Eventos de super contágio são o elemento chave da pandemia

Um dos eventos de grande propagação do SARS-CoV-2 ocorreu a bordo do navio de cruzeiro Diamond Princess, onde foram registados 700 casos positivos, entre eles o português Adriano Maranhão.
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Nas igrejas, navios de cruzeiro e até mesmo na Casa Branca, os eventos de grande disseminação do SARS-CoV-2, que podem ser responsáveis por adoecer dezenas, e até centenas, de pessoas espelham bem o potencial de infeção do novo coronavírus, o responsável pela pandemia de covid-19.

Especialistas dizem que estes eventos que originam um grande número de contágios são provavelmente o motor principal de transmissão da pandemia. E entender onde, quando e porquê eles acontecem pode ajudar-nos a controlar a disseminação do vírus antes que uma vacina esteja amplamente disponível no mundo.

A investigação sugere cada vez mais que o vírus não se espalha uniformemente pela população, mas sim através de situações extremas de super contágio, num padrão de quase "tudo ou nada".

Muitos estudos agora sugerem que grande parte das pessoas com covid-19 dificilmente transmitem o vírus a outras pessoas, mas quando as infeções acontecem, elas podem ser explosivas e provocar um surto de grandes dimensões. Desta forma, o SARS-CoV-2 pode infetar "10, 20, 50 ou até mais pessoas", disse Benjamin Althouse, cientista do Instituto de Modelagem de Doenças da Universidade de Washington.

Isso corresponde à "regra 80/20" da epidemiologia, onde 80 por cento dos casos advêm apenas de 20 por cento dos infetados, mas Althouse afirma que o novo coronavírus pode ser ainda mais extremo, com 90 por cento dos casos a surgirem potencialmente apenas de 10% dos portadores do vírus.

Este padrão de transmissão é como "atirar fósforos" numa pilha de madeira, afirmou à AFP.

"Atira-se um fósforo, ele não acende. Atira-se outro fósforo, ele não acende. Atira-se mais um fósforo e, desta vez, vê-se as chamas a acenderem", disse o cientista.

"Para o SARS-CoV-2, isso significa que embora seja difícil estabelecer-se em novos lugares, uma vez lá, pode espalhar-se rapidamente e para longe."

Eventos de grande contaminação são notícia em todo o mundo e ganham destaque na narrativa da pandemia à medida que esta se desenrola.

Em fevereiro, os 4000 passageiros que seguiam a bordo do Diamond Princess passaram semanas em quarentena num porto do Japão enquanto o número de infeções aumentava, chegando a 700. Um dos infetados deste cruzeiro foi o português Adriano Maranhão.

No mesmo mês, uma mulher de 61 anos, conhecida como "Paciente 31", esteve em vários serviços religiosos da Igreja de Jesus Shincheonji na cidade sul-coreana de Daegu.

Desde então, os Centros para Controlo e Prevenção de Doenças da Coreia associaram mais de 5000 infeções a Shincheonji.

Mais recentemente, o vírus conseguiu infiltrar-se na Casa Branca, infetando Donald Trump e uma série de assessores próximos do presidente norte-americano, apesar de uma série de medidas para mantê-lo afastado.

Reuniões políticas, conferências de negócios e torneios desportivos atuaram como incubadoras de infeções, mas estes eventos podem ser apenas a ponta do iceberg.

Um estudo realizado por pesquisadores dos EUA, baseado numa das maiores operações de rastreamento de contacto do mundo e publicado na revista Science em setembro, descobriu que a disseminação através dos supercontágios predominou.

Analisando dados dos primeiros quatro meses da pandemia nos estados de Tamil Nadu e Andhra Pradesh, na Índia, os autores descobriram que apenas 8% dos indivíduos infetados representavam 60% dos novos casos, enquanto 71% das pessoas com o vírus não o transmitiu a nenhum dos seus contactos.

Talvez este facto não deva ser uma surpresa.

Maria Van Kerkhove, epidemiologista de doenças infecciosas responsável pela resposta à pandemia da Organização Mundial da Saúde (OMS), afirmou, em outubro, que os supercontágios são uma marca registada" dos coronavírus.

Na verdade, esta situação foi observada em muitas doenças infecciosas.

Uma das propagadoras mais famosas foi Mary Mallon, uma cozinheira que trabalhava em Nova Iorque no início dos anos 1900 e foi a primeira portadora saudável de bactéria tifoide nos Estados Unidos.

