Dona Beatriz, infanta de Portugal, podemos simplificar dizendo que é mãe de D. Manuel I. Além disso, que parentesco com outros monarcas tem a sua biografada? Ela é neta do D. João I e isso vai ser muito importante. Depois é bisneta do Condestável e, em termos simbólicos, isso também é muito importante - há uma ligação à Casa de Bragança. É sobrinha do rei D. Duarte, prima de D. Afonso V, vai ser sogra, mas também é tia, de D. João II, é mãe da rainha consorte, D. Leonor de Lencastre, e finalmente vai ser a mãe de D. Manuel I. É também, e isso vai ser importante para as relações internacionais dela, tia da rainha Isabel, a Católica..É por estas relações dinásticas que se explica que na viragem do século XV para o XVI uma mulher tenha tanta influência política? Sim. As relações familiares são muito importantes em termos de intervenção política, sobretudo para as mulheres. Por exemplo, uma mulher na nobreza ou da família real que se case num reino estrangeiro é sempre um agente diplomático entre o seu reino de origem e o seu novo reino. Estas mulheres são treinadas para usar o seu parentesco como forma de diplomacia e de exercício de poder político..D. Beatriz fica viúva relativamente cedo, os filhos são pequenos, o que significa que ela tem de assumir a gestão dos bens da Casa de Viseu-Beja, que inclui os arquipélagos dos Açores, da Madeira e de Cabo Verde. É assim que acaba por ter protagonismo no início das descobertas? Sim. O facto de as mulheres ficarem à frente da administração das casas durante a menoridade dos filhos não é uma exceção, acontece em todo o país. Obviamente ela é a que vai ter mais poder, que lhe advém não só das propriedades que tem no reino mas sobretudo do Atlântico, com um poder político e de intervenção muito grande. Vai ser a sua atuação no Atlântico que a vai distinguir no plano internacional, e defendo que ela a vai usar para ter mais poder no reino..D. Beatriz fomenta a colonização de Açores, Madeira e Cabo Verde, bem como as descobertas, ou seja, as ilhas que ainda estão por descobrir. Também na costa africana há capitanias ao serviço dela? Não, a infanta vai sobretudo privilegiar a colonização. D. Beatriz tem várias ilhas por colonizar e desenvolver, algumas que já estão povoadas mas que ela acha que estão desaproveitadas para o que poderiam render, e o que vai fazer é privilegiar a colonização dos arquipélagos. A Madeira está mais colonizada do que os outros e ela cria um novo sistema para tributar o açúcar, que dá muito rendimento nesta altura. Nos Açores e em Cabo Verde, vai colonizar e desenvolver novas ilhas para criação de novas capitanias. Vai privilegiar a relação com homens da sua casa dando-lhes capitanias..A família Corte-Real, que ficará famosa pelas viagens ao Canadá, está ao seu serviço? Sim. O primeiro Corte-Real que vai para os Açores vai ao serviço da infanta e vão estar sempre ligados à rede clientelar da Casa de Viseu..D. Beatriz, não saindo de Portugal, gere este espaço atlântico todo, mas a verdade é que nos nossos descobrimentos as mulheres estiveram menos presentes. Por que razão? Estamos a falar de uma sociedade patriarcal. Apesar de todo o poder que a infanta tem, os homens normalmente têm maior liberdade. A infanta, não sendo uma exceção, porque as mulheres exercem poder político quando é preciso, é viúva e isso granjeia-lhe uma independência que ela não teria enquanto casada. Ainda assim, apesar de nos nossos descobrimentos não haver muitas mulheres que vão viajar, na realidade a colonização dos Açores e da Madeira faz-se à custa de famílias que vão do reino para habitar novos arquipélagos. O que acontece é que quanto mais para sul e mais diferente for a paisagem, menos mulheres irão para os descobrimentos, daí as ligações com as africanas..