O Teatro Nacional D. Maria II reabre amanhã as portas, três meses após as ter fechado, com By Heart, a última peça que representaram, desta vez no Brasil. Os dois dias de apresentação estão esgotados e a receita reverte para um Fundo de Apoio aos Profissionais da Cultura. Profissionais que viram as suas condições financeiras agravadas com a pandemia. O D. Maria assumiu os compromissos financeiros, mesmo com as salas fechadas. Os espetáculos adiados foram reagendados, outros estão a ser criados, o que faz que a nova temporada tenha 45 peças. E vai continuar o "D. Maria II em Casa"..Qual foi a sua principal preocupação quando foi decretado o estado de emergência? Enquanto diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II foi a de assegurar que, no encerramento do teatro, as coisas se fizessem o mais depressa possível e com o máximo de segurança para as pessoas. Também houve preocupação pelos que estavam distantes, porque uma parte de nós estava no Brasil, incluindo eu. Precipitámos o nosso regresso, até porque as representações previstas no Brasil iam ser canceladas, para que pudéssemos regressar a casa e às famílias, num momento em que havia alguma ansiedade..Que peças estavam a apresentar? Estávamos com duas peças: o By Heart e o Sopro. Ironicamente, By Heart foi a última peça que o D. Maria apresentou antes do início do confinamento, no Brasil, e será a primeira a apresentar após esse período, já neste sábado e no domingo na Sala Garrett. Não chegámos a apresentar o Sopro porque os teatros foram encerrados. Será apresentada no dia 12 de julho no Festival ao Largo, no Palácio de Ajuda..Tiveram dificuldades em regressar? Foi bastante célere o regresso a Lisboa, foi numa altura em que ainda não era difícil conseguir voos. E tivemos muita assistência do festival MITSP [Mostra Internacional de Teatro de São Paulo] e da nossa equipa que estava em Lisboa. Encerrámos o D, Maria a 13 de março e regressámos a 14..Foram todos para casa? O Teatro Nacional D, Maria II reduziu-se a uma equipa mínima para vigilância e manutenção, a maioria dos cerca de 90 trabalhadores ficaram em casa, e a quem foi possível, em teletrabalho. Este momento de confinamento e de teletrabalho foi de um grande volume, porque o trabalho invade-nos a qualquer hora, casa adentro, e há um nível de disponibilidade maior. Uma das coisas que esta pandemia nos trouxe foi problemas inéditos diariamente. No teatro estamos habituados a uma certa incerteza e irregularidade - cada espetáculo, cada trabalho artístico, cria problemas diferentes -, mas nesta pandemia muita gente esteve connosco nessa incerteza, a lidar diariamente com problemas com os quais nunca tinha lidado na sua profissão. Foi muitíssimo exigente e a equipa do Nacional foi absolutamente inexcedível, e só por isso é que, muito antes do que prevíamos, reabrimos o teatro neste fim de semana. No início de maio, começou a ser possível regressar, muito gradualmente, com horários desencontrados, e com todos os cuidados de segurança..Quando é que perceberam que seria possível regressar ainda em junho? A reabertura começou a ser pensada logo no início do confinamento. A meio de março, começámos a discutir os cenários possíveis e as implicações imediatas. Sendo um teatro de criação, em que muitos dos espetáculos beneficiam da nossa equipa e das nossas instalações para estrear, sabíamos que havia muitos espetáculos, nomeadamente os previstos para maio e junho, que não iam existir. Tomámos a decisão de empurrar todo o trabalho para a frente e trabalhar num cenário de abertura para setembro, em articulação com o Governo..Anteciparam a abertura em mais de dois meses. Acompanhando a evolução da pandemia, fomos confrontados com a possibilidade de voltar ao trabalho no início de junho. Preparámos o regresso aos ensaios e, à medida que fazíamos a planificação, percebemos que havia oportunidade de abrir mais cedo que o previsto. Reabrimos no próximo sábado, mesmo que durante o verão não o possamos fazer em permanência. Vai ser um verão intermitente, apresentamos o espetáculo no edifício do Teatro Nacional, em outras salas, ao ar livre, em festivais. Vamos ter um verão bastante intenso de regresso ao público, embora as portas só sejam finalmente escancaradas em setembro. Até lá, vamos usar o nosso esforço para criar os espetáculos que não pudemos fazer durante o período de confinamento e permitir aos artistas e aos técnicos voltar ao ativo. E, sobretudo, fazer os espetáculos em que estavam a trabalhar quando foram apanhados por esta pandemia..Até porque também convidam criadores externos a apresentar no D. Maria II. Essa foi a nossa segunda preocupação, assumir as nossas responsabilidades, os nossos compromissos financeiros com todos os artistas, técnicos, companhias independentes, e não apenas quem tem contrato com o D. Maria II. Cumprimos integralmente os nossos compromissos financeiros, pagámos como