O chumbo do Tribunal Constitucional (TC) à quarentena obrigatória imposta nos Açores voltou a levantar nesta semana a questão dos limites à restrição das liberdades dos cidadãos e, por arrasto, as queixas das autonomias quanto aos seus poderes de decisão. Num e noutro caso, constitucionalistas ouvidos pelo DN contrariam a posição de Açores e Madeira - as regiões autónomas não têm e não devem ter poderes desta natureza. É "abusivo" reclamá-los, diz Jorge Miranda. Nem o governo central tem este poder, sublinha Pedro Bacelar Vasconcelos que defende, aliás, que até mesmo as restrições impostas em março ao abrigo do estado de emergência devem ser alvo de uma "profunda reflexão". Jorge Reis Novais fala em "perplexidade" pelos atropelos à Constituição a que tem assistido desde o início da pandemia - e não só das autoridades regionais..A constitucionalidade da quarentena obrigatória imposta nos Açores foi suscitada por um pedido de habeas corpus (libertação imediata) apresentado por um residente em São Miguel, que, chegado à ilha a 10 de maio, foi encaminhado para um hotel de Ponta Delgada, com a obrigação de permanecer no quarto, com polícia à porta do hotel e impedido de contactar presencialmente com qualquer pessoa. O visado não apresentava sintomas de covid-19 e não foi sujeito a qualquer teste. O pedido foi deferido pelo Tribunal de Ponta Delgada (decisão que levou o governo regional a acabar com a quarentena obrigatória, em meados de maio) e seguiu para o TC. Inconstitucional, determinaram os juízes do Palácio Ratton, sublinhando que esta é uma competência exclusiva da Assembleia da República..Vasco Cordeiro, presidente do Governo Regional dos Açores, veio defender que a legislação atual é insuficiente para responder à crise sanitária provocada pela covid-19 e que deve ser melhorada, quer a nível regional quer a nível nacional. Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional da Madeira, também reagiu à decisão e em termos mais duros, acusando o TC de ser centralista e de tratar as regiões como colónias.."Tenho a maior simpatia pelas autonomias, mas a causa da autonomia regional é muito mal empregada neste caso", defende Pedro Bacelar Vasconcelos: "Concordo com a decisão do Tribunal Constitucional e ainda bem que se pronunciou de forma clara. São questões de direitos fundamentais, é o cerne da Constituição. Sou absolutamente contrário a qualquer revisão." Para o constitucionalista e deputado do PS, as "matérias de direitos e liberdades têm de passar pela Assembleia da República" e nenhuma exceção é admissível: "Nestas matérias de todo não podem ser admitidas exceções: nem ao poder executivo, muito menos aos poderes regionais ou locais.".O constitucionalista defende, aliás, que se deve abrir na sociedade portuguesa uma "profunda e séria reflexão, com debate público" para discutir "até que ponto se justificaram as restrições impostas no início da pandemia", a nível nacional. "A pandemia justificou que o poder executivo tivesse avançado - com o aval da Assembleia - com medidas muito restritivas. E houve uma complacência inédita relativamente a restrições que noutro contexto seriam absolutamente inaceitáveis", diz ao DN..Sublinhando que "nada nos garante, muito pelo contrário" que não volte a acontecer uma situação semelhante, Bacelar Vasconcelos diz que este é um debate que deve ser feito já, depois do período estival. A sociedade portuguesa deve discutir até que ponto está a abdicar "ainda que de forma condicionada e temporária, de liberdades fundamentais". "A complacência - e isso é porventura o mais assustador - com que a generalidade dos cidadãos aceitou medidas restritivas das suas liberdades é um motivo e um indício da necessidade dessa reflexão. A imposição de medidas com esta amplitude tem de ser muito seriamente ponderada", defende o antigo presidente da comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais..Autonomias "não são Estados", não decidem sobre direitos fundamentais.Para Jorge Miranda, a quarentena obrigatória imposta pelos Açores é "manifestamente inconstitucional" dado que as regiões autónomas não têm quaisquer poderes em matéria de direitos, liberdades e garantias. "É matéria reservada aos órgãos de soberania da República, nem o governo nem a assembleia legislativa regional têm qualquer poder para restringir a liberdade física das pessoas." Não têm nem devem ter: "As regiões autónomas não são Estados, não têm poder político próprio. O poder é do Estado, que delega alguns poderes, mas nunca os que afetem direitos fundamentais." É "abusivo" reclamar o contrário, defende..Até mesmo a imposição da obrigatoriedade do uso de máscara na Madeira levanta algumas dúvidas ao constitucionalista, embora neste caso admita que "se possa considerar que é apenas uma medida de prevenção, de defesa da saúde"..E as acusações de colonialismo face à decisão do Tribunal Constitucional? "Isso faz parte da guerra política. Na Madeira tem havido expressões muito desagradáveis contra os órgãos de soberania. Passemos adiante, não fazem sentido nenhum, não vale a pena dar-lhes importância.".Mas os passos dados ao arrepio da Constituição não são exclusivo das regiões autónomas, no entender daquele que é considerado o "pai" da Lei Fundamental. Mesmo no plano nacional "algumas das medidas que foram adotadas já depois de cessar o estado de emergência não são estritamente constitucionais, vão para lá do que a Constituição admite, isto ao nível do Governo da República", sublinha Jorge Miranda.."Uma prepotência inqualificável".Para Jorge Reis Novais, especialista em direito constitucional e direitos fundamentais, a quarentena obrigatória imposta nos Açores foi mais um atropelo à Constituição, dos vários que têm vindo a ser feitos desde o início da pandemia. No caso da quarentena obrigatória, o constitucionalista sublinha que a conclusão do TC é "clara e inatacável" e, na verdade, é só a primeira de uma longa lista de inconstitucionalidades "ostensivas" que poderiam ser apontadas à decisão do governo açoriano..O caso não merece dúvidas: "Legislar sobre direitos fundamentais dos portugueses só a Assembleia da República ou o governo com autorização da Assembleia: qualquer estudante aprende isto no primeiro ano. E os presidentes dos governos regionais são licenciados em Direito, não sei o que andaram a fazer durante quatro ou cinco anos na faculdade." "Se as regiões autónomas quiserem alguma alteração legislativa o que podem fazer é apresentar uma proposta à Assembleia", acrescenta o constitucionalista. Que levanta uma outra questão: "Como é que o representante da República na região, o Presidente da República, que o nomeia, o primeiro-ministro, deixam fazer isto em Portugal sem dizer uma palavra?" perante um ato - a retenção de um cidadão num quarto de hotel durante 14 dias - que é de uma "prepotência inqualificável". "Ainda bem que temos tribunais, porque as autoridades políticas nunca disseram nada, ficávamos entregues a isto", remata..Reis Novais argumenta que já vai longa a lista de inconstitucionalidades desde que começou a pandemia. A começar no decreto do Presidente da República, que "cometeu a proeza de decretar o estado de emergência sem suspender o único direito para o qual era necessário" invocar aquela situação de exceção - o direito a não ser privado da liberdade.."Desde aí as inconstitucionalidades têm-se multiplicado", o que Reis Novais diz ver com "muita perplexidade". "Estamos a falar do Presidente da República, do primeiro-ministro, dos presidentes dos governos regionais da Madeira e dos Açores, estamos a falar de juristas.".Nas medidas de confinamento tomadas em março pelo executivo liderado por António Costa, a Constituição também ficou na gaveta: "O governo não tem uma competência originária para legislar sobre direitos fundamentais, para isso precisa de pedir autorização à Assembleia da República. Nunca o fez".