Governo descartou 140 camas para doentes covid-19 do ex-hospital militar de Belém
Em resposta à "emergência humanitária" do Afeganistão e à necessidade de acolher refugiados, o governo decidiu desmontar as enfermarias para doentes covid-19 do ex-hospital militar de Belém (HMB)e transformar este espaço em alojamento para 133 afegãos.
A medida merece fortes críticas do bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do pneumologista Filipe Froes os quais, não pondo em causa o apoio aos refugiados, a consideram uma "má decisão", tendo em conta a "fase ascendente" da pandemia.
A coordenadora do PSD na Comissão de Defesa do parlamento, Ana Miguel Santos, considera que a situação "deve envergonhar todos os envolvidos". "Colocar pessoas vulneráveis nesta situação é inadmissível e tem de ser devidamente explicado", frisa.
Em março de 2020, recorde-se, quando a pandemia começou a propagar-se no nosso país, o ex-HMB, depois designado Centro de Apoio Militar covid-19 (CAM) foi alvo de obras em contrarrelógio para apoiar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) no internamento de doentes pouco graves, equipando enfermarias e a disponibilização de 140 camas.
Conforme foi noticiado pelo DN, a empreitada acabou por derrapar para o triplo - de 750 mil previstos passou para 3.2 milhões de euros, facto cujas responsabilidades ainda estão por esclarecer. Esteve ativado cerca de um ano (encerrou em março de 2021) e recebeu 657 doentes.
Em dezembro passado, já sem doentes internados, o governo decidiu ceder o CAM para alojar os refugiados afegãos, retirando estes meios de retaguarda ao SNS. "O contexto de emergência humanitária obrigou a um esforço de acolhimento de quase 800 pessoas em menos de 4 meses. Para tal, foi necessário recorrer a soluções alternativas aos espaços de acolhimento coletivo já ocupados e que temporariamente permitam responder à identificação de respostas subsequentes, o que tem estado a ser feito", justifica ao DN o gabinete do ministro da Defesa, João Gomes Cravinho.
Questionado sobre se não havia outro espaço, na medida em que este tinha sido preparado especificamente para tratar doentes covid-19, esta fonte oficial explica que "o Ministério em articulação com o gabinete da Ministra de Estado e da Presidência e com o Ministério da Saúde, e face aos dados conhecidos sobre a evolução da pandemia, disponibilizou o antigo Hospital Militar de Belém para esse acolhimento temporário, na medida em que não existia então necessidade hospitalar para internamentos covid-19".
Acrescenta que "as instalações mantêm-se na esfera da Defesa Nacional, responsável pela sua gestão e manutenção, sendo de salientar que todo o material médico que aí se encontrava foi devidamente acondicionado e se encontra armazenado".
O bastonário dos médicos, que desconhecia a situação quando confrontado pelo DN, entende que "dadas as circunstâncias, quando Portugal está entre os países com maior índice de infeções e é expectável que venham a subir os internamentos, foi uma má decisão".
"O HMB estava equipado, fica numa área onde a pressão de internamentos é sempre maior, pode haver necessidade de transferir doentes e era importante que estivesse preparado para os receber, sendo envolvido na resposta do SNS, evitando deixar as unidades hospitalares chegar a ponto de rutura", sublinha Miguel Guimarães.
Filipe Froes, coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a covid-19, subscreve. "Estamos numa fase ascendente da pandemia e dispensamos esta reserva? Não foi a melhor decisão", afirma, questionando se "não haveria outro local".
Salienta que "a pandemia veio reforçar a necessidade de se ter uma visão estratégica e planeamento, para evitar medidas isoladas que acabam, como se vê, por não serem as melhores decisões".
Na verdade, o ministério da Saúde até já pediu o apoio das Forças Armadas para o internamento de doentes, confirmou fonte oficial.
No Hospital das Forças Armadas (HFAR) em Lisboa estão, neste momento, 3 doentes internados doentes, todos com COVID, "havendo capacidade para mais", segundo fonte oficial da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo. No HFAR do Porto estão 18 civis internados, confirmo o porta-voz da ARS Norte
Tal como Guimarães e Froes, a deputada que mais acompanhou no parlamento o processo da derrapagem, Ana Miguel Santos, desconhecia também o atual destino do ex-HMB. "Já não estamos só no campo das trapalhadas. Esta situação deve envergonhar todos os envolvidos. Se pensarmos que quando questionámos o Ministro da Defesa Nacional sobre a derrapagem das obras num montante três vezes superior ao orçamentado e sobre a falta de transparência na gestão de dinheiros públicos ele nos afirmou que se "tratava de dinheiro que não se perde porque serviu para edificar uma estrutura de apoio ao combate à Covid 19, agora perguntamos: em que é que ficamos?", indaga.
A coordenadora social-democrata recorda que ainda se desconhece "a decisão do Tribunal de Contas e do Ministério Público (MP)" sobre as irregularidades detetadas na auditoria às obras. "Só sabemos que o principal visado foi nomeado para o Conselho de Administração de uma empresa pública. E agora ficamos a saber que se desmantelou uma infraestrutura de saúde militar, com as irregularidades citadas, para colocar pessoas vulneráveis que estão ao abrigo de fundos recebidos para o efeito pelo ministério da Administração Interna! Não existia outra infraestrutura militar disponível? Nem a Administração Interna dispõe de uma infraestrutura para o efeito, considerando os fundos que recebe para este efeito? A que titulo? Com que justificação?", interroga a deputada.
O DN questionou o Tribunal de Contas que diz ter remetido a auditoria para o MP, sem mais explicações, e que "aguarda despacho". O MP, por sua vez, não respondeu sobre o estado do processo.
Segundo anunciou o ministro da Defesa, esta auditoria foi enviada por si ao MP em agosto de 2021.
O DN tentou também saber junto da Defesa quais os termos e condições da cedência do CAM para o acolhimento dos refugiados, mas não obteve resposta.
Apesar de ter sido anunciado em agosto que o ex-HMB passaria para a tutela do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), mantém-se ainda na responsabilidade do Exército.
Não é ainda conhecido o destino futuro do ex-HMB e de que forma é que os 3,2 milhões investidos não será "dinheiro que não se perde", mas com o risco de as epidemias como a covid-19 se tornarem o grande desafio futuro para a saúde pública, médicos e militares já vieram defender que sejam aproveitadas as capacidades do HMB para criar um "centro de biossegurança" de investigação e tratamento dessas doenças.