Os dois mais famosos gracejos a homenagear o triunfo do Calendário Gregoriano são o que relembra que a Revolução de Outubro afinal ocorreu em novembro e o que cita Benjamin Franklin a dizer ser "agradável para um velho homem poder ir deitar-se a 2 de setembro e não ter de acordar até 14 de setembro". Ambas as blagues resumem na perfeição o que aconteceu com o abandono do calendário juliano: uma atualização de 12 dias na forma de medir a era cristã, decretada por um Papa no final do século XVI mas calculada por cientistas como o alemão Cristóvão Clávio..O que se esconde por trás dos gracejos é, porém, de grande relevo geopolítico, pois uma iniciativa do chefe da Igreja Católica conseguiu impor-se pouco a pouco em todo o Ocidente, mesmo o que segue os cristianismos protestante e ortodoxo, e acabou por transformar-se numa das formas de dominação do Ocidente sobre o resto do mundo..Ao contrário dos czares, Lenine não temia a modernização da Rússia e logo no início de 1918 adotou o calendário gregoriano para todo o antigo império, aquilo que em breve seria a União Soviética. Pouco tempo depois também a Grécia abandonou o calendário juliano e deixou assim de existir resistência nos países ortodoxos. A oposição nos países protestantes tinha sido menos duradoura, pois a célebre frase de Benjamin Franklin data de meados do século XVIII, quando o futuro revolucionário americano era ainda um fiel súbdito da Coroa britânica, e seguiu-se à decisão de Jorge II de Inglaterra. Mesmo assim, 170 anos tardou a que razões de comércio internacional, e lógica científica, fizessem finalmente os britânicos ignorar que tudo começara com um Papa no conturbado século da Reforma e da Contrarreforma. Os holandeses foram ligeiramente menos reticentes, uns 120 anos, tal como a maioria dos alemães com príncipes protestantes, pois por volta de 1700 já usavam o calendário gregoriano..Gregório XIII, o Papa italiano que deu nome ao calendário que usamos até hoje, contou com um grande aliado na aceitação da mudança: Filipe II de Espanha, também Filipe I de Portugal. Entre o monarca espanhol e o Papa havia tanta cumplicidade que Gregório XIII acabou por ter um papel importante na supressão da independência portuguesa, pois recusou sempre libertar dos votos de castidade do cardeal D. Henrique, o tio-avô de D. Sebastião que reinou entre 1578 e 1580. Qualquer hipótese de o velho cardeal-rei gerar um herdeiro legítimo português acabou assim por fracassar, pelo que a União Ibérica se concretizou e durou seis décadas..Espanha e Portugal, os Estados Papais, França, também a Polónia-Lituânia, depois rapidamente toda a América Latina e outros territórios sob colonização ibérica ou francesa passaram a reger-se pelo novo sistema, desaparecendo os tais 12 dias de forma que o ano civil e o ano solar fossem coincidentes o mais possível. De grande mérito científico, sobretudo por datar do tempo de Júlio César, o anterior calendário tinha falhas que urgia solucionar. Mesmo assim, vários países decretaram um período de transição, em que a data nova e a antiga coexistiram. Foi o que fez Lenine e por isso durante uns meses a Revolução de Outubro tanto era datada de 25 de outubro como de 7 de novembro..O século XX foi, pois, o do triunfo global do calendário gregoriano. Na Ásia Oriental, o Japão foi o pioneiro na adoção, ainda no século XIX. E mesmo quando os impérios europeus acabaram, permaneceu como marca da influência do Ocidente, ao nível do alfabeto latino e do inglês. Atatürk adotou-o para a moderna República da Turquia, um dos muitos passos modernizadores que deu no sentido de fazer do novo país um Estado mais forte do que o Império Otomano nos seus últimos tempos. No mundo islâmico, o xá tentou o mesmo mais tarde, mas a Revolução Islâmica trouxe de volta ao Irão o calendário contado a partir da Hégira (ida de Maomé em 622 de Meca para Medina), mesmo que na peculiar versão solar persa que põe o país hoje no ano 1399, com 1400 a chegar em março. Na esmagadora maioria dos países muçulmanos, a contagem começa também em 622, com a mudança de cidade pelo profeta, mas como os anos são lunares, uma dezena de dias mais curtos dos que os solares, estão em 1442..Calendário tradicional chinês (em fevereiro começa 4719, o ano do Boi), calendário hindu (2077), calendário judaico (5781), calendário norte-coreano até (110 da Era Juche, ou seja desde o nascimento de Kim Il-sung, avô do atual líder), por razões históricas ou políticas continuam a ser muitos os calendários em uso, sem que isso ponha obstáculos à crescente força do gregoriano. Mesmo num país com milhares de anos como a China, em que o zodíaco tradicional ainda rege muito da vida social, toda a elite política, cultural e sobretudo económica sabe que não pode ignorar o calendário gregoriano, muitas vezes chamado de ocidental. Há mesmo quem veja isso como uma vantagem, pois os chineses mais educados, tal como os árabes também, crescem a saber não só o seu calendário como o global, um pouco como dominam a escrita ideográfica ou árabe além do alfabeto latino. Para amenizar um pouco a questão cultural, paralelamente ganha terreno nos meios académicos o uso de Era Comum para substituir a Era Cristã, com AEC a substituir a.C. e EC no lugar de d.C..Com os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e mais alguns países a valerem ainda metade do PIB mundial, é difícil de imaginar que venha das potências emergentes um desafio ao uso do calendário gregoriano, tal como uma revisão científica deste pode demorar exatamente para não pôr em causa o estatuto global que tanto demorou a ter. Mas a história por vezes surpreende-nos: o mais sério boicote ao calendário gregoriano não veio de um bastião do catolicismo, a França, durante o período revolucionário pós-1789? O calendário republicano durou de 1793 a 1805 e foi reposto por uns dias em 1871 pela Comuna de Paris. Livre de referências religiosas, de base decimal, datado da proclamação da república, se tivesse sobrevivido, e sido imposto a toda a Europa, estaríamos no dia de Natal deste 2021 no 5 de Nivoso de 229. Resta saber se o resto do mundo também estaria.