Cuidados Intensivos. "Se calhar não perderemos capacidade de resposta"
O médico intensivista João João Mendes faz uma pausa no ritmo frenético em que vive para atender o telefone. Mas avisa: "Posso ter de desligar a qualquer momento." As palavras são ditas a grande velocidade. O médico acabou de ver um doente e prepara-se para o próximo. Está no serviço de cuidados intensivos (CI) do hospital CUF Infante Santo, em Lisboa, onde faz turnos de oito a 12 horas, nas folgas dos bancos de 24 horas no Amadora-Sintra. As pausas têm sido só para descansar um pouco, num hotel e longe da família.
João João Mendes está quase exclusivamente dedicado ao tratamento do covid-19. A impressão que tem sobre a evolução da pandemia, nesta semana, na sua área é parecida com a que têm os portugueses que seguem o boletim diário da Direção-Geral da Saúde (DGS). "Aquilo que os números mostram é o que sinto no terreno. Há cerca de duas semanas tivemos um grande volume de intubações de doentes, que esgotaram a nossa capacidade. Mas daí em diante houve uma resposta muito rápida dos serviços, que conseguiram abrir novas camas e, simultaneamente, o número de intubações diárias também foi reduzindo. Isto é a minha perceção pessoal. Não sei se, por exemplo, a norte [a região com mais casos no país] as coisas estão a acontecer da mesma forma."
Pela primeira vez, desde que o surto chegou a Portugal, registaram-se, na quarta-feira (8 de abril) menos 26 internados nos cuidados intensivos. Na quinta-feira, outra descida, embora mais modesta: menos quatro doentes. No total, há agora 241 pessoas em estado considerado grave no país, num universo de 1173 hospitalizados e de 13 956 casos confirmados, segundo dados da DGS de quinta-feira.
No entanto, a redução dos casos críticos não é acompanhada de uma diminuição da mortalidade. Nas últimas 24 horas, foram declarados mais 29 óbitos, elevando para 409. "Estes dados não são divulgados, mas acredito que a maior parte das pessoas que morrem estejam nos cuidados intensivos. Para já, é capaz de estar a compensar. Ainda hoje estive a falar com um colega do Hospital de Santo António [no Porto] que me disse que para já não há limitação", diz o intensivista Paulo Mergulhão, secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos e médico no Hospital Lusíadas, no Porto.
Há assimetrias na pressão colocada nas diferentes alas onde se pratica a medicina intensiva. Ainda nesta semana, o hospital de Aveiro - uma das unidades de apoio ao município de Ovar, onde existe um grande foco de contágio nacional - teve de transferir duas pessoas por falta de ventiladores, entretanto reforçados, segundo o Ministério da Saúde.
"Ainda é muito cedo para conseguirmos tirar alguma conclusão sobre a que corresponde esta diminuição. O certo é que temos vários serviços de medicina intensiva a reportarem-nos altas de doentes. Ao mesmo tempo, parece ter existido uma estabilização do número de doentes admitidos", explica o médico João Gouveia, presidente da Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para o covid-19. Um bom sinal, quando é sabido que esta doença envolve internamentos prolongados.
Nenhum país está suficientemente preparado para responder a uma situação maciça de recurso à medicina intensiva. E Portugal tem uma "carência crónica" de ventiladores, monitores, camas do tipo 3 e profissionais intensivistas, como descreve o presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, João Gouveia.
Quando comparado com outros países europeus, Portugal tem menos camas neste serviço: 6,4 por cada cem mil habitantes, segundo os dados mais recentes disponíveis, que se referem a 2018. Menos camas do que Espanha (9,7 por cada cem mil), onde, em Madrid, chegou a ser preciso o dobro das existentes, durante a pandemia. Menos do que Itália (12,5 por cada cem mil), onde o sistema entrou em rutura por excesso de doentes. Menos do que França (11,6 por cada cem mil). Menos do que a Alemanha (29,2 por cada cem mil) - o país com maior capacidade nos cuidados intensivos. A média europeia de camas nos cuidados intensivos situa-se nos 11,5.
"É evidente que melhorámos desde essa altura, mas ainda não chegámos a níveis como o da Alemanha", diz João Gouveia, que exerce no Hospital Santa Maria, em Lisboa.
Entre os países da União Europeia, Portugal é apenas ultrapassado neste indicador pela Finlândia (6,1 por cem mil), pela Grécia (6) e pela Suécia (5,8), que investiram menos neste setor da saúde. A par disto, Portugal é o terceiro país mais envelhecido entre os 27 Estados membros do executivo comunitário.
"O nosso sistema de saúde, nomeadamente na medicina intensiva, é muito frágil. Não só temos poucas camas como temos poucos intensivistas e enfermeiros especializados neste serviço", refere o especialista do Hospital Amadora-Sintra. Mas é uma ideia unânime e uma preocupação para os três médicos. Portugal pode vir a não ter necessidades extremas se as medidas de contenção se verificarem - como tudo indica - eficazes, mas se tiver "é evidente que a carência vai notar-se ainda mais", admite João Gouveia.
