O primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki acusou a Rússia de tentar reescrever a história e que a União Soviética "observou passivamente" durante as duas revoltas de Varsóvia, e não aproveitou a oportunidade para libertar Auschwitz em 1944. No texto publicado no Politico, Morawiecki não só nega o papel de libertador da URSS como diz que Moscovo foi um "facilitador" da Alemanha nazi..É o mais recente capítulo do revisionismo de que a Segunda Guerra Mundial está a ser alvo, e em especial o papel dos governos face aos judeus, nas vésperas de duas evocações internacionais da libertação de Auschwitz..No dia 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho (da União Soviética) libertou os prisioneiros do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Setenta e cinco anos depois, na segunda-feira, 27, o polaco Andrzej Duda vai presidir às comemorações, no local do maior dos campos de concentração do regime nazi. Se o chefe de Estado é o primeiro a falar junto ao portão da morte, a organização afirma que as palavras mais importantes serão dos sobreviventes..O mesmo tema e a mesma solenidade, com líderes mundiais, figuras judaicas proeminentes e sobreviventes do Holocausto, mas uma abordagem bastante diversa é o que decorre a partir desta quarta-feira em Jerusalém. A cerimónia principal tem lugar na quinta-feira no Yad Vashem, o memorial do Holocausto, ou Shoah. As sobreviventes Rose Moskowitz e Colette Avital não usarão da palavra, mas acenderão uma tocha, numa cerimónia que inclui orações e o hino de Israel. Os discursos estão reservados ao presidente Reuven Rivlin e ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu (Israel), aos presidentes Vladimir Putin (Rússia), Emmanuel Macron (França) e Frank-Walter Steinmeier (Alemanha), ao vice-presidente Mike Pence (EUA) e ao príncipe Carlos (Reino Unido)..De fora da lista de oradores ficou o presidente do país ocupado pela Alemanha nazi, e no qual os alemães estabeleceram seis campos de concentração e extermínio. Além de Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Majdanek, Chelmno, Belzec e Sobibor. Este é um tema de especial sensibilidade para os polacos. Em novembro, o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki queixou-se junto da Netflix porque o documentário The Devil Next Door localizou os campos num mapa com as fronteiras atuais..No ano anterior, os deputados aprovaram uma lei que criminalizava com pena de até três anos de prisão quem acusasse os polacos de terem sido cúmplices do nazismo. Uma onda de contestação levantou-se, em especial em Israel e nos Estados Unidos, e uma emenda à lei acabou por descriminalizar a ofensa. O governo explicou que o objetivo era "defender o bom nome da Polónia" e não permitir que as pessoas digam "campos de morte polacos" de forma impune..O presidente israelita foi uma das vozes críticas. Depois de dizer que é inegável que muitos polacos combateram os nazis durante a Segunda Guerra, Rivlin lembrou que "a Polónia e os polacos tiveram uma participação no extermínio"..Em 2013 o investigador Jan Grabowski concluiu no livro Hunt for the Jews que pelo menos 200 mil judeus que haviam escapado dos guetos acabaram mortos de forma direta ou indireta pelos compatriotas polacos..Quase seis milhões de polacos, metade dos quais judeus, morreram na Segunda Guerra Mundial, conflito desencadeado pela invasão e a ocupação da Polónia pela Alemanha nazi em 1939..Antissemitismo no leite.A controvérsia polaco-israelita deixou marcas e teve mais episódios. Uma declaração conjunta dos chefes de governo ressalvou a importância da resistência polaca em ajudar judeus - uma afirmação que não é partilhada por todos os historiadores. E quando Netanyahu foi confrontado com a acusação de revisionismo, afirmou: "Aqui estou a dizer que os polacos cooperaram com os nazis. Eu conheço a história e não a branqueio.".Meses depois, o grupo de Visegrado, que reúne os chefes de governo de Polónia, República Checa, Hungria e Eslováquia, cancelou uma cimeira marcada para Israel depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros Israel Katz ter dito que "os polacos amamentam-se de antissemitismo no leite das mães"..E agora o