A guerra em Cabo Delgado começou com operações violentas e de pequena escala, no distrito de Mocímboa da Praia, e intensificou-se a partir de 2019, com a chegada de dezenas de combatentes jihadistas estrangeiros e a entrada de armamento mais sofisticado, tendo-se estendido a metade dos distritos, no nordeste. Dos cerca de 2,6 milhões de habitantes da província, 20% são hoje refugiados, exercendo pressão sobre as instituições existentes e sobre a capital, Pemba. A fragilidade e a baixa motivação de combate das forças armadas e da polícia moçambicana permitiram a ocupação de Mocímboa da Praia e ataques coordenados e simultâneos em vários locais. Os jihadistas desenvolvem uma guerra simultaneamente terrorista, com decapitações de civis, e antigoverno, jogando com ressentimentos da população. As forças moçambicanas, mal treinadas e equipadas para operações de contrainsurgência, tem sido apoiada por mercenários com meios aéreos e o governo moçambicano subvalorizado até recentemente a gravidade do conflito - mesmo agora, em que solicita apoio militar e logístico, mostra renitência à vinda de contingentes militares multinacionais, que possam escapar ao controlo central..Para melhor compreensão do conflito há que considerar três fatores internos principais. Um, a introdução de práticas religiosas de inspiração salafita, contrárias à tradição do islão em Moçambique, que foi sendo feita por moçambicanos formados principalmente na Arábia Saudita e que se acentuou ao longo da década que agora termina. Dois, a desconsideração do governo face a necessidades da população e a ausência de investimentos sociais e em infraestruturas, a par de práticas corruptas e da concentração de recursos em elites locais ligadas ao poder central, o que fomentou o descontentamento e a desconfiança no poder. Três, o contrabando de marfim e madeiras preciosas para a Ásia, operado por máfias chinesas e vietnamitas, com a ajuda e cumplicidade de comerciantes e elites locais. Estes fatores alimentam ressentimentos e criam vazios de poder, preenchidos por redes criminais..A estes há a juntar outros tantos fatores externos. Um, a presença crescente de combatentes jihadistas estrangeiros, designadamente tanzanianos, quenianos, somalis e ugandeses, com treino militar e o apoio do Estado Islâmico, expresso a partir de 2019. Dois, a participação de moçambicanos no tráfico de heroína, vinda por mar do Afeganistão via Paquistão, com trânsito em Dar-es-Salam, Zanzibar, Mocímboa da Praia e Pemba e destino à África do Sul e à Europa, que se foi reforçando a partir de meados de 1990, com fluxos anuais entre 10 e 40 toneladas e rendimentos locais entre 20 e 100 milhões de dólares/ano; mais recentemente, a este junta-se o tráfico de cocaína, proveniente da Colômbia via Brasil, com placas giratórias em Durban e Maputo, em direção a Pemba e Zanzibar, com destino à Europa. Três, a existência de más relações com a Tanzânia, a partir da altura em que as empresas petrolíferas escolheram o nordeste de Moçambique para a instalação de fábricas de gás natural liquefeito (LNG) - tendo o governo moçambicano recusado acordos de partilha com o vizinho a norte..Para além destes fatores, convém relembrar algumas características da população que, não sendo determinantes para o início da guerra, são importantes para a sua compreensão. Moçambique tem cerca de 31 milhões de habitantes, maioritariamente cristãos - ziones e evangélicos (mais de 30%) e católicos (menos de 30%) - com os muçulmanos a constituírem provavelmente outros 30% (o censo de 2017 indica uma percentagem inferior a 20%, mas pode assumir-se, com alguma razoabilidade, que, parte dos 20% que declararam ter outra religião ou não ser religiosos sejam muçulmanos e não o tenham declarado por medo. Em Cabo Delgado a relação é inversa, dois terços são islâmicos e um terço são cristãos (católicos). Dos 17 distritos da província, somente três terão hoje maioria católica - Mueda e Muidumbe, a terra dos macondes, e Namuno, na fronteira com a província de Nampula..A população da zona nordeste, onde se desenrola a guerra, é essencialmente muçulmana. Etnicamente, os macuas, um terço da população