É a única forma de os homens que estão nas descobertas terem família. Claro. D. Manuel I vai preferir essas relações. Os homens que vão para Cabo Verde e para São Tomé vão casar-se com escravas ou ligar-se a elas, e essas uniões, aos olhos da coroa, vão valer tanto quando um matrimónio, portanto os filhos serão legítimos. O que acontece também é que quando os homens vão à guerra são as mulheres que ficam a tomar conta e a administrar os bens da família. Este modelo da infanta que fica à frente da sua casa é replicado pelas famílias que ficam no reino..Quando estamos a falar de mulheres de marinheiros, são mulheres que nunca mais voltam a ver os maridos. Estamos a falar de um país cheio de mulheres sozinhas... é um país em que elas vão ganhar protagonismo. Lembro-me sempre do Auto da Índia, de Gil Vicente, e das mulheres que ficam aqui. A realidade é que estudamos pouco essas mulheres que ficam. Os homens vão e sabemos o que lhes acontece - poucos voltam e outros têm outras famílias e relações no império. Estas mulheres que ficam trabalham, têm negócios. Sabemos pouco do que aconteceu no reino nesta altura e é um tema fascinante para estudar..No caso de D. Beatriz, apesar de todo o poder, há um momento em que a vida lhe corre mal, que é quando a Casa de Viseu e o seu filho D. Diogo são acusados de atentado ao rei. E é o próprio D. João II que mata D. Diogo. A família toda cai em desgraça? Se há uma palavra que pode classificar a infanta é a resiliência. Isto é, antes da morte do filho às mãos do rei ela já tinha sofrido um golpe com a morte do seu genro e primo, o duque de Bragança. Ela sabia o que poderia acontecer - a Casa de Bragança foi extinta. O que ela vai fazer nesta altura é desaparecer. Torna-se uma sombra. Acho muito difícil, embora a documentação não nos diga nada sobre isso, que ela não soubesse das possíveis maquinações do seu filho. Ela vai desaparecer para dar lugar ao seu filho D. Manuel, enquanto novo duque, e ele vai ficar durante cinco anos à guarda do rei. Ela cai no silêncio, não aparece nem em momentos óbvios como o casamento ou o enterro do neto, D. Afonso. Desaparece por completo, mas nós vemos pelas atuações da sua filha, a rainha consorte D. Leonor, e da sua sobrinha, a rainha Isabel, a Católica, que estas três mulheres estão por trás a construir primeiro o ducado mas depois também a figura de D. Manuel enquanto herdeiro do trono. Ele torna-se como que uma figura-sombra de um monarca, é assim que ele aprende a reinar, e só quando D. João II o confirma como seu herdeiro é que a infanta volta a surgir. Quando o filho sobe ao trono, ela ressurge em pleno..Essa mulher, que pela morte do neto não tem um rei filho da filha, vai depois ter um filho como rei. Ela morre em 1506, portanto D. Manuel I já tinha uns anos de reinado. Ela tem perceção de que este filho não era um rei qualquer da história de Portugal, era um rei com um poder enorme, o primeiro da história a ter exércitos em quatro continentes? Sim. Primeiro ela passa a intitular-se infanta Madre d'El-Rei, com todos os títulos que D. Manuel terá: rei de aquém e de além-mar, senhor de Ceuta... ela assume tudo isto até à Pérsia, à Índia. Tudo se reflete nas cartas que escreve. Ela passa a não ter nome. Por outro lado, morre aos 77 anos, o que é muita idade para o início do século XVI, tem a sua casa senhorial em Beja e a sua casa reflete o império do seu filho. Sabemos isso através do inventário dos bens que tinha quando morreu. Tem em exposição na sua casa produtos de todo o Império. Tem papagaios do Brasil, sedas da Índia, porcelanas que não sabemos de onde vêm mas que pelo preço calculamos que tenham vindo também do Oriente, tem inúmeras joias e pedras preciosas que também cremos virem do Oriente, tem um mar de especiarias... mas também continua a ter algumas coisas que refletem o início do Império: 400 quilos de açúcar da Madeira, tem civetas africanas para a produção de almíscar, algumas esteiras africanas, a sua casa representa o esplendor do Império, e isto é uma forma de se fazer propaganda ao reinado do seu filho..Pode-se atribuir à governação de D. Manuel I alguma coisa da experiência que ele teve por ser criado por esta mãe que governava Açores, Madeira e Cabo Verde? Acho que sim. D. Manuel é realmente filho de sua mãe. Ele nasceu quando a infanta já tinha 40 anos. O pai dele morreu no ano a seguir, portanto, foi criado só por esta mãe e por sua irmã D. Leonor e pela outra irmã D. Isabel, às quais ele vai ter sempre uma grande ligação. Conhecemos a maior parte da documentação da infanta através de confirmações, cartas régias de D. Manuel I que confirmam as decisões tomadas pela mãe para os arquipélagos do Atlântico. Ele vai ter sempre a figura da mãe em consideração ao longo da vida. Mesmo quando está ausente em Castela, quando vai ser jurado herdeiro das cortes em Castela, é a sua irmã que fica como regente e D. Beatriz vem de Beja para apoiar a sua filha nesta tarefa. Ele tem uma relação muito próxima com aquela mãe, que foi ela quem os criou.