MARX PODE ESPERAR Marco Bellocchio 21 julho. O cinema e a vida, ou o cinema e a morte. Marx Pode Esperar é um documentário que explora esta dupla relação, através do lugar ensombrado da memória íntima inevitavelmente cruzada com a memória coletiva. Na sequência de um almoço de família, em que dá voz aos irmãos, o veterano Marco Bellocchio enceta uma pesquisa sobre o fantasma que atravessa vários dos seus filmes e que permanece vívido na existência dos Bellocchio. Falamos de Camillo, o gémeo de Marco, figura de uma juventude melancólica desaparecida em 1968, aos 29 anos. A sua morte foi tema específico de um desses filmes, Gli Occhi, La Bocca (1982), mas há mais do jovem Camillo, ou de uma expressão de culpa, que o cinema de Bellocchio absorveu, consciente ou inconscientemente. Recorrendo a imagens de arquivo e a entrevistas individuais que emolduram o quadro de toda uma conversa familiar, o cineasta italiano expõe o luto como ferida em que é preciso tocar uma última vez para que cicatrize pelo efeito da partilha. Não é bem terapia; é mais um retrato de família, literal e espiritual. Há quase uma dimensão forense no modo como se abordam os sinais de um perfil humano que passara despercebido em vida, talvez destinado a habitar os interstícios do cinema... Inês N. Lourenço.MARIUPOLIS 2 Mantas Kvedaravicius 4 agosto.Entre ante-estreias e sessões especiais, este foi um dos grandes acontecimentos do Festival de Cannes, capaz de nos levar a reflectir sobre as rotinas do nosso consumo. Num contexto em que, quer queiramos, quer não, as imagens televisivas da invasão da Ucrânia pelas tropas de Vladimir Putin nos perseguem diariamente - entre a contundência visceral do horror e a ameaça mediática da indiferença -, Mariupolis 2 impôs-se como um testemunho raro, precioso, literalmente do interior. Antropólogo, professor da Universidade de Vilnius, o cineasta lituano Mantas Kvedaravicius concretizava, assim, um novo capítulo do seu périplo ucraniano, iniciado com o primeiro Mariupolis (apresentado no Festival de Berlim de 2016). Objectivo: registar o quotidiano vivido sob a ameaça dos bombardeamentos russos. Não pôde concluir a respectiva montagem: quando tentava sair da cidade de Mariupol, a 2 de abril deste ano, foi morto por soldados russos. A sua companheira, Hanna Bilobrova, conseguiu preservar o material filmado e, com a colaboração da montadora Dounia Sichov, organizar um filme que existe como um documento radical sobre a violência da agressão russa e as vivências dos cidadãos sitiados nas suas próprias casas. João Lopes.MEN Alex Garland 4 agosto.A reformulação dos contextos do filme de terror britânico. É por aqui que se coze o jogo de Alex Garland em Men, fábula de medo sobre o universo do imaginário do "country side" inglês em versão de reverberação com as novas formas de refletir a masculinidade tóxica. Ou quando uma mulher sai de Londres para uns dias de pausa numa casa de turismo de província e defronta o pior dos homens numa sucessão de encontros algo sobrenaturais. A dada altura, percebe também que todo o mal pode ter a mesma configuração, o mesmo rosto. Men é um pesadelo excêntrico e esquisitíssimo sobre rastilhos do medo, mas também um "workshop" sobre os limites de um humor britânico desalinhado e em corrosão com uma noção dos valores sagrados da sociedade inglesa. Ao mesmo tempo, serve de apuramento de um estilo que foi sendo desenvolvido desde Ex_Machina, o filme de estreia deste argumentista. No novo cinema britânico é bom perceber que ainda há lugar para vozes sem medo de trazer perigo para a criação artística. Nada disso seria possível sem Rory Kinnear e Jessie Buckley, atores de uma transcendência inexplicável... O filme foi recebido com euforia em Cannes, na Quinzaine... Acontecimento grande deste verão. Rui Pedro Tendinha.A MÃE E A PUTA Jean Eustache 7 de julho.A relação com a memória - cuidadosamente recuperada e historicamente enquadrada - é um fator da cinefilia que resiste ao mercantilismo de muitas formas de marketing. Acontecimento fulcral, no passado mês de maio, na secção "Classics" do Festival de Cannes, aí está a cópia restaurada de La Maman et la Putain, produção de 1973 em que, de modo subtil e fascinante, se cruzam o desencanto moral herdado dos anos 60 e os impasses de um tempo ferido pelas ilusões da "libertação sexual". Com Bernadette Lafont, Jean-Pierre Léaud e Françoise Lebrun, é o primeiro dos filmes de Eustache a ser reposto em sala. J.L..ALCARRÀS Carla Simón 14 de julho.Se com o autobiográfico Verão 1993 (2017) Carla Simón já tinha deixado a sua marca - este valeu-lhe, inclusive, o prémio de melhor primeira obra no Festival de Berlim -, com Alcarràs a catalã confirma-se uma primorosa cronista da infância e da experiência rural, para lá de quaisquer clichês afetivos. Distinguido com o Urso de Ouro, Alcarràs afigura-se um prolongamento