Há doentes infetados com covid-19 que já podem sair do hospital mas que ali continuam por não terem condições para se tratarem em casa. A maioria vive só e é dependente. Há doentes a quem falta o dinheiro para a compra de material de proteção individual. Estes não têm idade, chegam a ser famílias inteiras, e a quem a pandemia até já tinha roubado o emprego..Há doentes tão marcados pela solidão que em desespero e em pânico pela doença se dirigiram às urgências hospitalares a pedir que os internassem. Ali sentiam-se protegidos. Mas também há doentes, tão doentes, que queriam recusar o internamento. Tinham pais idosos e ninguém para os cuidar. Para estes foi pedido internamento social, e uma solução para os pais..Há crianças que não estavam infetadas e que tiveram de ficar internadas. Os pais estavam positivos e não tinham com quem as deixar. Há bebés que nasceram e que saíram do berçário "sem existirem legalmente" - os serviços de registo fecharam portas nos hospitais com a quarentena -, muitos filhos de imigrantes e também sem papéis no nosso país. "Podemos perder o rasto a estas crianças", explicam-nos..Há doentes dependentes de instituições que os ajudam a ter comida, medicamentos e até resposta para outras adições, mas muitas encerraram e a única saída era a porta aberta das urgências e os serviços sociais hospitalares. Os pedidos de apoio económico aumentaram. Há doentes e doentes, mas para todos se tenta uma resposta. Nem todas chegam, por falhas no próprio Estado, na comunidade, nas famílias, e por muitas outras razões. Ou quando chegam não são nos timings que se desejam..É certo que a covid-19 trouxe uma onda de solidariedade, despertou autarquias, juntas de freguesia, empresas e até hotéis. "Tem havido um esforço grande, mas há respostas que falham. As instituições não têm capacidade para tudo", afirmam-nos. Mas o que falta mesmo é "uma verdadeira política social. Não tem sido prioridade para os políticos", argumentam..Aliás, "esta pode ser a oportunidade para se construírem respostas mais adaptadas à realidade de hoje. É preciso refletir sobre a articulação e diálogo intersetorial. É preciso que o próprio Estado torne as políticas de ação social uma prioridade", defende Alexandra Duarte, diretora do Serviço Social do Hospital São João, no Porto, um dos que maior número de casos de infetados e de situações sociais recebeu desde março..A assistente social, de 49 anos, e há 23 na profissão, alerta para o facto de Portugal ser um país envelhecido e de continuar a não pensar "seriamente no envelhecimento como um ciclo da vida. É urgente que o faça. As respostas já não se adaptam à realidade"..Alexandra Duarte conhece o terreno em que trabalha, começou na Segurança Social, depois aceitou o desafio de integrar uma equipa hospitalar. Lidera 23 profissionais, cada um com a responsabilidade de acompanhar cerca de 60 camas, embora o ideal sejam só 24. Reconhece que são poucos, "temos um ratio muito inferior a outras unidades idênticas à nossa, mas temos sempre uma postura de proatividade, de multidisciplinaridade, com todas as equipas com quem trabalhamos", comenta..Para ela, a covid-19 veio provar que o serviço social, ainda que seja uma das profissões invisíveis na saúde, é fundamental. "Hoje não é só o fator biológico do doente que leva à alta hospitalar, se não se tiver em conta o impacto social e as limitações que o próprio doente tem na sua vida, todo o investimento e tratamentos serão em vão, porque o doente regressará"..Intervenção com respostas criativas.O assistente social é cada vez mais um mediador, entre doentes, equipas profissionais, famílias, instituições, mas é também cada vez mais um defensor dos direitos humanos para todos a quem esteja a ser vedado uma vivência com dignidade..Por isso mesmo, no combate à pandemia, que ainda não cessou, "os serviços tiveram de se adaptar aos novos desafios. Tivemos de ser ainda mais proativos, reinventar-nos e recriar muitas soluções que poderiam ser inimagináveis, mas que resultaram nesta altura de grande insuficiências", sublinha Alexandra Duarte..O mesmo aconteceu com as instituições, que também tiveram de se reorganizar para o contexto de emergência. "Muitas instituições têm utentes e profissionais infetados. Não têm pessoal suficiente para cuidar das pessoas e não estão a aceitar novos utentes. Isto tem sido um problema grande", explica a mesma. "Tem havido alguma solidariedade de autarquias ou de freguesias, mas não nos timings que desejaríamos..Muitos hotéis disponibilizaram camas, mas não têm os cuidados necessários para quem está dependente". O Hospital São João foi o primeiro a receber casos de doentes infetados em Portugal. Era a unidade de referência para a doença na zona Norte, e apesar de não haver tanta afluência às urgências, o trabalho de intervenção social continuou "intenso e complexo. A nossa maior dificuldade são as respostas para os doentes dependentes. Há doentes que ainda têm a doença, mas que já não carecem de cuidados médicos e que poderiam regressar a casa, mas que continuam no hospital. Não têm condições", afirma..Alexandra Duarte não dá números, refere que são alguns, e que estão a criar pressão no funcionamento hospitalar. "Há quem seja autónomo, mas o vírus leva algum tempo a sair do organismo e para irem para casa precisavam de apoio domiciliário. As famílias têm colaborado, algumas com uma disponibilidade fora de série, mas também têm de trabalhar e é aqui que esbarramos com a falta de resposta na rede comunitária"..A resposta já era insuficiente e a covid-19 ainda agravou, mas alguns casos até têm apoio em casa, mas falta-lhes o dinheiro para comprar material de proteção. "A obtenção deste equipamento é muito cara para algumas famílias, que não têm capacidade económica para ir à farmácia e adquirir