Daniel Carriço deu um novo rumo à carreira na última semana de fevereiro. E a surpresa não foi pôr um ponto final a uma ligação de seis anos e meio com o Sevilha, mas ter aceitado assinar pela equipa chinesa do Wuhan, a cidade epicentro do surto do novo coronavírus. Admite que antes de pôr preto no branco sentiu alguma preocupação, mas que os responsáveis da equipa lhe garantiram toda a segurança, inclusivamente só regressar ao país (estão a realizar a pré-temporada no sul de Espanha) quando as coisas acalmarem..Para já, está de férias, mas na próxima semana vai juntar-se aos novos colegas na região de Cádis, em Espanha, onde a equipa aguarda instruções para regressar à China. Nesta entrevista ao DN fala ainda do Sporting, clube onde foi formado e que representou durante vários anos. Admite que foi sondado para regressar nesta época e assume que atualmente o clube está mergulhado num caos, com guerras internas, e por isso apela à união de todos para que o leão possa reerguer-se. Sobre o Sevilha, diz que o emblema espanhol ficará para sempre no seu coração..Deixou o Sevilha e assinou pelos chineses do Wuhan, a equipa da cidade epicentro do surto do novo coronavírus. Foi uma decisão difícil de tomar? Bem, na realidade o interesse do Wuhan na minha contratação já vinha de trás, numa altura em que as notícias não eram tão alarmantes. Estava em final de contrato com o Sevilha e disposto a deixar o clube neste mercado de janeiro, havia mais duas ou três equipas chinesas interessadas e tinha de decidir. O Wuhan, além das boas condições financeiras que me oferecia, foi a equipa que se mostrou mais interessada, até porque o treinador é espanhol [José González] e já me conhecia. Entretanto, começou a rolar com mais alarmismo este surto do novo coronavírus, mas sempre me garantiram que ia ter toda a segurança, que não me preocupasse com essa questão, até porque a equipa está em Espanha a estagiar e só iria regressar quando não houvesse perigo. Foi algo que me deixou mais descansado e que levou a que assinasse, pois deram-me todas as garantias de segurança..Mas em nenhum momento hesitou? Afinal é a equipa da cidade onde o vírus se propagou. Hesitar não é a palavra apropriada. Mas obviamente que senti alguma preocupação com as notícias que iam saindo. Tentei estar sempre informado, saber exatamente o que estava em causa, o que o clube estava a pensar fazer, quais eram os planos, quando tinham previsto regressar. A verdade é que o vírus se espalhou e chegou à Europa. Quis sempre garantir a minha segurança, saber as condições que ia encontrar no regresso à China. Perceber as condições. A cidade de Wuhan esteve fechada. Mas acredito que dentro de pouco tempo vai tudo voltar à normalidade e não vão existir problemas..Ninguém lhe chamou maluco por assinar pelo Wuhan nesta altura? [risos] Sim, muitas pessoas. Foi a reação normal de toda a gente. Alguns amigos chamaram-me maluco, do tipo "vais meter-te na cidade do vírus?". É uma reação normal de quem está de fora e via diariamente as notícias alarmantes que iam surgindo. "O Daniel vai para o Wuhan, a cidade do vírus." Estava toda a gente preocupada comigo, sobretudo os amigos mais chegados. Mas aos poucos fui descansando as pessoas. Para já, a equipa vai manter-se em Espanha e, mesmo quando regressar, não vamos para Wuhan. Quando o campeonato começar, certamente que as primeiras jornadas serão realizada fora da cidade, até voltar tudo à normalidade em Wuhan..Mas já está integrado na equipa? Não, de momento estou de férias, assim como eles. Fizeram uma pausa na pré-época. Só me junto à equipa no estágio em Cádis, para a semana..Entretanto, o início da Liga chinesa foi adiado devido a esta pandemia e não há ainda data para o futebol começar... A previsão é de voltarmos à China no início de abril. Não vamos para Wuhan, vamos para outra cidade. Não sei se Xangai. O campeonato pode começar a meio de abril, mas está tudo ainda muito indefinido. Depende da evolução do vírus. Para a semana vou integrar o estágio da pré-temporada, a equipa está há dois meses em Espanha. Apesar de ainda não estar integrado, sei que os jogadores chineses estão muito preocupados, longe das famílias e a viver toda esta situação à distância, impedidos de voltar a casa. Estão numa situação de quase retidos..Porquê a China para prosseguir a carreira? Foi só a questão financeira que pesou? Não é segredo para ninguém que financeiramente o futebol chinês é muito atrativo. O país também é uma potência mundial e para atrair jogadores com mais qualidade oferecem boas condições financeiras que outros clubes da Europa não conseguem. Depois, nesta altura da minha carreira, queria experimentar outro campeonato, outro projeto, e decidi aceitar..Vai levar a sua família consigo? Não. Os meus filhos já são crescidinhos, estão na escola e iriam perder o ano escolar. Por isso não faz sentido. Prefiro ir sozinho fazer esse sacrifício..Confirma que foi contactado para regressar ao Sporting? Vamos lá ver. A realidade é que nunca me apresentaram uma proposta oficial, mas existiu de facto interesse da parte do Sporting para o meu regresso. Mas eu tinha de me decidir, estava em final de contrato, podia assinar por qualquer equipa. Neste caso, como o Wuhan me quis contratar em janeiro, o Sevilha ainda recebeu uma compensação financeira com a