Responsável por transmitir a doença a dezenas de pessoas, Mallon recebeu o rótulo de "Maria Tifoide" e foi confinada à força durante anos.

O sarampo, a varíola e Ébola também apresentam padrões de agrupamento, assim como os outros coronavírus, SARS e MERS.

No início da pandemia, foi dada muita atenção foi ao R0, a taxa de reprodução do SARS-CoV-2, que ajuda a calcular a velocidade de propagação de uma doença, uma vez que determina o número médio de pessoas infetadas por um indivíduo.

Mas olhar para a transmissão apenas através desta métrica muitas vezes revela uma "falha em contar toda a história", disse Althouse, que foi coautor de um artigo sobre as limitações de R0 no Journal of the Royal Society Interface neste mês.

Disse, por exemplo, que o Ébola, o SARS-CoV-2 e o vírus influenza (gripe) têm um valor R0 de cerca de dois a três.

Mas enquanto as pessoas com gripe tendem a infetar mais duas ou três "consistentemente", o padrão de transmissão para aqueles com Ébola e SARS-CoV-2 é super disperso, o que significa que a maioria dificilmente provocara contágios e alguns outros darão origem a dezenas de outros casos.

Uma métrica diferente - fator "k" - é usada para entender um surto, embora geralmente exija "dados e metodologia mais detalhados", disse Akira Endo, um estudante de pesquisa na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.

O fator de dispersão K associa o surgimento de surtos localizados a supertransmissores, uma pessoa que pode estar na origem de centenas de infeções.

A análise que fez à propagação inicial do vírus, aio nível global, publicada na Wellcome Open Research, sugeriu que a transmissão do SARS-CoV-2 poderia ser altamente disperso.

Uma pista reveladora, disse, é que alguns países relataram vários casos importados, mas nenhum sinal de transmissão sustentada, enquanto outros relataram grandes surtos locais com apenas alguns casos importados.

Mas mesmo o fator "k" pode não mostrar toda a realidade, disse Felix Wong, um pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

A sua investigação analisa os supercontágios da covid-19, publicados este mês no jornal PNAS, descobriu que estes surtos estavam a acontecer com mais frequência do que o previsto pelos modelos epidemiológicos tradicionais.

São "ocorrências extremas, mas prováveis", disse Wong à AFP.

Então, mas por que ocorre a supertransmissão? Não se sabe com certeza se fatores biológicos, como a carga viral, desempenham um papel importante.

Mas o que se sabe é que as pessoas podem espalhar o SARS-CoV-2 sem sintomas e num espaço mal ventilado e cheio - principalmente onde as pessoas falam, gritam ou cantam.

Pode ser por isso que um estudo na Nature, este mês, descobriu que restaurantes, academias e cafés são responsáveis ​​pela maioria das infeções por covid-19 nos Estados Unidos.

Usando os dados de telemóvel de 98 milhões de pessoas, os investigadores descobriram que cerca de 10% dos locais representavam mais de 80% dos casos.

Perante isto, os especialistas dizem que o foco deve ser dado a estes tipos de espaços - e na redução das oportunidades do vírus em aceder a um grande número de pessoas.

Wong referiu que o seu modelo de investigação mostrou que se cada indivíduo fosse limitado a dez contactos transmissíveis, "a transmissão viral morreria rapidamente".

A disseminação super dispersa também significa que a maioria das pessoas com teste positivo provavelmente fará parte de um surto.

Isto abre a possibilidade de outra forma diferente de rastrear infeções. "A ideia é que poderia ser mais eficiente rastrear e isolar supertransmissores do que isolar os possíveis infetados que, mesmo que tivessem contraído a doença, podem transmitir o vírus a a poucas pessoas", disse Wong.

Tanto o Japão quanto a Coreia do Sul usaram rastreamento de contacto retroativo, que foi creditado por ajudá-los a conter as suas epidemias, em conjunto com outras medidas de controlo

Máscaras, distanciamento social e redução de contactos são formas de limitar as oportunidades de transmissão, disse Althouse, acrescentando que até mesmo caracterizar as pessoas como "supertransmissores" é enganador.

"Existem grandes diferenças na biologia entre os indivíduos - posso ter um milhão de vezes mais vírus no meu nariz do que outra pessoa", mas se for uma pessoa que não contacta com ninguém "não infeto ninguém", afirmou.

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