As netas de moura
Há dois anos, após o Conselho Superior de Magistratura ter castigado o juiz Neto de Moura e no meio da consternação nacional pela morte, em dois meses, e em contexto de violência doméstica, de 10 mulheres e uma menina de dois anos, a Associação Sindical de Juízes, depois de muito se encanitar, pela voz do seu presidente, o desembargador Manuel Soares, com a onda de críticas ao juiz e à justiça, anunciou ter pedido um estudo para aferir da possível discriminação de género nas decisões dos tribunais em casos de violência doméstica e de crimes sexuais.
Por coincidência, tal anúncio ocorreu na mesma semana em que o DN noticiou que a associação ia "celebrar" o Dia Internacional da Mulher com um workshop de maquilhagem e que esta, em resposta às perguntas do jornal, não só assegurava não padecer de estereótipos de género como que estes "não predominam no sistema judicial."
Esta consideração da associação deixava alguma confusão quanto aos propósitos do estudo anunciado: se estava tão convicta de que o sistema judicial, ao contrário do resto da sociedade, não padece de estereótipos de género, como crer na sua boa-fé ao pôr a hipótese de existir discriminação de género - que como se sabe (talvez a ASJ não saiba, na verdade) se baseia nos ditos estereótipos - nas decisões dos juízes?
A confusão era tanto maior quando o presidente da ASJ certificava, em artigo no Público, que a ideia que se criara dos juízes - segundo ele de que "os tribunais protegem os homens agressores, com sentenças brandas, e discriminam as vítimas mulheres, com linguagem inapropriada e desrespeitadora dos valores constitucionais" - era uma "imagem distorcida da realidade". Se a ASJ e seu presidente já conheciam a a realidade, para quê o estudo? Para quê perguntar "há discriminação de género nas decisões dos tribunais portugueses? A resposta judicial varia em função do género do/a julgador/a? As sentenças nos casos de violência doméstica são demasiado lenientes?"
Nem é que não existam estudos sobre estereótipos e discriminação de género nos tribunais e que não salte à vista que as leis portuguesas estavam até muito recentemente empapadas de discriminação e cegas para essa realidade - basta recordar que até 1995 o crime de violação só aceitava vítima feminina, admitindo pena "especialmente atenuada se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente", tivesse "contribuído de forma sensível para o facto", e que o tipo criminal de violência doméstica foi criado apenas em 2007 -, mas a ASJ, distraída, não reparou. Ou só acredita nos estudos que manda fazer.
Já no que mandou fazer acredita tanto que quis anunciar-lhe, a 8 de março, os resultados preliminares sem sequer conhecer ainda o estudo propriamente dito. E que resultados: segundo os investigadores Jorge Quintas e Pedro Sousa, da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito do Porto, que examinaram 212 decisões judiciais, relativas ao período de 2015 a 2019, em casos de violência doméstica, a "generalidade das decisões não inclui expressões de conteúdo discriminatório" e "apenas na decisão de condenação são identificadas duas situações que relevam uma tendência para discriminação: a condenação ocorre numa proporção superior quando a vítima é mulher em comparação com as escassas vítimas homem e, nos tribunais singulares, a taxa de condenação das juízas é superior à dos juízes".
O resultado preliminar disponibilizado aos jornalistas tem duas páginas, pelo que não podemos saber em que se baseia para chegar a estas conclusões. Mas se é fácil perceber que se ponha a hipótese de ser discriminatório que os homens que se apresentam como vítimas de violência doméstica não sejam levados a sério como tal - lá está, estereótipos de género -, por que raio se considera que haverá "tendência para a discriminação" no facto de as juízas condenarem mais?
Como sublinhou de imediato a Associação das Juízas Portuguesas, "semelhante conclusão permite, com tanta validade lógica, sustentar a inferência oposta: a de que os magistrados homens são mais benevolentes com os arguidos no julgamento do crime de violência doméstica."
Pode, claro, ser apenas uma infelicidade na formulação. Tal como está, porém, a conclusão implica que para os investigadores a norma, o justo, o certo, está nas decisões dos juízes homens e no facto de condenarem menos homens, sendo as das juízas o desvio "discriminatório", quiçá histérico, que nos deve preocupar. No país de Neto de Moura e do acórdão da sedução mútua (assinado por Manuel Soares), um estudo encomendado pela associação de juízes que não acredita em estereótipos de género diz-nos que a haver discriminação é contra os homens - e vinda das mulheres com poder para julgar. Que coincidência espantosa, não é?