se o teatro estivesse a funcionar. Sabíamos à partida uma coisa, e que tem estado na ordem do dia: que não havia proteções adequadas para estas pessoas. O setor é já muito precário, a legislação laboral para a cultura é péssima, quase inexistente, e, portanto, estas pessoas ficariam em grandes dificuldades. Não sabíamos quanto tempo íamos estar fechados, tomámos esta decisão sabendo que corríamos um grande risco orçamental, mas era a única forma de esta crise ser coletiva, como deve ser numa democracia, e não uma sucessão de crises individuais. Tomámos a decisão de honrar integralmente os nossos serviços e reagendar o trabalho que não estava a ser feito nestes meses. Felizmente, os cerca de 20 espetáculos planeados estão reagendados, cumprimos os compromissos, o que também criou em todos uma enorme boa vontade, uma enorme esperança e a determinação para continuarem a trabalhar com o D. Maria nos próximos anos..Quando é que serão apresentados? Até ao verão do próximo ano. Entre o próximo setembro e julho de 2021, não só acontecem os espetáculos que estavam previstos como os que não puderam acontecer devido à pandemia. No dia 28 de junho, vamos anunciar a programação da próxima temporada, que é composta por 45 espetáculos, dos quais 20 transitam deste ano..De certa maneira, foi o porta-voz dos artistas e dos técnicos que não têm uma retaguarda como os profissionais do D. Maria II. Não fui porta-voz de ninguém, por vezes falo em nome do Teatro Nacional D. Maria II, mas as minhas opiniões sobre o setor, o que deve ser o investimento na cultura, a valorização da criação artística em Portugal, são individuais. Por ter uma plataforma de visibilidade, um cargo que tem responsabilidades acrescidas, sinto que devo tomar uma posição de defesa da dignidade dos artistas e dos técnicos, dos trabalhadores da cultura, e do que podem ser ideias e práticas que ajudem o país, que permitam que a cultura se posicione como uma ferramenta de melhoria das nossas vidas. Exprimi a minha opinião, mas o setor felizmente não precisa de mim para porta-voz, muitas pessoas assumiram posições, há um sindicato forte, houve bastante reivindicação e diálogo..Mais unidos com a pandemia ou essa união já existia? A classe artística é mais unida do que muitas vezes se diz. Durante esta pandemia, houve um solidificar dessa união, dessa capacidade de diálogo, mas sobretudo de entreajuda. É muito singular repararmos em três comportamentos que me parecem características fortíssimas de reação da classe artística. Em primeiro lugar, o não baixar os braços e solidariamente continuar a trabalhar, se calhar, demasiadas vezes gratuitamente. Dissemos "não paramos", vamos continuar em contacto com o publico da forma que tivermos, o que ajudou muitas pessoas, sobretudo as que estavam mais sozinhas. A segunda, foi a capacidade de refletir e reivindicar, de dizer o que está mal e o endereçar com muita clareza permitindo, inclusive, que tenha havido consequências, com compromissos por parte de decisores públicos. Por último lugar, a capacidade de entreajuda. Em poucos setores da sociedade portuguesa vimos uma tão grande capacidade de ajuda perante uma grande calamidade. Organizaram-se teias de entreajuda, que foram fundamentais para que muitos trabalhadores não ficassem numa situação ainda mais dramática..Porque é que escolheu a peça By Heart para reabrir? By Heart é um solo da minha autoria e que já foi apresentado cerca de 250 vezes, em vinte países, nos últimos sete anos. Imagino que seja um dos espetáculos mais internacionais do teatro português e é também um espetáculo sobre o poder do encontro entre as pessoas, o poder que as palavras têm de nos colar e ligar fios invisíveis, fala também da importância da criação artística na vida das pessoas, da literatura neste caso. Por outro lado, é um espetáculo tecnicamente muito simples. Não sei ainda o que irá acontecer quando voltarmos a estar juntos, com uma redução de 50% da assistência, mas prevejo que o valor de estarmos juntos tenha reconquistado uma força vital, que só por si seja um acontecimento. Parece-nos que este espetáculo responde bem ao momento histórico que estamos a viver, e o facto de ter esgotado os dois dias é a prova de que o público também precisa desse reencontro..Em que papel gosta mais de se ver: ator ou diretor artístico? Comecei como ator e é a profissão que ponho quando me pedem para preencher um formulário. O que acontece é que, escrevendo e encenando, consigo compatibilizar essas atividades com as minhas responsabilidades de diretor artístico. Tenho continuado a apresentar trabalhos como ator, mas desde que fui para o Teatro Nacional D. Maria II, há cinco anos e meio, não criei nenhuma peça como ator, espero fazê-lo em breve, achei que agora era uma atividade que exigia demasiado de mim. Mas apresentar By Heart é fácil e barato, o diretor artístico do Teatro Nacional quando sobe ao