natural desse filme anterior, com os olhos postos numa família que trabalha na derradeira colheita do seu extenso pomar, enquanto as crianças brincam no contraponto dos problemas dos adultos. Entre o idílio e a tristeza, eis uma das mais belas estreias deste ano. I.N.L..THE GRAY MAN - O AGENTE OCULTO Anthony Russo e Joe Russo 14 de julho.Diz-se que pode ser o filme mais caro de sempre da Netflix, um thriller de ação com Ana de Armas, Ryan Gosling e Chris Evans. Tem assinatura dos manos Russo, os mesmos que pulverizaram recordes de bilheteiras com os Avengers, mas que tropeçaram quando quiseram ir aos prémios com Cherry. Agora, contam a história de um superagente secreto da CIA cuja identidade é revelada e, em seguida, perseguido por outros agentes mercenários. Tem a particularidade de servir como mais um teste de mercado: será que o público de cinema vai querer pagar bilhete para uma obra que logo a seguir estará em streaming? R.P.T..NOITE DE ESTREIA John Cassavetes 21 de julho.Nesta operação que Paulo Branco faz em torno da obra de John Cassavetes importa celebrar o regresso aos ecrãs portugueses de Noite de Estreia, obra que na sua última reposição esgotava sessões. Os tempos são outros, mas o filme, com Gena Rowlands como atriz envelhecida à beira da estreia de um espetáculo, continua intemporal, sobretudo agora depois de no ano passado Lisboa ter visto uma versão teatral do filme numa peça de Martim Pedroso, com Dalila Carmo. O teatro e o cinema a tocarem-se como um crepúsculo de mágoas e verdades cruéis. Um Cassavetes supremo, urgente para redescobrir. R.P.T..WIFE OF A SPY Kiyoshi Kurosawa 4 de agosto.O cinema do japonês Kiyoshi Kurosawa chega-nos com regularidade incerta. O último dos filmes a estrear por cá, O Segredo da Câmara Escura (2016), era a sua incursão na produção francesa com uma história de fantasmas entre o melodrama e uma madura linguagem de terror, esse género a que a sua obra está mais conotada. De lá para cá há uma branca na distribuição. Preparamo-nos agora para acolher o seu novo melodrama, com pulso de thriller, ambientado na cidade de Kobe, durante a Segunda Guerra Mundial. Wife of a Spy conta com o contributo de Ryûsuke Hamaguchi (Drive My Car) no argumento e venceu o Leão de Prata em Veneza 2020. I.N.L..NOPE Jordan Peele 18 de agosto.O realizador de Foge está de volta com nova proposta de terror, introduzindo pozinhos de ficção científica. Sobre esta aguardada estreia sabe-se apenas que é a história de dois irmãos (interpretados por Daniel Kaluuya e Keke Palmer) proprietários do único rancho de cavalos em Hollywood gerido por negros, que começam a testemunhar uma espécie de fenómeno alienígena. Fenómeno esse que pode ser a oportunidade de ambos se tornarem ricos... com imagens em movimento de um OVNI. Resta-nos esperar para ver o que há para além deste isco do argumento, já que a arte de Jordan Peele tem muito a ver com a revelação de camadas ocultas. I.N.L..O SALÃO DE MÚSICA Satyajit Ray 18 de agosto.No panorama das reposições vamos poder reencontrar também o clássico Satyajit Ray (1921-1992), por certo o nome mais internacional da produção cinematográfica da Índia. Ray estreara-se na realização em 1955, com O Lamento da Vereda, seguindo-se, um ano mais tarde, O Invicto (que também será objeto de reposição na mesma data). O Salão de Música (1958) tem no seu centro um "zamindar" da região de Bengala que vive uma contradição insólita: quanto mais vai perdendo poder financeiro, mais se empenha nos concertos que organiza na sua mansão - um exemplo admirável de crónica histórica e conto moral. J.L..NUNCA NADA ACONTECEU Gonçalo Galvão Teles 22 de setembro.O muito adiado primeiro filme a solo de Gonçalo Galvão Teles tem estreia confirmada para o final do verão. Um ensemble drama sobre o pacto suicida de três adolescentes de Lisboa que mantém uma ligação sem tabus. Entre a juventude e o mundo dos adultos, o filme divide-se numa teia de silêncios e dores interiores que constituem um retrato de um mal-estar urbano. Cinema essencialmente de atores, com destaque para trabalhos fulgurantes de Bernardo Lobo Faria, Alba Baptista, Filipe Duarte, Rui Morisson, Ana Moreira e Miguel Amorim. É duro, muito duro... R.P.T..RESTOS DO VENTO Tiago Guedes 22 de setembro.Esteve em Cannes (extra competição) e é um filme português que se distingue pela solidez do seu elenco: Albano Jerónimo, Nuno Lopes, Isabel Abreu, João Pedro Vaz, Gonçalo Waddington, Maria João Pinho... A partir de um argumento invulgarmente detalhado (escrito em parceria com Tiago Rodrigues), o realizador Tiago Guedes encena um grupo de adultos violentamente marcados pelas atribulações de uma tradição pagã vivida na adolescência. Subitamente, a tradição surge para lá da facilidade do pitoresco televisivo, expondo os laços trágicos das vidas individuais e dos valores coletivos. J.L. dnot@dn.pt