"Assistimos a situações de profunda cobardia e de deserção humana à conta da pandemia"
"Daqui a uns anos, não sei se seremos capazes de lembrar aquilo porque passámos nestes últimos meses de tão surreal que é: as máscaras, a distância social, as pessoas trancadas em casa, os filhos sem poderem ir à escola, o teletrabalho, o não nos cumprimentarmos nem abraçarmos." Quem o diz é Miguel Sousa Tavares, que acaba de publicar um novo romance, Último Olhar, onde a pandemia é a personagem principal, rodeada de outras que constroem com as suas vidas um retrato de uma situação mundial que surgiu de forma inesperada. Por isso mesmo afirma: "As verdadeiras tragédias vêm sempre sem aviso."
Logo à primeira página está a origem do romance: "O veneno da China". Para o autor não é difícil concluir: "Se não fosse a covid, este livro não existia. Foi um "romance imprevisto", afinal há sete anos que não publicava um." Revela que tem dois ou três encravados: "Não consigo planear romances, mas neste fui como que obrigado a escrever a partir do momento em que percebi que era mais do que uma epidemia sanitária, que era também moral. Achei que um romance ia mais direto ao coração das pessoas do que outro registo." Além do vírus e dos seus efeitos sobre a sociedade, o protagonista é Pablo. Um "velho" que atravessou a Guerra Civil de Espanha, esteve num campo de concentração durante a II Guerra Mundial, e que leva os leitores do princípio ao fim com a sua história de vida. Pelo meio, meia dúzia de personagens desenham o que a humanidade tem assistido e vivido desde há ano e meio.
Há uma particularidade narrativa que se destaca na segunda metade de Último Olhar, as passagens onde o sexo são um cenário frequente. Para Sousa Tavares, que recusa caracterizar essas páginas como eróticas mas sim de sexo mesmo, a resposta é simples: "Aconteceu naturalmente e acho que o sexo também é um sinal de vida. Além de que vinha a propósito, fazia sentido e humanizava. Se não viesse, não punha." Justifica: "O livro tem muita coisa sobre morte." Em sua defesa recorda as palavras de Millôr Fernandes quando escreveu uma crítica sobre o Equador e questionava os escritores brasileiros dizendo "O Miguel escreve sobre sexo sem medo porque na vida também há sexo". A situação mais inesperada, confessa, é a "cena de sexo no campo de concentração, de que nunca ninguém se lembraria". Como "veio a propósito", a pergunta que fez foi "porque não?"
É um romance que se passa em Espanha. Quis distanciar-se da nossa realidade?
Não foi esse o caso, antes porque o detonador do romance é um acontecimento passado em Espanha: o apedrejamento de um autocarro que levava idosos infetados pela covid. A partir daí senti necessidade de o situar de forma correta.
A covid será o segundo grande acontecimento deste início de século a seguir ao 11 de Setembro de 2001?
Sim, sem dúvida, o 11 de Setembro e a covid serão os dois momentos disruptores deste milénio. Eu comecei a escrever o romance em março de 2020, no início da pandemia, e esse acontecimento em Espanha veio ao encontro daquilo que antevi: que os velhos iriam ser as grandes vítimas e que a sociedade estava pronta a descartá-los. Foi essa perceção que me fez pensar que existe um lado de instinto de sobrevivência que estabelece uma fronteira muito ténue com a barbárie. Que foi muito nítido nesta pandemia e mesmo em Portugal, pois após o Presidente e o primeiro-ministro terem falado sobre a questão, foi preciso que o almirante das vacinas se impusesse para que os velhos passassem à frente de todas as corporações que estavam a ser vacinadas antes: polícias, bombeiros, militares, magistrados, etc.. Foi preciso que alguém dissesse "não" e que o primeiro critério deveria ser o de salvar vidas e, portanto, aqueles que mais morriam por causa do vírus: os velhos.
Uma situação impensável?
Sim. Foi estabelecido tacitamente que os velhos não iam para os hospitais ocupar camas necessárias porque vão morrer de qualquer maneira e também não iam ser vacinados porque há poucas vacinas e temos de começar pelos que têm mais hipótese de sobreviver. Foi a partir desse momento que pensei: "então a nossa sociedade investiu tanto em prolongar a vida das pessoas e chega a um ponto em que descarta os mais velhos e só quer que fiquem trancados em casa ou nos lares, sem acesso aos filhos e netos, porque se saírem à rua são um perigo público?" Que raio de sociedade é esta que construímos?
Pode-se dizer que há uma vontade de apagar a memória e de poupar na Segurança Social?