Embora o país tenha introduzido esta área de especialização médica na segunda metade do século XX, primeiro no Porto e em Coimbra - depois de comprovada a sua importância a salvar vidas durante a epidemia de poliomielite (Copenhaga, 1952) -, só em 2015 foi considerada como especialidade em Portugal. "O que foi muito importante para permitir uma estabilidade nos quadros médicos de intensivistas, mas, apesar disto, ainda não houve tempo para corrigir uma carência nacional", refere o presidente da Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional para o covid-19.
A previsível falta de médicos intensivistas será ultrapassada com a ajuda de outros colegas, já habituados a lidar com doentes mais críticos, diz João Gouveia. Mediante a necessidade serão treinados e orientados para reforçarem os serviços. "Habitualmente, já se fazem equipas mistas de intensivistas, anestesistas e até cardiologistas. E, neste momento, há uma extraordinária boa vontade por parte dos colegas." "Falta intensivistas? Sim, porque já são poucos à partida, mas vamos formar mais", resume.
Quanto à capacidade de ventilação, de que quase todos os internados nestas alas necessitam - embora não seja obrigatória, como aconteceu com o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que esteve quatro dias nos CI, até esta quinta-feira) -, Portugal duplicou o número de ventiladores neste mês.
O levantamento inicial, comunicado pelo primeiro-ministro, António Costa, apontava para a existência de 1142 ventilados disponíveis entre o Serviço Nacional de Saúde e os setores social e privado. Números atualizados, em abril, pelo secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, em conferência de imprensa: o Ministério da Saúde encomendou mais 900 equipamentos (144 chegados ao país nesta semana já foram distribuídos), que se somam a 540 oferecidos por diversas entidades, desde câmaras municipais a clubes de futebol e empresas (400 invasivos - que pressupõem intubação - e 140 não invasivos - libertam o ar através de uma máscara). Ou seja, Portugal deverá ter nesta altura 2582 ventiladores.
"Se conseguirmos aplanar a curva - como parece estar a acontecer -, e com as novas disponibilidades de ventiladores, se calhar não vamos perder a capacidade de resposta. Mas isto vai manter-se durante muito tempo e os serviços de medicina intensiva terão de se reorganizar, não só para dar resposta ao covid-19 mas também aos outros casos. Acho que o grande desafio neste momento é saber como vamos equilibrar as duas coisas", diz João João Mendes.
Foi a explosão do número de infetados e de casos críticos que fez a Itália (o país que regista o maior número de morte por covid-19, mais de 18 mil) e a Espanha (o terceiro país, com mais de 15 mil óbitos) ultrapassar a sua capacidade de cuidados intensivos.
Daniele Macchini é médico no hospital Humanitas Gavazzeni, em Bergamo, Itália, e nas redes sociais, a meio de março, alertava os outros países para se prevenirem, quando os médicos italianos já se viam obrigados a escolher quem tratar. "Uma de cada vez, as enfermarias que tinham sido esvaziadas encheram-se a um ritmo impressionante. As tabelas com o nome dos doentes, que têm diversas cores segundo a unidade operacional a que pertenciam, agora são todas vermelhas", lamentava.
De Espanha, no final do mês, o discurso não diferia muito e foi sendo ilustrado com fotografias de profissionais de saúde sentados no chão à porta de hospitais de Madrid. Na cara, uma visão de desalento. "O trabalho é imenso, esgotante, stressante, estás com a bata, a máscara e o gorro, falta-te o oxigénio e os óculos embaciam-se. Nunca tinha vivido nada assim. É titânico. Queria que fosse um filme e chegasse ao fim", dizia María Antonia Estecha, 57 anos, chefe de serviço da UCI do Hospital Virgen de la Victoria de Málaga, ao El País.
O intensivista Gabriel Heras, que também trabalha na capital, acrescentava: "Todos têm a mesma patologia, uma pneumonia grave que obriga a uma entubação de emergência e ligação ao ventilador."
O que levou um grupo de trabalho de bioética da Sociedade Espanhola de Medicina Intensiva, Crítica e Unidades Coronárias (Semicyuc), em colaboração com a Sociedade Espanhola de Medicina Interna (SEMI), a elaborar um guia ético para ajudar os profissionais de saúde a tomar decisões num cenário de escassez de recursos para todos os doentes. Os critérios são estritamente clínicos, mas também é referido o "valor social" e o número de pessoas a cargo.
Em Portugal, a Ordem dos Médicos está a preparar um documento com as linhas orientadoras de boas práticas recomendadas aos profissionais - que nesta altura assumem uma importância acrescida e podem vir a ser fundamentais caso o país se veja a braços com um aumento do número de infetados pelo vírus SARS-CoV-2.