, mas há uma preocupação partilhada..Significa que não haverá necessidade de o governo impor o recolher obrigatório? Pode ser necessário se se perceber que o número de infetados vai aumentar exponencialmente. Neste momento, poderemos imaginar que não será necessário..A forma como países como a China e Coreia do Sul controlaram a propagação do novo coronavírus introduz um dado novo na discussão, que tem que ver com a forma como os diferentes regimes lidam com a pandemia. Focamo-nos demasiado no regime e menos na história e na dinâmica dos países. A China tem um sistema de não circulação, essa é a norma, a migração do campo para a cidade é gerida. A Coreia do Sul está num "estado de guerra" não resolvido há muito tempo. Não se trata apenas do regime ser democrático ou autocrático - a Coreia do Sul é uma democracia e a China não é -, tem que ver com a dinâmica cultural dos países. E estamos a esquecer-nos de uma coisa: enquanto para os europeus a situação é nova, não é nova para os países asiáticos. Têm toda uma aprendizagem, uma experiência acumulada, que nós não temos..A necessidade de se controlar as pessoas para as proteger a nível da saúde poderá ser usado como pretexto para o aparecimento de regimes ditatoriais? Pode ser uma boa desculpa para quem queira criar mais problemas ao Estado democrático, mas não foi preciso para o que aconteceu na Hungria e na Polónia, por exemplo, para mitigar o exercício da democracia em favor de decisões mais autocráticas. Pode dar um pretexto para fazer essa ligação e que pode parecer atrativa, mas, como sabemos, as explicações são sempre mais complexas do que aquelas que interessam às pessoas colocar sobre a mesa..Que conclusões podemos tirar quando esta crise passar? Haverá perguntas a fazer: temos o número exigido de médicos, de enfermeiros, de profissionais de saúde? Se, em Portugal, temos contido o número de médicos, noutros países há falta de pessoas que queiram ser médicos, e temos vindo a exportar estes profissionais. O nosso calcanhar de Aquiles pode ser o facto de não termos criado condições para os profissionais de saúde se manterem em Portugal, essa discussão vai ser feita quando passar a crise. Depois, há situações como a da Itália, que são de descontrolo por desconhecimento. Ninguém acreditou que podia haver uma pandemia na Itália, mas, olhando agora, faz todo o sentido que tenha atingido as proporções que atingiu na Lombardia. Estavam lá as trocas comerciais entre pessoas da China e do norte da Itália, que é uma das regiões mais ricas e industrializadas. E, como não temos a experiência dos países asiáticos com estes vírus, é provável, como agora começa a perceber-se, que este novo coronavírus estivesse na Itália ao mesmo tempo que está na China..Os nossos hábitos vão mudar? Haverá hábitos que vão mudar mas também haverá a nossa perceção daquilo que nos rodeia e do que deverá ser valorizado. É óbvio que, depois de um confinamento em casa, as pessoas vão valorizar muito mais as pequenas coisas: vir à rua tomar um café, passear, jantar fora. Vivermos confinados em casa permite-nos um convívio familiar que não tínhamos experimentado; por outro lado, as pessoas que têm relacionamentos que passam por cada qual viver na sua casa irão, também, refletir. Todos os relacionamentos vão passar por um teste e veremos o que é que daí virá. Mas há uma questão que é importante começar já a discutir: vamos descobrir que há um conjunto de tarefas do nosso quotidiano que podem ser feitas com menos ou nenhumas pessoas, o que vai fazer que muitas organizações se questionem sobre a sua forma de organização. Pode trazer benefícios nuns casos, mas, se tivermos uma recessão económica, se as pessoas ficarem sem emprego, será que vão ter emprego depois de a economia recuperar?.E, aí, teremos um grave problema de desemprego, logo social. Se tudo funcionasse segundo o que interessa mais a uma parte não viveríamos numa sociedade como a que conhecemos. Se for uma decisão meramente económica, se não se tiver em consideração a qualidade e a empregabilidade da população, terá um rumo; se estivermos atentos a essas questões, terá outro, precisamos é de uma grande discussão. O facto de sermos atendidos por uma máquina em vez de uma pessoa faz diferença, mas, neste momento, preferíamos uma máquina, as pessoas têm medo das outras pessoas. Quando tudo passar, o receio do contágio desaparecerá, mas a experiência fica, vai ser uma aprendizagem e vamos ter de encontrar uma solução para vivermos todos neste mundo. Senão, deixamos de ter uma pandemia a nível da saúde e vamos ter uma pandemia económica, política e de perturbação social..Os mais velhos tendem a ter comportamentos diferentes dos dos mais novos? As pessoas, tanto as mais velhas como as mais novas, agarraram-se aos telefones para manter o contacto umas com as outras, precisam dessa proximidade, isso não tem idade. Se