Hospital Militar de Belém. Volta a esperança de reerguer um centro para tratar doenças infecciosas
Com o risco de as epidemias como a covid-19 se tornarem o grande desafio futuro para a saúde pública, médicos e militares querem aproveitar as capacidades do HMB para criar um "centro de biossegurança" de investigação e tratamento dessas doenças. Ministro insiste numa unidade de cuidados continuados em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa de Misericórdia
No final do ano vai ficar decidido o futuro do antigo Hospital Militar de Belém (HMB), desde há uma semana sob controlo do Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas (CEMGFA), almirante Silva Ribeiro, na sequência da decisão do governo de retirar o HMB da lista de imóveis da Defesa a "rentabilizar. O HMB tem estado no centro da polémica depois de o ministério da Defesa ter gasto 3.2 milhões de euros, o triplo do orçamentado, na sua reabilitação parcial para apoiar Serviço Nacional de Saúde no combate à pandemia.
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Questionado pelo DN sobre o que estava a ser preparado para aquele espaço, fechado desde abril passado, sem dar por adquirido o que tem defendido o ministro da Defesa João Gomes Cravinho de ali instalar uma unidade de cuidados de saúde continuados em parceria com a Câmara Municipal e Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), o Gabinete do CEMGFA adiantou que o destino do HMB "será estudado pela Direção de Saúde Militar, em colaboração com as direções de saúde dos Ramos, que identificarão possíveis linhas de ação para conferir utilidade funcional ao antigo HMB no âmbito da saúde militar".
O porta-voz de Silva Ribeiro acrescenta, ainda assim, que "também serão analisadas possibilidades de colaboração com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e com outras entidades externas às Forças Armadas, tendo em vista a instalação de uma Unidade de Cuidados Continuados". Completa o EMGFA que "os resultados desse estudo, que só deverá estar concluído no fim do ano, serão ponderados pelos chefes militares e, posteriormente, submetidos a decisão do Senhor Ministro".
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Esta declaração deixa assim em aberto, além da unidade de cuidados continuados, outras "linhas de ação" para a "utilidade" funcional do HMB. Com o risco de as epidemias como a covid-19 se tornarem o grande desafio futuro para a saúde pública, médicos e militares, ouvidos pelo DN, querem aproveitar as capacidades do HMB para criar um "centro de biossegurança" de investigação e tratamento dessas doenças.
O bastonário da Ordem do Médicos que vê aqui "a oportunidade de criar um centro de excelência de biossegurança, com uma vertente de investigação das novas ameaças globais à saúde pública, como foi o caso da covid-19"
Um deles é o próprio bastonário da Ordem do Médicos que vê aqui "a oportunidade de criar um centro de excelência de biossegurança, com uma vertente de investigação das novas ameaças globais à saúde pública, como foi o caso da covid-19, mas também as que podem resultar das alterações climáticas".
Miguel Guimarães entende que "tendo em conta o que a pandemia veio realçar da necessidade de nos prepararmos para estes desafios globais, este é o momento oportuno para ter uma unidade de referência, em rede com outros países, com a Defesa e a Saúde a trabalhar juntos - que como se está a ver no processo de vacinação funciona".
O bastonário defende que seja feito esse investimento. "Em Portugal continua a haver dificuldade nos internamentos de doentes infecciosos e um centro diferenciado podia ter uma vertente de monitorização do que se vai passando no mundo, outra de investigação, com laboratórios de topo e uma unidade de tratamento especializado nestas doenças", sublinha.
Na mesma linha está o pneumologista Filipe Froes que faz um apelo aos decisores: "Portugal está necessitado de uma estrutura que é fundamental para acompanhar e responder aos fenómenos epidemiológicos que já estão a acontecer. O HMB foi uma unidade especializada em doenças infetocontagiosas e ainda tem os equipamentos e as condições estruturais que, sendo reativados, servem esse objetivo. Seria absurdo desperdiçar estes recursos que estão disponíveis", sublinha o médico do Hospital Pulido Valente.
Reforçar a capacidade de defesa
Froes sublinha que "a pandemia veio alertar para certas necessidades na saúde pública no campo das doenças epidemiológicas" que já estão há vários anos "a ser acompanhadas pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC)", cujo objetivo é "reforçar a capacidade de defesa da Europa contra as doenças infecciosas".
"Temos de estar preparados e ter uma estrutura nacional de vigilância e resposta, em parceria com o Serviço Nacional de Saúde e universidades. A ECDC vão ter gabinetes de vigilância a funcionar 24/7. Seria ridículo não aproveitarmos o balanço e as condições que já tem o HMB. Não é uma questão de estarmos a prevenir algo que pode vir aí. Estas doenças já chegaram. A Espanha já tem em Madrid um Centro de Biossegurança. Se a questão for financiamento, porque não usar os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência?", questiona.
O pneumologista entende que "não faz sentido usar o HMB, com tantas condições diferenciadas para tratamento destas doenças, para cuidados continuados que podem ser instalados em qualquer outro local". Froes está por isso de "pleno acordo" com o que está a ser defendido por um grupo de médicos e militares, entre os quais o seu colega Esmeraldo Alfarroba, médico da mesma especialidade e General do Exército.