máscaras, desinfetantes, luvas, aventais, batas, que é o que um doente precisa para continuar a ser tratado em casa. E não é só para ele, para o cuidador também. Depois, é preciso que estes tenham alguma literacia para saberem prestar os cuidados necessários, e a maioria não tem", sublinha Alexandra Duarte..Retrato hospital a hospital.O retrato não muda muito no resto do país, embora haja algumas diferenças de região para região ou de hospital para hospital. Mas em Coimbra, a diretora do serviço social do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), Isabel Ventura, também confirmou ao DN, em resposta por e-mail, que a maior dificuldade sentida tem sido "a falta de resposta social, a nível de acolhimento temporário, devido ao encerramento de centros de dia, à incapacidade dos serviços de apoio domiciliário receberem novos utentes e ao encerramento temporário de outros apoios comunitários"..A diretora de serviço, que lidera uma equipa de 57 profissionais distribuídos pelos vários polos que integram este centro hospitalar, sublinha: "No âmbito dos casos covid-19, a programação da alta hospitalar levanta novas questões relacionadas com o isolamento profilático e, portanto, na elaboração do diagnóstico social, identificam-se as necessidades tendo presente as novas exigências, designadamente, alojamento, apoio familiar, recursos da comunidade, assegurando a continuidade de cuidados em segurança e evitando qualquer orientação que potencie eventual cadeia de contágio"..Em Lisboa, o retrato muda de hospital para hospital. À urgência de São José, que integra o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) acorreram sobretudo migrantes assintomáticos, oriundos do Bangladesh, Nepal, Índia, Paquistão, Chechénia, Nigéria, Guiné, que precisavam de isolamento social, mas a quem faltavam "condições de habitabilidade e ausência de exequibilidade do isolamento no domicilio"..A responsável pelo serviço social deste centro, Maria Lopes, salienta que neste tipo de resposta o apoio dado pela Junta de Freguesia de Arroios foi fundamental, como da autarquia e da Base Aérea da OTA. Mas o hospital teve ainda de dar resposta a doentes, que, por internamentos longos perderam a mobilidade, maioritariamente idosos e sem suporte familiar para assumir cuidados, alguns também infetados, que tiveram de ser encaminhados para cuidados continuados, mas aqui a resposta até chegou com celeridade. Chegaram também idosos integrados em lares, que ali tiveram de aguardar pelo regresso até o equipamento ter condições de confinamento..Maria Lopes também afirma que o seu serviço não registou um decréscimo dos casos que necessitam de intervenção social, durante o confinamento e até nesta primeira semana do fim de estado de emergência. .Casos silenciados e bebés sem registo.No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), que integra os hospitais Santa Maria e Pulido Valente, o trabalho não diminui, mas houve casos habituais que não chegaram, como os de violência doméstica e maus tratos a crianças. Esta "é a grande preocupação. Decerto, não chegaram porque a violência diminuiu. As pessoas estiveram fechadas em casa, o nosso receio é que este silêncio possa levar a situações mais graves", sublinha Argentina Castilho, diretora do serviço social do CHULN..No entanto, há uma distinção em relação ao Norte, Argentina Castilho sublinha que aqui não houve dificuldade nas respostas aos doentes dependentes. "Sabemos que há hospitais que estão a sentir a pressão de terem doentes positivos, que não podem regressar a casa, mas não temos esse problema"..Aliás, a resposta a estes doentes até melhorou. "Tivemos um grande apoio da Santa Casa da Misericórdia e de outras instituições para quem precisava de uma vaga em instituição. E quando os doentes saem levam até equipamento de proteção individual para os primeiros dias"..À urgência de Santa Maria chegaram outros doentes que precisaram de intervenção social: idosos sozinhos, em pânico com a doença, que "nos pediam para ficarem internados, sentiam-se mais seguros. Tivemos que arranjar acolhimento temporário ou apoio domiciliário"; chegaram doentes, tão doentes, que tinham de ficar internados e que não queriam, por terem pais com mais de 90 anos para cuidar. "Tivemos de fazer internamento social e arranjar solução para os pais"; mas também chegaram outros, normalmente apoiados por instituições que tiveram de fechar as portas, e que "recorreram a nós, as nossas urgências são uma porta aberta", explica..A diretora de serviço não quantifica os pedidos de apoio económico, mas diz que estes aumentaram e muito, relativamente aos últimos meses. Mas a covid-19 trouxe outras situações antes nunca vistas. "Antes as crianças que aqui nasciam não saíam sem serem registadas, com o estado de emergência os serviços da conservatória fecharam e muitos bebés saíram daqui sem papéis. Muitos deles filhos de imigrantes ilegais a quem depois será mais difícil de realizar este ato, ou porque não têm papelada, ou porque não têm internet, não sabemos se são crianças a quem perdemos o rasto", alerta..Também houve crianças que estavam negativas e que tiveram de ficar internadas. Os pais estavam positivos e não tinham com quem as deixar. Uma das situações recentes é a de um bebé com quatro dias, que está cá e vai estar"..Argentina Castilho, de 57 anos, 29 de profissão, desde 2014 na chefia do serviço, lidera uma equipa de 54 profissionais. Para ela, este é também "o momento que se deveria aproveitar para fazer mudanças. O momento para se aproveitar a dinâmica de solidariedade que se criou e a adaptação que os serviços tiveram de fazer para responder a todas as necessidades. Se nada se fizer, volta tudo ao mesmo". E não é suposto, não é suposto que depois da pandemia tudo fique igual, pois nada será como antes.