Há um grupo no WhatsApp chamado Greve Cirúrgica, que junta mais de 200 enfermeiros portugueses. O nome é óbvio: foi esta inédita paralisação dos enfermeiros dos blocos operatórios que adiou, entre 22 de Novembro e 31 de Dezembro do ano passado, mais de 7500 cirurgias no Serviço Nacional de Saúde. A greve foi convocada por dois sindicatos, ambos criados recentemente, o SINDEPOR e a ASPE. E criou uma tensão extrema com o Governo, que anunciou esta semana o corte de relações com a Ordem dos Enfermeiros e a requisição civil - também ela insólita - para quatro hospitais, por não estarem a ser cumpridos os serviços mínimos. Todos os dias cresce o tom das acusações..No grupo do WhatsApp, a luta dos enfermeiros é preparada ao pormenor. Por quem tem o dever de o fazer, como os líderes sindicais da ASPE, por exemplo, mas também por quem está proibido por lei de manter qualquer atividade sindical. É o caso de João Paulo Carvalho, Presidente da secção regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros..Este dirigente da Ordem dos Enfermeiros é muito direto nas sugestões que faz aos enfermeiros e aos sindicatos: "Greve por tempo indeterminado... com mínimos iguais aos turnos de domingo... o pessoal recebia e a produção seria afetada." Noutra ocasião, o dirigente da Ordem repetiu a ideia: "Continuemos a fazer o mais importante... greve em força, enervar o governo e os [a]dministradores.".A lei é clara: "As associações públicas profissionais estão impedidas de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros." A norma é ditada pelo artigo 5º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, aprovada pelo Governo anterior, chefiado por Pedro Passos Coelho..A 'linha ténue'.João Paulo Carvalho tem consciência dessa limitação, mesmo quando apela à greve. É ele quem a recorda, depois de ser interpelado por uma dirigente sindical da ASPE que lhe pedia apoio financeiro para as manifestações. Lúcia Leite, a primeira presidente da comissão instaladora da ASPE, sindicato criado em 2017 - já durante o mandato atual da Ordem - escreve no grupo Greve Cirúrgica, a propósito de uma manifestação que preparava: "Espero que a Ordem que é de todos os enfermeiros se disponha a ajudar os enfermeiros a estarem presentes e a mostrar ao ministério e ao governo que não vamos desistir enquanto não tivermos o que queremos." Entre outras coisas, alega a sindicalista, a "organização de transporte será difícil", sem o apoio da Ordem, porque o sindicato "não tem estrutura para isso"..A resposta de João Paulo Carvalho vem rápida: "Olá Lúcia... Como sabes a Ordem não pode comparticipar atividades sindicais... é a Lei... Podemos ajudar movimentos independentes de enfermeiros tal como já fizemos." Ou seja, o dirigente da Ordem dos Enfermeiros recusa um apoio direto da entidade, mas deixa em aberto outras possibilidades. "Portanto está do lado desses movimentos arranjar forma de permitirem à OE ajudar os Enfermeiros nesta luta mais do que justa", acrescenta, logo depois. E continua. "A última coisa que queremos é dar um passo em falso que permita a quem manda nisto tudo silenciar a OE... só temos que cumprir a lei..." Conclusão: "Por isso o pessoal que seja fino e dê a possibilidade à OE de ajudar tal como fez no passado", remata João Paulo Carvalho..Em declarações ao DN, João Paulo Carvalho garante que as suas palavras não se destinavam a garantir qualquer apoio à manifestação. "A Ordem apoia iniciativas de enfermeiros", explica, "mas nunca apoiámos financeiramente nenhuma manifestação", garante. O que estava a dizer a Lúcia Leite não "tinha nada a ver com a greve", acrescenta..Sobre todas as mensagens que o DN hoje revela, o dirigente regional da Ordem admite que há "sempre uma linha ténue" a separar a atividade sindical daquela que é a opinião de um enfermeiro em funções na Ordem. "Nunca foi minha intenção ultrapassar essa linha", assegura. "O que temos feito é apoiar os colegas, porque somos enfermeiros", justifica. "Nunca fomos parte ativa das negociações, nem da coordenação do protesto." O que se passa nos grupos do WhatsApp é diferente: "É apenas mostrar que temos opinião sobre algumas coisas, e defender os enfermeiros.".Na própria página oficial da Ordem, a fronteira entre a representação profissional e a atividade sindical é mostrada, claramente. "Pode a Ordem dos Enfermeiros ter um papel mais ativo nas negociações da carreira e negociações salariais? Não. A Ordem dos Enfermeiros não pode, sequer, participar em qualquer processo negocial de natureza sindical e que se relacione com as relações profissionais ou económicas dos enfermeiros.".'Estamos na luta!'.Mas há várias dúvidas sobre se o fez, nos últimos tempos. A bastonária da Ordem, Ana Rita Carvalho, participa nestes grupos fechados com mensagens áudio. Numa delas, explica: "Acho que os sindicatos, nomeadamente o SINDEPOR, estiveram muito bem nesta negociação. Por isso, meus amigos, bola para a frente. Já fizemos o mais difícil, porque eles nem a categoria queriam admitir. E portanto é não baixar os braços. Estamos na luta!".Noutra ocasião, Ana Rita Cavaco explica a estratégia sindical: "Portanto, como eu já vos disse, isto não é uma corrida em sprint, é uma maratona. Temos que também ter alguma paciência. Às vezes é preciso dar um passo atrás para depois podermos dar aqueles que queremos em frente. E se a greve não vai avançar agora, avança dia 30, não há problema nenhum.".