"Este conflito na Ucrânia pode ser uma oportunidade para a China"

Diretor do Observare e professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa, Luís Tomé analisa as causas da guerra, os riscos de alastramento e o impacto nas relações entre as potências.
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Qual o objetivo de Putin com este ataque generalizado à Ucrânia?
Verdadeiramente, só o próprio Putin e os seus mais próximos saberão. Esse objetivo pode passar por alargar os territórios das duas repúblicas "independentes" de Luhansk e Donestk aos restantes dois terços da região de Donbass e, eventualmente, anexar toda a Donbass na Federação Russa como fez com a Crimeia, em 2014. Também pode ser conquistar e anexar uma parcela mais alargada correspondente ao território da chamada Novorossiya, província do antigo Império russo entre o final do século XVIII e o início do século XX que abarca toda a região norte do Mar Negro, atualmente partes sul e leste da Ucrânia. O objetivo final pode até ser acabar com a existência da Ucrânia enquanto Estado soberano, anexando-a à Rússia - até porque Putin afirmou que a Ucrânia separada da Rússia não tinha razão de ser. Ou, então, decapitar e derrubar a atual liderança política e militar da Ucrânia e instaurar um governo pró-russo em Kiev, assim tornando a parte Ocidental da Ucrânia num Estado satélite e recriando a parte Sul e Leste da atual Ucrânia numa nova confederação soberana igualmente satélite de Moscovo ou, então, integrada na Federação Russa. Mas há outros objetivos para lá da Ucrânia, mais amplos e a prazo, relacionados com o redesenho geopolítico de todo o espaço pós-soviético, a reorganização do sistema de segurança na Europa e a recomposição da ordem mundial em linha com os seus interesses e valores e na qual a Rússia pretende ser um dos pólos determinantes. O que está a acontecer atualmente na Ucrânia faz parte de um projeto revisionista maior que Putin tem promovido desde que subiu ao poder, em 1999, e cujo processo transformacional continuará enquanto puder.

Há responsabilidades da NATO no ponto a que a situação chegou?
Ao longo das últimas décadas, a NATO, bem como a UE e os respetivos Estados-membros das duas organizações, têm cometido vários erros, incluindo no relacionamento com a Rússia e nas políticas e estratégias na direção do espaço pós-soviético. Mas esses erros e incoerências não justificam nem legitimam o uso da força militar, os ciberataques, os assassinatos de opositores pela Rússia de Putin ou a agressão contra a soberania e integridade territorial de outros Estados. De igual modo, certos erros que foram cometidos, na minha perspetiva - como o convite à Ucrânia e à Geórgia para aderirem à Aliança Atlântica, em 2008, ainda que sine die; os Estados-membros da NATO e da UE terem apoiado, no final de 2013 e início de 2014, o derrube do Governo, do Parlamento e do Presidente da Ucrânia pró-russos que tinham sido democraticamente eleitos; ou a ausência de pressão e empenho ocidental para renegociar e implementar devidamente acordos de paz entre Kiev e as autoridades separatistas de Luhansk e Donestk, desde 2014 - , não justificam nem legalizam nem legitimam o desmantelamento forçado da Ucrânia, a violação da soberania e integridade territorial da Ucrânia e a agressão militar russa a que estamos assistir. A responsabilidade disto é exclusivamente da Rússia de Putin. E recorde-se que ao longo destes últimos meses em que se assistiu ao reforço das capacidades militares russas junto às várias fronteiras da Ucrânia, Putin e outros dirigentes russos sempre disseram que a Rússia não queria nem iria invadir a Ucrânia, e que as acusações nesse sentido eram mera "histeria Ocidental". Afinal, estavam a mentir deliberadamente, enquanto preparavam a invasão que está a decorrer.

