Juiz Neto de Moura vai ser castigado por "expressões e juízos" do acórdão da "mulher adúltera"
A deliberação, histórica, dividiu o Conselho Superior da Magistratura (CSM) ao meio: foram oito votos a favor contra sete a considerar que "no caso em apreciação as expressões e juízos utilizados constituem infração disciplinar". Uma decisão que implicou a mudança de relator, já que o projeto por este apresentado era de arquivamento. Assim, terá de ser outro relator a apresentar novo projeto na próxima sessão do plenário.
O comunicado sublinha de resto o carácter inédito da decisão, ao sublinhar que "o CSM ponderou que a censura disciplinar em função do que se escreva na fundamentação de uma sentença ou de um acórdão apenas acontece em casos excecionais, dado o princípio da independência dos tribunais e a indispensável liberdade de julgamento, circunstancialismo que se considerou verificado no caso vertente, em virtude de as expressões em causa serem desnecessárias e autónomas relativamente à atividade jurisdicional".
Só 15 dos 17 membros do Conselho Plenário (que reúne todos os membros do CSM) deliberaram. Os dois membros que não estiveram presentes são não magistrados - Alexandre Sousa Machado, um dos dois designados pelo Presidente da República, e Maria Eduarda Azevedo, eleita pela Assembleia da República. O que significa que foi um conselho plenário constituído por uma maioria de magistrados que deliberou não arquivar o caso. E, de acordo com fonte do CSM, houve pelo menos dois não magistrados a votar pelo arquivamento, o que implicará que três dos magistrados terão votado contra.
O caso, recorde-se, remonta a outubro de 2017, quando foi conhecido o acórdão que ficou conhecido como "da mulher adúltera". No mesmo, assinado por Joaquim Neto de Moura como relator e pela desembargadora Luísa Arantes, do Tribunal da Relação do Porto e que diz respeito a um processo de violência doméstica no qual uma mulher de Felgueiras foi ameaçada, sequestrada e barbaramente agredida com uma moca com pregos pelo ex-namorado e pelo ex-marido, invocava-se, na explicação da atenuação da pena dos dois homens, o Velho Testamento da Bíblia e a sua prescrição de lapidação para as adúlteras, assim como o Código Penal de 1886 e a atenuação especial da pena para o homem que matasse a esposa que o tivesse traído (no máximo, seis meses de exílio da comarca), certificando-se ainda de que "a mulher adúltera" é execrada pelas "honestas".
O acórdão causou grande escândalo público, com tomada de posição por várias organizações de defesa dos direitos das mulheres e das vítimas e convocação de manifestações no Porto e em Lisboa, mas numa primeira fase o CSM exarou um comunicado em que frisava ser necessário que as decisões dos tribunais respeitassem a Constituição e a lei, admitindo estar-se perante "proclamações arcaicas" mas sem anunciar qualquer ação. Foi apenas depois de o Presidente da República e de a ministra da Justiça se terem pronunciado sobre o caso que o CSM anunciou a abertura de processos de averiguações à conduta dos dois magistrados, depois - em dezembro de 2017 - convertidos em processos disciplinares.
A decisão do CSM de abrir processos de averiguações e depois de instaurar processos disciplinares abriu uma guerra no seio da magistratura: um grupo de juízes, na maioria jubilados e incluindo o ex-presidente do Supremo Tribunal Noronha de Nascimento, publicou um manifesto no qual afirmavam que os juízes se sentiam com "independência limitada" e invocavam o direito à "liberdade de expressão" dos magistrados. Uma linha de argumentação que seria usada pelo próprio Neto de Moura na sua defesa.
Também o então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Henriques Gaspar, embora criticando a "manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações da linguagem de subjetividade excessiva, [que] não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência" nas decisões judiciais, manifestou desagrado perante a "intensidade e a violência das críticas" contra Neto de Moura, chegando até a afirmar que estas constituíam "objetivamente um serviço prestado não às vítimas mas a todos aqueles que, sentados na bancada ou chorando lágrimas de crocodilo, fazem o jogo da discriminação e da perda de confiança na justiça".
O conselho plenário do CSM é composto por todos os membros do CSM (17), sendo presidido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Joaquim Piçarra. Os restantes membros são sete juízes eleitos pelos magistrados judiciais, sete personalidades eleitas pela Assembleia da República e duas pelo Presidente da República.
A conduta da juíza desembargadora Luísa Arantes, que coassinou o acórdão em questão e que foi também objeto de processo disciplinar pelo facto, não foi ainda objeto de análise pelo CSM, devendo existir já, no entanto, um projeto de decisão para o seu caso.
(em atualização)