para os mais velhos é através da voz, os mais novos fazem-no através de outras aplicações que têm vídeo..Falo desse estado de preocupação, aparentemente os mais velhos parecem menos preocupados, estão nas ruas. Há relatos de pessoas, tanto mais novas como mais velhas, para quem não faz sentido esta preocupação, isso depende, também, da desinformação. As gerações mais velhas passaram por outras experiências de vida por que os mais novos não passaram: terramotos, cheias, a Guerra Colonial, tudo o que foi experienciado e vivido depois da II Guerra Mundial em Portugal. Têm uma experiência de vida muito diferente da dos mais novos. Para os mais novos, é uma aprendizagem de que o mundo pode ser diferente daquele que conheceram, é algo novo, não têm um passado para comparar; para os mais velhos, é um regresso a coisas por onde passaram. Depois, há condições diferentes: para uns, a única hipótese é esperar numa fila do supermercado, para outros há a possibilidade de encomendar online e esperar uns dias..Qual é a percentagem da população portuguesa que tem acesso às tecnologias? Portugal tem 70 % da população que utiliza a internet com regularidade, o que cria dois mundos diferentes: um em que se vive das compras de proximidade e outro que se habituou a ter as coisas à distância. Coexistem na sociedade portuguesa práticas muito diferentes para as mesmas coisas, isso é distintivo, há diferença entre os mais novos e os mais velhos..Também o teletrabalho, por exemplo? Há uma divisão de classes a nível profissional, há a classe que pode fazer teletrabalho e a classe que não pode e, normalmente, ocorre uma divisão monetária, no teletrabalho ganhar-se-á melhor do que no trabalho de proximidade, esta é uma outra discussão que pode surgir. Quanto mais competências e formação são requeridas, maior é a capacidade de gerir o trabalho. É a regra, embora existam algumas questões que fogem um pouco a esta regra, esse é outro campo de conflitualidade e de discussão..Pode concluir-se que este coronavírus não olha à classe social mas as consequências sim? Sim, as consequências podem atingir muito mais aqueles cujo trabalho pode ser substituído pela automação, mas isto também não é linear, porque existem trabalhos feitos por computador que podem também ser substituídos..Mas, no mundo tecnológico, o que parece ser mais difícil na atual situação é a falta de contacto humano. As tecnologias são uma forma de as coisas funcionarem sem as pessoas se contagiarem umas às outras. Agora, o facto de esta pandemia acontecer no século XXI, em 2020, tem certamente resultados diferentes por haver essas tecnologias. É uma ferramenta que vai ajudar-nos a conter o impacto psicológico nas nossas vidas. Agora, que valorizaremos mais o contacto pessoal e a liberdade depois disto, claro que sim, todas as situações de privação do contacto e da liberdade fazem valorizá-los mais, está na nossa natureza. Não é por acaso que, quando alguém não cumpre as regras sociais, é preso - a punição é retirar-lhe o contacto com quem gosta e a liberdade de movimentos..Agora estamos presos na nossa própria casa. Nas últimas décadas passámos, o tempo a olhar para pessoas fechadas numa casa - o Big Brother e a Casa dos Segredos -, que têm determinadas características e seguem um guião. De repente, temos uma experiência social à escala mundial: o estarmos fechados numa casa e não termos ninguém que escreva um guião, temos de ser nós a escrevê-lo. O governo ajuda-nos a escrever uma parte do guião, agora o quotidiano das relações entre quem está na mesma casa, entre as famílias, que passaram a estar muito tempo juntas, tudo isso tem de ser reescrito pelas próprias pessoas e essa é uma experiência diferente, uma experiência social em tempo real. Temos de fazer essa discussão para podermos sair desta situação com alguma sanidade mental. Todas as relações do ser humano vão ser levadas ao extremo. Em relação às pessoas de que sentimos falta, vamos senti-la mais; em relação às que nos estão próximas, vamos aprender a lidar com elas de forma diferente, todas as dinâmicas mudaram. E as nossas casas não foram feitas para ter ou dar aulas à distância nem para estar em teletrabalho, o que quer dizer que temos de descobrir outros equilíbrios..E são as tecnologias que podem aproximar-nos? Já sabíamos que as tecnologias não nos afastam, o tempo que ocupamos com as novas tecnologias é tempo em que não estávamos com outros. Parece que estamos muito tempo agarrados ao telemóvel, mas, muitas vezes, serve de desculpa para não estarmos a interagir com o outro. O que vemos é o telemóvel ser utilizado para todos se reunirem estando em sítios diferentes, vemos sete a oito miúdos a falar uns com os outros para o mesmo ecrã. O telemóvel está a aproximar-nos uns dos outros porque ficamos a saber mais um dos outros. A realidade torna-se mais cheia em termos de informação.