"Deve ser criada no HMB uma estrutura Nacional de Biossegurança com militares e civis, com laboratório de análises biológicas, ao mais alto nível, monitorização do que se passa no mundo, formação para a luta contra agentes biológicos, químicos e nucleares, aproveitando para internamentos as condições já existentes em quartos e enfermarias, com rampa de gases medicinais, cuidados diferenciados e intensivos, com aproveitamento das zonas de pressão negativa. O HMB deve ser um polo de investigação e ciência médica com ligações aos PALOP"s e em parceria com a Universidade e Ordem dos Médicos e outras entidades", sustenta este médico que foi diretor do HMB (durante 22 anos) e dirigiu o Serviço de Saúde Militar do Exército.
Este tipo de "utilidade funcional" já tinha, de resto, sido defendido por um extenso grupo de médicos e militares, entre os quais Alfarroba, encabeçados pelo General Ramalho Eanes, em duas cartas abertas, uma logo em abril de 2020, outra em julho passado.
Pura demagogia?
Durante a pandemia e em apoio ao SNS parte do HMB foi transformado em enfermaria para, segundo o governo, receber doentes covid "pouco graves ou assintomáticos". Contrariando o que defendeu o Esmeraldo Alfarroba perante o ministro João Cravinho, não foram ativadas nenhumas das mais importantes estruturas para tratamento de doenças respiratórias. No pico da pandemia acabou por receber idosos com comorbilidades, tendo vindo a falecer 12.
A instalação de uma unidade de cuidados continuados é considerada um erro por Alfarroba (Filipe Froes recorda a decisão semelhante no Pulido Valente que "tirou ao hospital camas para doentes agudos" que eram necessárias), mas também pelos Generais Luís Pinto Ramalho, ex-Chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), e Formeiro Monteiro, ex-comandante de Logística do Exército (signatários da cartas abertas).
Para o primeiro, esse plano "é pura demagogia para enganar incautos" porque "para esse efeito já existem as instalações, preparadas especialmente para esses cuidados, no Instituto de Ação Social das Forças Armadas (IASFA), só que não estão a ser utilizadas por falta de verbas para a contratação de pessoal".
Pinto Ramalho assinala que de "devia investir nos espaços que já estão vocacionadas para essa função, como é o caso do IASFA e não a CML".
O ex-CEME recorda a mais valia que teve e pode ter o HMB, que ainda funcionava como comandava o Exército e estava sob o seu controlo. "Aquele hospital foi construído de raiz, preparado para doentes com doenças infetocontagiosas, estão construídas duas vias, uma para contaminados outra para não contaminados, há quartos de pressão negativa (estacam o ar e evitam o contágio). Será uma lacuna grave se não aproveitarmos tudo isto e criar ali uma unidade especializada para responder a estas situações".
Formeiro Monteiro reforça: "até 2013 o HMB foi um hospital para infetocontagiosos, arquitetonicamente construído nessa perspetiva, com várias capacidades diferenciadas. Tendo ainda essas condições, uma vez ativadas de novo, pode responder às ameaças com que o mundo se defronta. Juntando a isto a criação de um centro de biossegurança, a funcionar como um observatório de monitorização destes fenómenos para, em conjunto com o SNS e a Ordem dos Médicos, responder a estas situações, colocaria Portugal ao mais alto nível no combate à guerra NRBQ (Nuclear, Radiológica, Biológica e Química) cada vez mais premente. Será um desastre se não for aproveitado".
Este Oficial General desconfia dos "interesses" que classifica de "espúrios" sobre a criação da unidade de cuidados continuados no HMB. "Há muito ainda por esclarecer quanto a esse processo, incluindo o que foi ali gasto".
Má experiência
Tanto Pinto Ramalho como Formeiro Monteiro lembram ainda a "má experiência" da cedência à SCML (em 2015) do antigo Hospital Militar da Estrela para instalar também uma unidade de cuidados continuados". "Há anos que se está à espera e não acontece nada", assevera Formeiro Monteiro, recordando a saída, em maio passado, de Ana Jorge, a médica e ex-ministra da Saúde, que pediu a demissão da SCML, ao fim de cinco anos à frente da Unidade de Missão do Hospital da Estrela da SCML para os Cuidados Continuados
Referem-se à designada Unidade de Cuidados Continuados Diferenciados Rainha D. Leonor, com 91 camas que já teve várias datas de inauguração não cumpridas. No site da SCML há referência ao final de 2018 e este ano já esteve prevista uma inauguração para julho. a uma, no final de, pelo menos, nos últimos cinco anos.
Contactada pelo DN, a SCML reconhece o atraso, mas o seu porta-voz garante que "a inauguração será, faseada, a partir de setembro / outubro próximos, estando neste momento já a decorrer a contratação de pessoal".
Na passada semana, negando que a decisão de retirar o HMB da lista de imóveis da Defesa a rentabilizar era um recuo, tal como tinha noticiado o DN, João Gomes Cravinho, ao mesmo tempo que coloca a responsabilidade sobre o EMGFA, voltou a afirmar que o HMB será para instalar uma unidade de cuidados continuados.
"O que ficou estabelecido é que o edifício fica na esfera da Defesa e no meu despacho eu digo que o Hospital das Forças Armadas deve estabelecer um diálogo com a Câmara de Lisboa, que é um parceiro que eu diria que é um parceiro óbvio, e que tem manifestado interesse, para efeitos da criação da parceria necessária para a unidade de cuidados continuados", disse."Se for com a Santa Casa da Misericórdia ótimo, se for com outro parceiro muito bem, mas cabe agora ao Hospital das Forças Armadas, dialogando com a Câmara de Lisboa, encontrar aquilo que é o desenho mais apropriado para uma solução de uma unidade de cuidados continuados aqui na cidade de Lisboa", rematou.
valentina.marcelino@dn.pt