de Moçambique, representam 85% da demografia do norte e são a língua materna de 70% das gentes de Cabo Delgado; a segunda língua materna é o português, com 6%, seguido pelo kimuane, com 5% (língua falada na costa nordeste, com ligação ao suaíli) e pelo shimakonde, com 4% - estes números poderão variar pois, à semelhança do caso da religião, 15% da população da província não declarou qual a sua língua materna. A maioria de Cabo Delgado é constituída por macuas e muçulmanos..Uma pergunta que hoje se faz é se a descoberta de gás no offshore tem relação direta com a guerra. Existem três projetos para fábricas de liquefação de gás, duas em terra e outra no mar. Uma, é do projeto Mozambique LNG, liderado pela Total (pública, francesa), tendo como parceiros a Mitsui & Company (privada, japonesa), a ONGC, a Bharat Petroleum e a Oil India Limited (indianas, maioritária ou totalmente públicas), a PTTEP (pública, tailandesa) e a ENH (pública, moçambicana). A TT já tomou a decisão final de investimento de 20 mil milhões de dólares, com o trabalho de construção a decorrer..Quanto às outras duas, a Rovuma LNG, localizada em terra, é liderada pela Exxon Mobil (privada, maioritariamente norte-americana) e a Coral Sul FLNG, localizada no mar, é liderada pela Eni (pública, italiana). Ambas ficam no chamado bloco 4, onde os direitos de construção e exploração são detidos em 70% pela Mozambique Rovuma Venture (40% Exxon Mobil, 40% Eni e 20% CNPC (pública, chinesa), sendo os 30% restantes detidos, em partes iguais, pela Galp (maioritariamente privada, portuguesa), a Kogas (pública, sul-coreana) e a ENH. A Rovuma LNG não tomou ainda a decisão final de investimento, mas na Coral Sul FLNG os trabalhos de construção da plataforma estão em curso desde 2017..A guerra não foi, porém, desencadeada pela descoberta de gás natural. Os interesses destas corporações só têm sido indiretamente atingidos, através de ataques "fora de área" a trabalhadores. Todas têm segurança própria, que protege o respetivo perímetro e, particularmente no caso dos projetos em terra, há batalhões de proteção das forças armadas moçambicanas. Porém, apesar de a guerra não se ter desencadeado por causa do gás, tal não significa que não seja por ele afetada nem que os interesses dos estados que têm companhias de bandeira a operar na zona não estejam presentes. A França (Total) é um exemplo: detém cinco ilhas ao longo do canal de Moçambique, que lhe permitem operar militarmente, se necessário, sem necessidade de localizar forças permanentes em Moçambique..Primeira, o conflito tem características de guerra jihadista e tem de ser combatido com uma estratégia de contrainsurgência, que exige ação política e social e que necessita de apoio externo, dada a fragilidade do governo e militares..Segunda, a guerra não foi provocada pela descoberta de gás, mas a sua visibilidade e importância estratégica é potenciada pela presença de corporações estrangeiras, com elevados investimentos..Terceira, a esmagadora maioria dos combatentes é moçambicana, o governo tem de trabalhar com o Conselho Islâmico de Moçambique e a Igreja Católica - e com as outras forças partidárias e da sociedade civil, em vez de as minimizar ou hostilizar, para impedir o recrutamento de jovens e mobilizar a população contra os insurgentes..Quarta, o papel dos atores externos na guerra é relevante, principalmente porque, desde o início, existem combatentes jihadistas estrangeiros a operar e comandar operações e porque, desde 2019, a intervenção externa se alargou com o apoio do Estado Islâmico..Quinta, faz todo o sentido uma intervenção armada externa com carácter de urgência, para ajudar a proteger a população da brutalidade do conflito, preferivelmente sob mandato das Nações Unidas. A formação de unidades moçambicanas especializadas é essencial, mas os seus resultados não são imediatos..Sexta, a intervenção portuguesa, se solicitada, não deve consistir no envio de unidades de combate para o terreno de operações, mas sim no apoio à formação de tropas de elite e no apoio à ação de organizações humanitárias e públicas a operar no terreno..Especialista em assuntos africanos