Não sei, mas é interessante que 2020 é o primeiro ano em que a idade da reforma em Portugal baixou em vez de aumentar por causa da diminuição da esperança de vida. A mortalidade sénior foi de tal maneira forte que é a primeira vez em que as pessoas se reformam mais cedo do que no ano anterior. Na Bélgica, a mortalidade dos mais velhos foi de 70%, de tal maneira que a Amnistia Internacional chegou a acusar o país de genocídio. No entanto, o livro não é apenas sobre isto, entram outros personagens que não são necessariamente velhos.
Em Portugal também houve um princípio de genocídio?
Não direi um genocídio consciente, mas houve claramente uma política inicial que foi de deixar para trás os velhos e tratar dos outros. Não foi como disse o Marquês de Pombal, "enterrar os mortos e cuidar dos vivos", mas vamos cuidar dos que têm mais esperança de vida e abandonar os outros. Isso foi claro e óbvio.
A eutanásia está bem presente no romance. Esperava que esse critério médico acontecesse em Portugal?
Eu conto a experiência de um médico italiano que refere "a eutanásia pratica-se todos os dias no hospital". Há um momento em que é preciso desligar as máquinas ou em que o médico tem de fazer escolhas se não existe equipamento para toda a gente. Só que a escolha não deve ser feita em função da idade mas de quem tem mais esperança de vida. Isso será normal e adequado, porque a medicina não permite a imortalidade nem temos o direito de ao entrar num hospital estar à espera dela, apenas de aguardar pelo melhor tratamento possível e em igualdade de circunstâncias - não em função da idade. Esse foi o critério que se quebrou com esta pandemia. A idade passou a ser um critério e essa foi a grande subversão moral que aconteceu; não estava à espera de ver essa frieza. Isso ouviu-se em declarações claras de pessoas no sentido de que era preciso abandonar os velhos, o que se verificou realmente.
Citaçãocitacao"Quando o personagem se revolta e diz "espanhóis de merda" é por achar que não deviam ser assim, é no sentido de que se querem guerra, façam-na a sério e não a apedrejar velhos indefesos."
Em Portugal ou noutros países?
A nível nacional e internacional, tanto que o Papa se pronunciou sobre a situação várias vezes, tal como outras pessoas, como Tolentino Mendonça quando diz que "os velhos foram transformados numa periferia da sociedade". O que diz muito sobre os critérios morais de um tempo em que nos preocupamos com tantas minorias e a desigualdade de direitos entre aqueles e outros e, de repente, a minoria dos velhos são abandonados e passam a ter menos direitos que os outros. Entre isto e o tratamento que se dava dantes aos leprosos e tuberculosos não vai uma grande diferença.
Se as farmacêuticas não tivessem "inventado" uma vacina tão rapidamente, esse critério ter-se-ia imposto de uma forma mais dura?
Com certeza, teríamos assistido a uma mortandade brutal entre os velhos. É muito chocante e questiono qual é o sentido de tentar prolongar a vida por todos os meios químicos e outros se no fim estamos diante de farrapos humanos que a sociedade não sabe o que quer fazer com eles. Tornam-se um estorvo para as famílias e as sociedades. O meu personagem central é alguém que recusa isso, ser um estorvo.
O Holocausto surge neste romance e espanta-se porque não houve uma rebelião entre os prisioneiros dos campos de concentração. Quis fazer uma comparação com os velhos vítimas da pandemia?
O espanto é mais por tantos judeus marcharem tão docilmente para a morte naqueles comboios! O que me lembra o que Pasternak dizia sobre os russos e a sua "maldita capacidade da resistência ao sofrimento". Acho que não são apenas os russos, pois o ser humano tem essa imensa capacidade de não acreditar na fatalidade das coisas. Ou seja, há um otimismo e uma esperança que nunca morre, mesmo quando a evidência da tragédia está diante dos olhos como aconteceu com seis milhões de judeus ao embarcarem docilmente nos comboios com destino aos campos de concentração, imaginando que nunca seria tão mau como o que era óbvio. Isso é que me espanta. Como é que dez ou vinte soldados alemães conseguiam enfiar mil adultos nas carruagens? Mesmo antes, as perseguições e os pogroms aconteceram docilmente... foram muito poucos os que anteciparam o que iria acontecer e fugiram a tempo.
Também tivemos em Portugal autocarros que levavam imigrantes e foram precisos muito poucos polícias para os manter no interior do veículo...