presidente da Polónia, que não teve honras de discurso, cancela a viagem a Jerusalém. Duda justificou a medida, ao começar por dizer que ficou "espantado" com o convite para Vladimir Putin falar. "E o presidente polaco não devia usar da palavra? Eu deixei claro: isso é uma distorção da verdade histórica. Como é possível que os que falam sejam os presidentes da Alemanha, da Rússia e da França, cujo governo na época enviou pessoas, judeus, para campos de concentração, enquanto o presidente da Polónia não pode falar, da Polónia que nunca colaborou com os alemães, cujo Estado clandestino estava a lutar contra os alemães e tentou apoiar os judeus com a maior determinação possível", disse Duda..Sobre o papel de polacos nos crimes do nazismo, reiterou a posição de que apenas alguns indivíduos colaboraram. "Havia também antissemitas. Havia aqueles que eram maus. Sem dúvida. Não o nego, e nunca o neguei. Havia também uma maioria que simplesmente queria sobreviver, para salvar as suas vidas. Portanto, não ajudaram ou até mesmo recusaram-se a ajudar", comentou..O amigo de Putin.O memorial Yad Vashem justificou a escolha dos oradores por serem "chefes de Estado de países que trouxeram a libertação do mundo da ocupação nazi". Uma afirmação que cai pela base, quando fazem parte da lista o presidente alemão e o francês, que teve um regime colaboracionista (Vichy). Já o governo polaco no exílio juntou-se às fileiras dos Aliados..Poderia ser apenas mais um capítulo da tensa relação polaco-israelita. Mas o principal responsável chama-se Moshe Kantor. É um oligarca russo e judeu que preside ao Congresso Judaico Europeu, conhecido como "o homem de Putin". O Haaretz cita os seus colaboradores: foi este bilionário, com uma fortuna avaliada em 3,4 mil milhões de euros, quem "propôs e planeou" o evento e que é "responsável pelo programa e pelo seu conteúdo", e também responsável pela lista de mais de 40 chefes de Estado e de governo presentes, entre os quais o português Marcelo Rebelo de Sousa..A Polónia não convidou Putin para a cerimónia que terá lugar em Auschwitz, mas o embaixador russo Sergey Andreev. Já não o convidara para as cerimónias realizadas no dia 1 de setembro para comemorar o 80.º aniversário do início da Segunda Guerra Mundial..As relações entre os dois países mantêm-se tensas desde a invasão da vizinha Ucrânia (a Crimeia) por parte da Rússia. Mas pioraram bastante depois de no mês passado Putin ter feito a alegação de que a Polónia tinha conspirado com o ditador Adolf Hitler e contribuído para a deflagração da Segunda Guerra Mundial. "Basicamente conspiraram com Hitler. Isso está claro nos documentos dos arquivos", disse o homem-forte da Rússia. Disse também que a cooperação inicial entre a União Soviética de Estaline e a Alemanha nazi, que culminou no Pacto Molotov-Ribbentrop, que dividiu a Polónia entre os dois países ocupantes, era algo inevitável e que se destinava a ajudar a Polónia..Varsóvia apresentou um protesto e o Ministério dos Negócios Estrangeiros exortou Putin a "não usar a memória das vítimas do Holocausto para jogos políticos". Também distribuiu uma cópia de um documento escrito em 1942 a avisar que a Alemanha nazi tinha iniciado uma campanha de genocídio contra os judeus da Europa..Virar a Polónia contra os aliados.Segundo o analista político polaco Marcin Zaborowski, ouvido pela AFP, o objetivo de Putin é "virar a Polónia contra Israel e, portanto, também contra os EUA". Zaborowski lembra ainda os laços que o presidente russo tem com os israelitas. "Putin é amigo de Israel e dos judeus russos em Israel, muitos dos quais são influentes, como Avigdor Lieberman", o líder do partido nacionalista secular Yisrael Beitenu. "Se as relações polaco-judaicas se deteriorarem, os EUA estarão do lado de Israel", disse à AFP o ex-diretor do Instituto Polaco de Relações Exteriores."Em Israel, a Polónia não é vista como uma vítima [do nazismo] e o sentimento antipolaco ainda é alto", afirmou..No entanto, à Bloomberg, o assessor principal do vice-presidente Mike Pence, Tom Rose, disse que os EUA estão "muito desiludidos" com o "desdém desnecessário e evitável por parte de um forte aliado americano por outro forte aliado americano".