"Só há duas formas de mudar um país - ter uma política diferente e ter mais de 50%. E se uma destas condições não existe então transforma-se em algo de inútil para disputar o poder. (...) Ter poder sem princípios não serve de nada. Mas ao mesmo tempo ter os princípios sem poder é igualmente inútil.".As palavras são de Marisa Matias, no início de 2015, numa entrevista a Pablo Iglesias, secretário geral do Podemos e ex vice-presidente do governo espanhol. Ouvi-as, recordo, com espanto, quando preparava um perfil daquela que mais tarde nesse ano seria anunciada como a candidata presidencial do Bloco: era a formulação exata do meu pensamento sobre aquilo que via, com impaciência, como a infantilidade tradicional dos partidos à esquerda do PS face à realidade - a resistência a sair do lugar confortável do protesto, a assunção de pureza irredutível dos que não se conspurcam nas negociações e nos compromissos, dos que não se rendem às vicissitudes da realidade..Afinal, pensei, ainda há no Bloco quem se lembre de que este foi apresentado, em 1999, na sua criação, como o novo partido à esquerda do PS que, ao contrário do monolítico e inamovível PCP, estava disposto a fazer pontes, a puxar o PS para a esquerda e até, talvez, a governar. O BE que surgia, com o seu grupo parlamentar paritário e sem gravata, as suas causas igualitárias, feministas, ambientalistas, como a lufada de ar fresco de que a esquerda portuguesa tanto precisava, um possível "desempatador" de um panorama parlamentar em que a direita conseguia fazer maiorias compostas e a esquerda nunca..Esse espírito de entendimento e diálogo vimo-lo aliás seis anos depois, quando, na perspetiva da provável vitória sem maioria do PS, o BE então liderado por Francisco Louçã se prefigurava como o parceiro óbvio de governo - era essa a pergunta que se fazia insistentemente ao então secretário-geral do PS: se iria coligar-se com o BE e em que condições. Não aconteceu - o PS teve a sua primeira e única maioria absoluta até hoje - e a distância entre os dois partidos iria crescer até romper. Mesmo se em 2008, Louçã, num debate promovido pela editora Tinta da China, admitia que o governo socialista tinha até então posto em prática uma parte considerável do programa do Bloco - e não se referia apenas às matérias ditas "fraturantes", longe disso. "Ainda bem, significa que conseguimos fazer valer o nosso ponto de vista", comentou o coordenador do BE, sem discutir o essencial, ou seja, que os programas dos dois partidos eram essencialmente compatíveis. Sabemos, porém, o que sucedeu depois; e sabemos também o resultado que o sucedido teve..Adiante: quando em 2015 Marisa Matias, provavelmente a mais social-democrata dos bloquistas (é um elogio), disse o que cito no início deste texto sobre poder e princípios ainda não tinha acontecido a debacle do Syriza na Grécia, o referendo convocado para 5 de julho de 2015 pelo governo para ouvir o povo quanto ao ultimato europeu e o subsequente ignorar da negativa que recebeu em resposta e pela qual fizera campanha; ainda não tínhamos visto um partido da dita "esquerda verdadeira" a render-se, de modo totalmente inesperado, ao princípio da realidade e a aceitar o memorando austeritário cuja rejeição tinha pedido ao povo para em seguida, após eleições legislativas, se aliar a um partido de direita de modo a continuar a governar. Ainda não tínhamos visto o BE a tentar digerir o que pode suceder a um partido irmão quando em vez de protestar, criticar e exigir passa para o outro lado e se vê a ter de escolher entre atirar a toalha e fugir, ou ficar e aceitar o que parecia inaceitável..Ainda não tínhamos visto Catarina Martins, na campanha para as nossas legislativas de 2015, comentar assim a vitória do Syriza nas eleições gregas convocadas a seguir ao referendo: "Prova que o povo grego não quer voltar atrás. É verdade que o plano que foi imposto ao governo grego não é uma rutura com a política de austeridade, e é conhecida a oposição do BE a esse plano assinado pelo governo grego. A rutura de que precisamos na Europa não existiu ainda. Mas se ganhasse a Nova Democracia [partido grego de centro direita] seria voltar ainda mais para trás." Na mesma entrevista ao DN em que aceitava ser melhor um Syriza em capitulação perante a austeridade que um governo de direita que faria decerto pior, Martins negava que o BE quisesse continuar a ser um partido de protesto: queria ser governo, mas sem "ceder em objetivos essenciais"..Seis anos depois e quase 23 após a sua fundação, o BE não foi ainda governo; nunca teve realmente de sopesar a importância relativa do poder e dos princípios. Parece, no entanto, ter sopesado a importância relativa do que é melhor para o partido: continuar a apoiar um governo PS, com as cedências necessárias nas negociações, ou arriscar eleições..Neste jogo em que todos culpam todos, parece óbvio que, como escreve Boaventura Sousa Santos no Público, a esquerda portuguesa decidiu, depois de uma iluminação redentora em 2015, voltar a ser burra e esquecer de novo aquilo que parecia ter aprendido: que a direita nunca tem problema nenhum em fazer cedências e dar todas as cambalhotas necessárias, incluindo, como se constata no namoro sonso de Rui Rio e da IL ao Chega, vender a alma (a existir) ao diabo, para segurar o poder..Relembremos então: ter princípios sem poder é inútil - se a ideia é mudar o mundo ou um país e não apenas fazer manifestos para o vento. É agora que vivemos e não nos amanhãs cantáveis - e até o PCP, a maior surpresa dos últimos seis anos, parecia ter percebido isso. Podemos então, por favor, por favor, ser crescidos? Podemos ter - outra vez - a coragem de não ser puros?