Faculdade vai entregar relatório sobre assédio ao Ministério Público
"A Direção da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vai fazer uma participação à Procuradoria-Geral da República, remetendo-lhe o relatório [sobre assédio e discriminação] da comissão criada pelo Conselho Pedagógico para que o Ministério Público faça o que entender conveniente."
A informação foi dada ao DN pela diretora da escola, Paula Vaz Freire, que esclareceu de seguida, por insistência do jornal, que dessa entrega ao MP não farão parte as denúncias propriamente ditas, já que estas "só são do conhecimento da comissão que elaborou o relatório".
Quanto à proposta do Conselho Pedagógico, decidida na reunião deste órgão esta terça-feira, de que a direção da faculdade abra um "procedimento especial de averiguação" sobre os fenómenos evidenciados no relatório, a responsável parece considerar-se impossibilitada de a levar a cabo.
"Internamente, e uma vez que no relatório em causa os denunciantes e os denunciados foram anonimizados", diz Paula Vaz Freire, "a Direção encontra-se por agora sem meios, quer para desencadear procedimentos disciplinares, quer para fazer queixas-crime quanto a suspeitos específicos. Admitimos, no entanto, que haja elementos da nossa comunidade académica - alunos, funcionários, docentes ou investigadores - que, com o enquadramento e o apoio adequados, possam querer avançar para denúncias concretas e entregar meios de prova."
Recorde-se que o relatório, cuja existência o DN revelou esta segunda-feira, e que conclui pela existência de "problemas sérios e reiterados de assédio sexual e moral perpetrados por docentes da Faculdade", não descreve as condutas em causa. Além de elencar aquilo que entende ser assédio moral, sexual e discriminação em função da nacionalidade/pertença étnica, género ou orientação sexual, o relatório quantifica as denúncias segundo esses tipos.
As condutas só são conhecidas dos seis membros da comissão paritária de docentes e alunos que examinou as denúncias. Estas foram anonimizadas para essa análise; só uma pessoa conhece os nomes dos visados.
De acordo com um penalista consultado pelo DN, face à entrega do relatório, cabe ao MP decidir se quer exigir acesso às denúncias propriamente ditas.
Conhecendo as denúncias, o MP aferirá se estas podem configurar crimes, e caso afirmativo fará um juízo sobre qual a melhor forma de fazer prova.
A haver denúncias que podem constituir crime, é provável que se trate de crimes semipúblicos, ou seja, cuja ação penal depende de queixa, pelo que será fundamental saber quem são as vítimas. Mas identificar os autores das denúncias é complicado: uma vez que foram preenchidas num formato Google Forms para tal disponibilizado pela comissão paritária, a única forma de chegar a quem as fez é através do IP (o endereço do computador/telefone ou wi-fi de acesso), a não ser que a própria denúncia dê elementos suficientes para tal identificação.
Haverá, como aventou um professor da FDUL ao DN, também a possibilidade de notificar todos os alunos de um docente visado - mas a tarefa pode ser hercúlea, já que há professores com centenas de alunos.
Esta decisão da direção levanta o problema do compromisso de anonimato que foi assumido pela comissão paritária face aos estudantes; houve discussão sobre esta matéria na reunião do Conselho Pedagógico desta terça-feira. Em causa esteve o facto de os funcionários públicos serem obrigados a denunciar condutas criminais de que tenham conhecimento, sob pena de acusação do crime de denegação de justiça e prevaricação.
Previsto no artigo 369º do Código Penal, este crime diz respeito ao funcionário que "no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce", e tem pena até dois anos, salvo se "o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém", caso em que a pena é até cinco anos.
Terá sido esse o motivo da decisão da direção da faculdade, que, como já fora comunicado na terça-feira, quer criar "um gabinete de apoio e aconselhamento jurídico para vítimas de assédio e discriminação dentro da nossa comunidade académica", para o qual requereu a colaboração das ordens dos advogados e psicólogos.
Explica Paula Vaz Freire: "A função desse gabinete vai ser acolher e ouvir vítimas de assédio, apoiando-as desde o primeiro momento. O aconselhamento jurídico servirá para as informar quando à relevância disciplinar ou criminal do que tiver ocorrido, para ajudar as eventuais vítimas a reunir provas, e, também, para lhes fornecer uma perspetiva do que será necessário fazer para prosseguir com os processos."