É a própria bastonária que parece antecipar o rumo das negociações sindicais, no futuro: "E portanto o que o Ramalho [Carlos Ramalho, presidente do Sindicato Democráticos dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor)] vai fazer é lançar um novo pré-aviso para prolongar a greve até Março e deu-lhes esse tempo até dia 30. Eu pessoalmente não acho mal.".Ana Rita Cavaco explicou ao Diário de Notícias que nada disto pode ser entendido como uma intervenção sindical da Ordem. "Expliquei a reunião negocial, entre os sindicatos e o Governo, aos enfermeiros. A Ordem não convoca greves, não decide salários. O que disse nessas gravações é o que digo publicamente. É um apoio aos enfermeiros." A bastonária considera que esta sua intervenção foi uma forma de "mediação", dando aos enfermeiros informação, aproximando-os do processo. Por uma razão: "Estamos a tentar que o poder não caia na rua. O pior que podia acontecer seria a existência de protestos fora do espaço legal.".Por isso, esclarecendo que o que diz "não é um incentivo, é um apoio", Ana Rita Cavaco aponta o dedo ao Governo. "Isto deixa claro que há dois pesos e duas medidas do senhor primeiro-ministro, e isso é que provoca um abalo grave na democracia". A bastonária refere o apoio do bastonário da Ordem dos Médicos a uma greve, no passado, que o próprio assumiu fazer. "Essas palavras nunca saíram da minha boca", garante..'Virar o povo contra nós'.Todo este período tenso, agressivo e polémico, desde que foi decretada a greve às cirurgias, foi meticulosamente comentado por outros dirigentes da Ordem. João Paulo Carvalho sugeria estratégias de comunicação, por exemplo. "Outra coisa que peço é que tenham algum cuidado com as redes sociais...". Mais à frente: "Posts do tipo "100 cirurgias adiadas J" não são bons para nós." Porque "não podemos mostrar contentamento por isto". Pelo contrário: "Temos que dizer que infelizmente foram adiadas 100 cirurgias única e exclusivamente por culpa do governo.".Na entrevista ao DN, o dirigente refere que isso não deve ser entendido como uma sugestão de estratégia. "É apelar aos meus colegas porque não me sinto confortável com o adiamento de cirurgias", esclarece João Paulo Carvalho..O dirigente da Ordem também dava munições para o ataque ao Governo: "Vou enviar um assunto que penso poder ser aproveitado a nosso favor... quando os senhores do governo e outros vierem falar dos direitos dos utentes", anunciou, antes de publicar um conjunto de links para notícias sobre cirurgias adiadas quando a ministra da Saúde, Marta Temido, era presidente da Administração Central do Sistema de Saúde..Até a relação ideal dos sindicatos com a comunicação social era sugerida por João Paulo Carvalho. "No primeiro dia estivemos em grande... deu em tudo o que era notícia... e sinceramente acho que foi suficiente." Ou seja, o conselho é não exagerar na forma. "Porque corremos o risco de conseguirem virar o povo contra nós... se aparecerem todos os dias nas notícias "centenas de cirurgias adiadas, crianças que não são operadas, pessoas que podem morrer, etc." isso vai-se virar contra nós.".Há uma teoria que justifica o receio do dirigente da Ordem: "Este governo é mestre e dono da comunicação." E uma solução: "Portanto continuemos a fazer o mais importante... greve em força, enervar o governo e os [a]dministradores.".Não restam dúvidas de que o verbo "enervar" foi exato. O Governo cortou relações com a Ordem. António Costa, numa entrevista à SIC, esta semana, acusou a entidade de usar "meios ilegais" e anunciou uma queixa judicial por "manifesta violação das regras"..Esta queixa irá juntar-se a uma investigação, que já decorre, no Ministério Público, e que investiga a gestão financeira da Ordem. Existem suspeitas de pagamentos a dirigentes através de mecanismos de evasão fiscal (reembolsos fictícios de quilómetros feitos em carro próprio, por exemplo), entre várias outras..Outra das dúvidas, levantada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, recai sobre a legalidade da angariação de fundos que apoia a greve dos enfermeiros: "Quem promove o "crowdfunding" é um movimento cívico, um movimento cívico não pode declarar greve. O "crowdfunding" é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver certa atividade. Legalmente, não pode um movimento cívico substituir-se ao sindicato.".O DN teve acesso a vários grupos nas redes sociais sobre o protesto dos enfermeiros. A informação que reproduz nestas páginas não é privada, nem pessoal, diz apenas respeito à intervenção de membros de uma organização pública, a Ordem dos Enfermeiros, no atual protesto. O interesse público desta informação permite aos nossos leitores avaliar se há, ou não, uma atuação da Ordem além daquela que a lei prevê. Toda a informação que não se enquadra nesse âmbito de interesse público não foi reproduzida..Os dirigentes da Ordem citados foram contactados pelo DN e confirmaram o teor das declarações que lhes são atribuídas.