minha transferência. E acabou por ser bom para o Sevilha e para mim. Se eu só saísse no final da época, seria a custo zero..Como tem acompanhado a situação do Sporting? Com uma enorme tristeza, continua na mesma situação, com muitas mudanças de treinadores, maus resultados desportivos e vejo que o clube, apesar da mudança de direção, não consegue ter estabilidade para sair deste caos. Vejo o Sporting como antes, em constantes guerras abertas, até internamente, agora com as claques. O clube está dividido. E o futuro não se antevê nada fácil..E como é possível sair desta crise? Dar um murro na mesa e assumir que é preciso um tempo sem prometer títulos? Acho que os adeptos, os sócios e os dirigentes não estão bem conscientes da realidade. O Sporting chegou a um ponto bastante complicado da sua história, ficou sem alguns dos maiores ativos [na sequência do ataque à Academia de Alcochete] e teve de ser reestruturado. Mas não vejo as pessoas a ter a paciência que seria aconselhável neste caso. É uma equipa que neste momento não consegue fazer frente ao Benfica, ao FC Porto. Com tudo o que se passou não podem lutar com as mesmas armas. As pessoas têm de ter paciência. É preciso reestruturar o clube, unir todas as forças. Sócios, adeptos e dirigentes têm de estar unidos e ter consciência de que só assim a atual situação pode ser revertida. Neste momento parece que não têm paciência nem consciência da realidade que o clube está a passar..Na sua opinião, o ataque à Academia de Alcochete ainda é um trauma que não foi ultrapassado? Em parte sim. Mas muitos desses jogadores já nem estão no clube, por isso esse triste episódio não pode justificar o mau momento do Sporting. O que pesa mais são as constantes notícias diárias, notícias quase sempre pela negativa. Os jogadores veem televisão, leem jornais, apercebem-se de tudo o que se passa. Viver nesta constante instabilidade não é benéfico para ninguém..Regressar um dia ao Sporting está nos seus planos? O futebol é muito incerto. Neste momento assinei contrato com o Wuhan, mas não sabemos o dia de amanhã. Agora quero viver esta experiência, ainda nem pisei a China. Quero ver o que vou encontrar, conhecer a realidade chinesa. Mas, como disse, não se sabe o que o futuro nos reserva..Esteve seis anos e meio no Sevilha. Quais as melhores recordações que guarda? Vivi grandes momentos, sobretudo quando se ganham títulos. As conquistas são as melhores memórias que guardo. Nos três primeiros anos conquistei três vezes a Liga Europa (2013-2014, 2014-2015 e 2015-2016), estive em finais da Taça do Rei... foram anos inesquecíveis. É difícil eleger um único momento, o mais feliz. Apenas posso garantir que jamais vou esquecer o que vivi neste clube..Há duas semanas, o Sevilha assinalou a sua despedida numa conferência de imprensa, e tanto o diretor desportivo (Monchi) como o presidente (José Castro) deixaram-lhe grandes elogios... Sim, é verdade. Sem falsas modéstias, assim como o Sevilha me marcou para sempre, também fui um jogador importante para o Sevilha. Devo lembrar que cheguei a capitão da equipa. Este tipo de despedidas não são para qualquer jogador, foram muito poucos os que tiveram direito a esta honra. Saí pela porta grande. Estarei para sempre agradecido ao clube, não só por todos os anos que vivi aqui mas também pela forma como me trataram desde o primeiro dia. É uma ligação que vai ficar para toda a vida..Em 2014, após conquistar a Liga Europa na final contra o Benfica, ficou célebre um beijo trocado com o seu colega de equipa Ivan Rakitic. Ainda hoje lhe falam nisso? Não. Isso falou-se muito na altura, até com especulações lamentáveis, talvez porque quem perdeu ficou chateado com a derrota. Foi uma coisa do momento, nem me recordo muito bem, sinceramente. O Rakitic é apenas um bom amigo..Neste momento assume-se como sportinguista ou sevilhista? Neste momento assumo que sou 50-50. O Sporting marcou uma grande parte da minha carreira e o Sevilha a outra metade. Por isso digo 50-50..A seleção nacional, que representou apenas uma vez, passou a ser definitivamente uma miragem? Tenho perfeita consciência de que agora as coisas são muito mais complicadas com a ida para a China, porque não é um campeonato forte e mediático como o espanhol, e também porque neste momento não sabemos quando vai começar o campeonato. Nunca fecharei obviamente as portas, mas sei que é muito complicado..Esteve muitos anos a jogar na Liga espanhola, assumidamente uma das melhores do mundo. Como viu o facto de Portugal ter ficado sem representantes nas provas europeias logo no mês de fevereiro? Temos de ser francos e admitir que na atualidade o futebol português está longe do poderio das principais ligas europeias. E isso explica-se por vários motivos, logo a começar pelo facto de os clubes portugueses se verem obrigados, por motivos financeiros, a vender os seus maiores ativos todos os anos, porque precisam de receitas para sobreviver. O futebol português está a perder força no panorama europeu, é uma realidade. Os clubes, todas as temporadas, ficam enfraquecidos porque são obrigados a vender os melhores jogadores. No verão foi o João Félix (At. Madrid), neste mercado de janeiro o Bruno Fernandes (Manchester United). E é uma tendência que vai continuar. A saída precoce dos melhores jogadores é uma repercussão disso.