A Direção da FDUL diz ter recorrido às duas ordens profissionais "para que a independência do apoio psicológico e do aconselhamento jurídico que venham a ser prestados seja objetiva e inquestionável. É essa independência que irá dar às vítimas condições objetivas de consciência, liberdade e de autodeterminação da sua vontade para prosseguirem com as denúncias e permitirem a abertura de processos disciplinares na FDUL e, eventualmente, de processos-crime."
Confirmando que será o ex-bastonário dos advogados e comentador televisivo Rogério Alves "a gerir esse processo do lado da Ordem dos Advogados", Paula Vaz Freire certifica: "A faculdade não quer que eventuais vítimas de assédio moral, sexual ou de outro tipo estejam limitadas na sua atuação ou que tenham de suportar sozinhas o peso do que aconteceu." Lembra ainda a criação, a 18 de março, de "um endereço eletrónico para receber denúncias", tendo sido "até à data recebida uma participação, que está a ser avaliada".
Garantias que quer o Conselho Pedagógico quer o Núcleo Feminista não parecem considerar suficientes.
O primeiro, no projeto de ata que consta desde o fim da tarde desta quinta-feira no respetivo site, propõe, além da criação de um código de conduta e de um manual de boas práticas, que já faziam parte das recomendações do relatório, "a criação de um mecanismo célere e eficaz de apresentação de queixas relativas a assédios morais e sexuais" - o que indica não considerar o email criado pela direção, e que é gerido pela mesma, adequado como mecanismo de queixa.
O segundo, num documento de "propostas de medidas contra o assédio", enviado ao DN esta quinta-feira, na sequência da manifestação convocada pelo Movimento Contra o Assédio nas universidades de Lisboa, reivindica que o email para denúncias deve "ser gerido apenas por pessoa externa à faculdade" e "pertencente à estrutura criada para combater o assédio na academia, não a cargo de uma subdiretora".
Tal estrutura será "uma comissão contra o assédio centralizada na Universidade de Lisboa", que deverá, nesta proposta, ter a maioria dos membros externa à UL "para ser o mais imparcial possível". Deve também "centralizar toda a ação" no combate ao fenómeno, para que não se proceda a "uma revitimização da vítima", motivo pelo qual o Núcleo Feminista da Faculdade de Direito considera que "todas as pessoas envolvidas na comissão devem ter algum tipo de formação para lidar com as vítimas."
Este movimento, segundo a respetiva presidente, Dejanira Vidal, reunirá esta sexta-feira com a direção da faculdade.
Já a Universidade de Lisboa, questionada pelo DN sobre a sua reação às revelações do relatório, responde, através do seu diretor de comunicação, "nada ter a acrescentar à posição pública da diretora da FDUL".
E assegura: "No que diz respeito à Universidade, no seu todo, é ponto assente que tem tolerância zero para todas as situações de assédio e de descriminação. Temos aprovados, desde 2015, uma Carta de Direitos e Garantias e um Código de Conduta e Boas Práticas que salvaguardam, genericamente, os aspetos mencionados. O Provedor do Estudante, que é um órgão independente da Universidade, tem como função a defesa e a promoção dos direitos e interesses dos estudantes no âmbito da Universidade, recebe queixas dos estudantes que a ele se queiram dirigir, dando-lhes o adequado seguimento. Para além disso, qualquer ato que chegue ao conhecimento do Reitor ou das Direções das Faculdades é averiguado, retirando-se daí todas as consequências que houver a tirar dessas averiguações. E quando as iniciativas partem das escolas, o Reitor acompanha o processo desde o seu inicio até ao seu encerramento, como decorre dos Estatutos, sendo para o efeito coadjuvado pelo Procurador da Universidade." Acrescenta ainda: "Em relação ao apoio dado aos estudantes, a Universidade de Lisboa tem ao seu serviço mais de 20 profissionais a prestar serviço de apoio psicológico àqueles que manifestem necessidade de ajuda."
O facto de tudo isto existir e de os estudantes considerarem, como foi transmitido ao DN pela presidente da associação académica, Catarina Preto, e admitido por vários docentes no Conselho Pedagógico, que subsiste um clima de "terror" e medo de represálias na FDUL a obstaculizar denúncias, possibilitando um "sentimento de impunidade" entre os perpetradores, não parece ter levado a reitoria da UL, dirigida por Luís Ferreira, a considerar uma ação a nível de toda a universidade.
O referido Código de Conduta e Boas Práticas da UL, aprovado em 2015, decreta, no seu artigo 8º, que "qualquer forma de assédio", assim como "a discriminação na base da ascendência ou descendência familiar, género, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, situação económica, condição social, condição física ou quaisquer outros fatores de natureza discriminatória" são condutas que o violam.