Com Donald Trump na presidência este cenário de choque entre Estados Unidos e Rússia teria acontecido igualmente? Ou Joe Biden enviou sinais errados a Putin?
É impossível saber o que teria acontecido se, em 2021 e 2022, continuasse Trump a ser o presidente dos EUA. Podemos apenas especular, sabendo que a Presidência Trump cultivou boas relações com dirigentes autocráticos, do príncipe-herdeiro da Arábia Saudita ao ditador da Coreia do Norte, e incluindo Putin por quem Trump nunca escondeu um certo fascínio - lembrando ainda que a Rússia interferiu nas eleições presidenciais americanas de 2016 a favor de Trump. Além disso, o "America First" de Trump foi tão fraturante no sistema internacional e na comunidade das democracias e tão prejudicial quer à ordem mundial liberal quer à imagem e ao poder global dos Estados Unidos que a percepção de acelerado declínio dos EUA com Trump contribuíram para a maior assertividade e agressividade de países como a Rússia e a China nos últimos anos. Por outro lado, todos sabemos que Trump não era propriamente favorável à NATO, e é possível até que a Aliança não sobrevivesse a um segundo mandato presidencial de Trump - pelo que a questão do putativo alargamento à Ucrânia deixava automaticamente de se colocar. Significa isto que Putin poderia ter tentado alcançar os seus objetivos contando com o total alheamento dos EUA de Trump (como na Síria) e não em confronto com os EUA e os seus aliados e parceiros democráticos como acontece agora com a Presidência Biden. Não se trata de sinais certos ou errados, mas do que distintamente valorizam e significam Trump e Biden. Mas, de novo, quem provocou esta crise e agrediu a Ucrânia foi a Rússia de Putin, não um presidente dos EUA.

É só a dissuasão nuclear que impede o conflito entre NATO e Rússia?
Sim, estou convencido que a lógica da "destruição mútua garantida" é o que fundamentalmente impede o conflito militar direto entre a Rússia e a NATO. Essa dissuasão inibe a Rússia de atacar Aliados NATO, designadamente os Países Bálticos, mas também inibe a NATO de responder militarmente a agressões da Rússia a Estados não-membros da Aliança, como a Geórgia ou a Ucrânia. A interdependência económica, comercial e energética, designadamente entre a Rússia e a UE, também poderia ser um dissuasor de agressões russas, mas o facto é que não só não as dissuadiu como tornou a UE mais dependente e vulnerável perante a "torneira russa" de energia, em particular, de gás natural. Permitir e promover esta excessiva dependência face à Rússia é, comprovadamente, um erro geopolítico da Alemanha e da UE.

Os ciberataques vão ser a outra parte das guerras de hoje e do futuro?
Claro. Como se tem visto em inúmeras ocasiões, os ciberataques, bem como campanhas de propaganda, desinformação e contra-informação no ciberespaço, nas redes sociais e nos novos media, são uma componente vital das guerras e conflitos atuais, tornando também mais difícil discernir entre guerra e paz, o carácter real e a intensidade do conflito, quem são os reais perpetradores desses ataques e, portanto, dificultando a retaliação contra esse tipo de "agressores".

Como afeta esta guerra a China em termos de posição internacional?
Desde logo, a China tem o desafio de conciliar a parceria estratégica com a Rússia - muito útil para Pequim em termos de abastecimento de energia e de armamentos, rotas da nova "rota da seda" chinesa e de transformação da ordem mundial numa frente anti-EUA a anti-Ocidental - com a manutenção de suficientes boas relações com uma série de economias e países desenvolvidos (sobretudo, europeus, mas também EUA e da Ásia-Pacífico) opositores à agressão da Rússia e indispensáveis à continuidade da ascensão económica da China. Em segundo lugar, o que a Rússia está a fazer na Ucrânia é uma flagrante violação do princípio da "não ingerência nos assuntos internos" de outros Estados que a China tanto invoca, embora Pequim resista a reconhecê-lo. Por outro lado, este conflito na Ucrânia pode ser uma oportunidade para a China, seja para aumentar a sua influência sobre Moscovo posicionando-se como óbvia alternativa para atenuar os efeitos das sanções financeiras e económicas ocidentais contra a Rússia seja posicionando-se como "mediadora" numa solução político-diplomática entre a Rússia e o "Ocidente". Finalmente, o regime chinês está muito atento ao desenrolar da crise e do conflito e, em particular, à reação dos EUA e do Ocidente para tirar lições e ilações sobre a sua própria postura relativamente a Taiwan que Pequim considera parte inalienável da China e que pretende unificar na "mãe pátria". Por tudo isto, a situação na Ucrânia e na Europa não pode ser desligada da situação na Ásia-Pacífico nem da transformação em curso na geopolítica mundial e na ordem internacional de que a China é elemento proeminente.

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