A reabertura a 19 de abril poderá ser um momento crucial para o futuro imediato das salas de cinema. Se por um lado há uma forte saudade dos espetadores para voltar ao escurinho da sala, por outro pode acontecer um efeito de desconfiança, tal como se passou no anterior desconfinamento, já para não referir uma quebra de hábito que talvez só possa ser combatida se houver um investimento forte numa campanha de sensibilização do público. O grande adversário para esta retoma são as regras do jogo: salas fechadas até às 22h00 e encerramento a partir das 13h00 no fim de semana, horários que estão a motivar algum protesto por parte de exibidores e distribuidores. São medidas que podem ter um efeito perverso, sobretudo nas manhãs de sábado e domingo, onde pode haver concentração de públicos, em especial os mais jovens. O DN sabe, contudo, que está previsto o alargamento dos horários em maio se tudo correr bem. Mas para "tudo correr bem" também era importante os programadores das salas olharem para este retomar da atividade com um outro chip, numa altura em que o negócio do streaming terá ganho vínculos e em que a subida da pirataria é um facto - ainda há umas semanas lemos num inquérito de jornal uma atriz consagrada a recomendar Mais Uma Rodada, filme que apenas poderia estar disponível de forma ilegal...Acima de tudo, era bom deixar de ouvir os distribuidores falarem em "produto" e em "consumidor".Os filmes são mais do que mero produto e quem paga bilhete não pode ser reduzido a um consumidor de retalho. Nesta retoma, pelo que se vai anunciando, podemos perceber que não vai faltar bom cinema. Todavia, a gestão de não congestionamento de filmes nomeados para os Óscares está a obrigar a que muitos dos títulos apetecíveis apenas estreiem depois da cerimónia, perdendo-se assim o efeito sempre estimulante do falatório desta temporada. Trata-se de um efeito perverso que faz, por exemplo, que um título como Judas e o Messias Negro (seis nomeações da Academia, incluindo melhor filme) não esteja na lista, desconfiando-se mesmo que seja atirado posteriormente para o postigo dos "diretos para vídeo". É como se o próprio mercado desconfiasse das possibilidades dos seus trunfos..Seja como for, a maior aposta em termos de "filmes de Óscares" vai ser nessa semana de arranque Nomadland - Sobreviver na América, o favorito indiscutível da cerimónia de 25 de abril. O filme de Chloé Zhao narra a história de uma mulher viúva que se vê na situação de nómada sem casa, viajando no interior da América em busca de empregos temporários. Frances McDormand é assim uma das "madrinhas" desta retoma numa obra algo sobrevalorizada que, entretanto, venceu os Globos de Ouro e o Leão de Ouro de Veneza..Outra das possíveis "madrinhas" deste regresso às salas é Paula Beer, sereia luminosa de uma fábula para adultos do alemão Christian Petzold. Undine é o filme, maravilha aquática sobre musas e paixões assolapadas. A prova de que Petzold é um cineasta que se renova de filme para filme, conseguindo aqui um dos seus feitos mais significativos. Undine é cinema para ser visto em sala e celebrar a primavera num grande ecrã! Até ver, Music, de Sia, a cantora pop, é também outro dos títulos da retoma. Um filme nomeado para quatro Razzies (os Óscares dos piores do ano), mas que teve nos Globos de Ouro nomeações-surpresa para melhor atriz (Kate Hudson) e melhor filme comédia/musical. A partir dos momentos oníricos de uma adolescente órfã autista viajamos por dentro da música de Sia num formato de imenso teledisco. É sobretudo desnecessário e dificilmente poderá encontrar público significativo... Em termos de números de cópias, a maior estreia da semana de arranque será Mortal Kombat, de Simon McQuoid, destinado a fazer esquecer a tenebrosa adaptação deste universo de jogos de computador de Paul W.S. Anderson em 1995. Promete-se um festival de efeitos visuais topo de gama e pancadaria de artes marciais para agradar a um público juvenil masculino. Nos antípodas, no Nimas, em Lisboa, prossegue o ciclo das cópias restauradas do cineasta Joseph Losey, no qual se prevê a exibição de Um Homem na Sombra, Acidente, O Criado, Prisão Maior e Eva, este último com uma reflexão sobre a carga tóxica masculina que dará que pensar nos dias de hoje... A 29 estão previstos outros dois pesos-pesados dos Óscares: Uma Miúda com Potencial, de Emerald Fennell (seis nomeações, incluindo melhor filme e melhor atriz, uma admirável Carey Mulligan) e Mais Uma Rodada, de Thomas Vinterberg. O primeiro é um thriller de vingança feminina, quase em jeito de filme-encomenda dos tempos #MeToo, enquanto o segundo é um tocante drama dinamarquês que entra diretamente na lista dos melhores do ano - está nomeado para melhor realização e melhor filme internacional. Estão também previstas nessa mesma data dois filmes para ajudar as salas de centro comercial a ganhar vida: Tom & Jerry, de Tim Story, onde as famosas personagens de Hanna-Barbera contracenam com atores de carne e osso como Michael Peña e Chloe Grace Moretz e Godzilla vs. Kong, de Adam Wingard, onde se cruza o franchise do monstro japonês com o do gorila gigante, restando saber se o público português ainda está a dar para este peditório... Não são blockbusters premium mas talvez seja o melhor que Hollywood tem agora para dar antes de títulos mais fortes como 007 sem Tempo para Morrer, Black Widow (previsto para o começo de maio) ou Cruela. Mais entusiasmante para quem gosta mesmo de cinema é a chegada do vencedor do Festival de San Sebastián, esse estimulante O Começo, de Dea Kulumbagashvili, pesadelo georgiano sobre os traumas da perseguição às Testemunhas de Jeová, bem como da operação Mark Cousins sobre o cinema no feminino. As Mulheres Fazem Cinema são mais de 800 minutos de memória sobre o contributo das mulheres na arte cinematográfica. Uma celebração feminina a ter lugar no Ideal e que ainda inclui Be Natural - A História nunca Contada de Alice Guy-Blaché, de Pamela B. Green, documentário com o selo de Cannes Classics e com Jodie Foster e Robert Redford nos créditos como produtores.. dnot@dn.pt