A reação do ser humano perante a adversidade extrema e o perigo de morte é sempre muito estranha. Na guerra é mata ou morre, não há terceira saída, enquanto nestas situações existe sempre uma vontade estúpida de acreditar na bondade do carcereiro e de que está entre seres humanos. Nessa cena do apedrejamento, o motorista do autocarro pergunta "estes são seres humanos ou animais?" e alguém responde "são seres humanos, os animais não se comportam assim!". Essa interrogação vai perdurar para sempre e a pandemia pôs isso muito em causa. Todos assistimos a situações de profunda cobardia e de deserção humana à conta da pandemia. As pessoas acharam muito engraçado o primeiro mês do confinamento, as experiências novas e os diários que escreviam, depois isso acabou. No meu caso, fiquei muito marcado. Não estava à espera de escrever este romance e só lhe dei início porque o mundo estava às avessas.
Teve a ficção "facilitada" com esta realidade tão impressionante?
É verdade, precisava apenas tentar explicar a realidade e construir os personagens dentro do que ia vendo e torná-los testemunhas e intérpretes. Esse é o ofício de cada romance.
Pretende que Último Olhar seja uma memória destes tempos?
Alguns personagens são deste tempo, como a médica e o marido, que têm uma vida confortável em Madrid e, subitamente, ela é interpelada pelo que está a acontecer devido à covid. O médico italiano é alguém meio perdido que encontra um caminho e uma missão na luta contra a pandemia e é um daqueles heróis que são sem o saber. Por norma, o herói não é aquele que está preparado para o ser mas o que se revela no momento. Todos eles, contudo, são personagens que se não existiram poderia ter existido neste tempo. Há outros ainda, oportunistas e os que se tentam safar.
Estruturou o aparecimento dos personagens ou eles foram surgindo por si?
Fui deixando correr, mas sempre com uma preocupação: ter uma narrativa do ponto de vista masculino e feminino. Eu procuro sempre interpretar a realidade sob o olhar da mulher e do homem, que não são convergentes na maior parte dos casos, antes complementares ou divergentes. Estas duas últimas situações é o que mais me fascina na relação entre os dois sexos. Há uma cena entre a médica e um polícia de que gosto muito, porque são dois desconhecidos que se encontram numa situação trágica e estabelecem uma relação momentânea no meio de uma cidade onde os habitantes praticamente desapareceram.
Há no livro uma tomada de posição constante, no entanto quando se trata da Guerra Civil espanhola diminui em relação a republicanos e nacionalistas...
Acho que até me descuidei pois estou claramente do lado republicano, mas não quis deixar passar em claro o que foram dos dois lados os crimes. Qualquer guerra civil é necessariamente suja e nenhum dos lados sai limpo, pois não há vencedores nem vencidos com glória.
Foi a parte mais difícil do livro?
Não, essa foi mais sobre o campo de concentração de Mauthausen, porque queria fazê-lo de outra maneira após se ter escrito tanto sobre eles. Era um campo onde estiveram muitos prisioneiros da Guerra Civil espanhola, dos primeiros a ser aberto e dos últimos a ser libertado. Foi complicado imaginar como era o dia-a-dia e como é que um miúdo de 15 anos podia sobreviver. Há situações que são verdadeiras, como o fotógrafo ou o amigo de infância.
Usa a expressão "puta da vida" a dado momento. É a melhor definição para o que se passou?
Em muitos casos é, mas acho que o livro tem um lado solar, até do Sul, que é a localização que mais me atrai desde que escrevo. Para mim é o território da esperança e o personagem principal e os cenários do livro são terras do Sul. Sou um grande defensor da civilização do Mediterrâneo e este livro mostra o meu fascínio pelos pátios, os terraços, as oliveiras, os ciprestes, tudo o que significa de encontro de pensamentos, de conversas, de culturas, mesmo de absurdo e de extremos nas formas de viver e de morrer - esse é o lado solar da vida. Por mais puta que seja a vida é que temos e não há outra. No fim de contas, quando o personagem se revolta e diz "espanhóis de merda" é por achar que não deviam ser assim, é no sentido de que se querem guerra, façam-na a sério e não a apedrejar velhos indefesos.
Foi difícil não esquecer tudo o que se viu, como os negacionistas por exemplo?
Eu fui tomando nota de várias situações que achava principais, como a imagem que mais me impressionou, a do papa sozinho na Praça de São Pedro. Tentei pôr tudo o que mais me marcou e que em termos de narrativa fosse essencial para quem um dia ler o livro e não souber o que foi a pandemia. O Último Olhar pode, na minha opinião, dar-lhe uma ideia.
Receou ser infetado?
Em todos nós houve sempre um momento em que pensámos que podíamos apanhar covid. No Natal, o meu filho apanhou e fiquei fechado com ele 14 dias, sozinhos. Fiz de enfermeiro e a qualquer momento podia infetar-me. Andei sempre a rasar, mas nunca deixei de trabalhar.
dnot@dn.pt
Miguel Sousa Tavares
Porto Editora
311 páginas