palco não custa mais dinheiro. Num ano em que também era difícil orçamentalmente, é uma resposta simples recorrer aos espetáculos que temos na mão. Também quis dar este exemplo de subir ao palco e dizer que é hora de começar a trabalhar. Permite dizer a todos que - nas primeiras noites também subi, correndo o risco de qualquer artista em palco, sem máscara - é preciso dar confiança e esperança..A antecipação da reabertura quer dizer que estamos a habituar-nos a viver com a covid-19 ou não está a ser tão grave como inicialmente se previa? A evolução da pandemia permite que, hoje, a Direção-Geral da Saúde, na qual temos uma confiança muito firme e absoluta, nos indique que é possível abrir equipamentos culturais cumprindo determinadas regras. É essa confiança que nos permite reabrir o teatro antes da data prevista, mas também a noção de que é necessário começar a reconstruir, a reatar laços..Como é representar com as novas regras, nomeadamente o distanciamento social? Nesta peça estou sozinho, mas sobem ao palco dez espectadores e vamos garantir as regras de segurança. Essas questões vêm surgindo durante os ensaios. É impossível, a menos que o espetáculo seja especificamente adaptado para isso, representar com máscara. Usamos a máscara e respeitamos o distanciamento quando se está fora do palco, mas, quando se sobe ao palco, há uma possibilidade de não uso de máscara e de estarmos mais próximos um dos outros, o que nos traz responsabilidades acrescidas fora do teatro, no nosso quotidiano. Somos profissionais e acredito que as pessoas sejam capazes de responder, assim haja condições..Fala sobretudo em condições económicas? Vai ser muito importante perceber como é que as salas, com muito menos capacidade económica do que o D. Maria II e que dependem da receita de bilheteira, vão ter acesso aos apoios, e quanto vão ter, para pôr em prática as medidas de segurança. São muitos espaços e com características muito diferentes, preocupa-me como vão conseguir implementar as medidas de segurança. Não tinham essas medidas previstas nos orçamentos, não vão ter público suficiente para ter um excedente orçamental, sobretudo depois destes meses difíceis, e, embora tenham sido anunciados apoios, é importante perceber como vão ser ativados, se o serão a tempo, quem vai ter direito a receber e quanto. As regras parecem-me um pouco omissas. É muito importante usar critérios de igualdade e de conhecimento do terreno..Aumentar o preço dos bilhetes pode ser uma solução? Depende muito da relação de uma sala de espetáculos com o espectador. Não sou apologista, neste momento, do aumento do preço dos bilhetes como resposta ao problema económico, sobretudo nos teatros públicos. O D. Maria II tem um preçário altamente democrático, muito acessível, e assim vai continuar. Também não concordo com uma política do espetáculo gratuito, desvaloriza completamente o trabalho artístico. Acho perigosa a utilização em excesso da entrada livre para recuperar a confiança do público, o publico é altamente inteligente, sabe que o teatro tem valor e, neste momento, é muito importante estar junto dos artistas e da cultura, apoiar e devolver o valor a esse trabalho artístico. Encarecer os bilhetes pode ser inevitável em alguns setores, não acho que nas grandes instituições públicas seja correto, e tornar todos os espetáculos gratuitos, acho que é um exagero. É importante perceber o que é que esta pandemia já fez ao teatro. É uma coisa que não conseguimos prever com as nossas profecias, só o podemos descobrir a fazer teatro e no diálogo com o público..Como é que o teatro nos pode ajudar nesta crise? O teatro pode ser um lugar onde podemos voltar a conquistar o direito de nos projetarmos no futuro. Precisamos de quem nos imagine o futuro, e os artistas sempre foram, em todas as épocas da história, pródigos em imaginar o futuro. Tive essa experiência porque estava a adaptar dois romances de José Saramago quando a pandemia começou. Achava o Ensaio sobre a Cegueira uma alegoria fantástica, e agora, cada vez mais, parece-me não só realista como quase um livro-documentário. É interessante notar como a arte tem essa capacidade de nos projetar no futuro. Neste momento, precisamos muito disso.Vai continuar o D. Maria II em Casa? Vai continuar até 28 de junho, data em que faremos a apresentação da próxima temporada, mas regressará depois alguma programação digital. Fazemos uma pausa neste ritmo diário de propostas de espetáculos, de leitura de poesia e de histórias infantis, entrevistas, conversa com artistas, mas temos em preparação vários projetos em que aquilo que descobrimos na relação com o publico através das plataformas online terá consequências. O D. Maria II online, que já era uma realidade, foi agora muito acelerado, também nos serviu de laboratório para perceber o que podemos inventar no futuro, e o D. Maria ganhará um novo fôlego online nos próximos tempos.