Arcádia. A tradição familiar que encanta há 87 anos
Há quase um século, Manuel Pereira Bastos saiu de terras de Celorico de Basto para ser marçano numa mercearia da cidade do Porto e cedo revelou vontade de empreender e inovar. Começou com uma pastelaria e pouco depois, em 1933, criava a Arcádia, uma confeitaria e salão de chã situada na Praça da Liberdade, zona nobre da Baixa portuense, que hoje é uma das principais marcas de chocolates portuguesas, mantendo o fabrico tradicional e sempre nas mãos da família. Já vai na quarta geração, com Francisco Bastos, 28 anos, a juntar-se ao pai João e à tia Margarida nos comandos.
Um dos segredos da Arcádia, hoje uma empresa que mantém a produção própria e 26 lojas de venda espalhadas pelo país, parece ser a inovação que, neste caso, não é incompatível com a tradição. Foi de uma viagem a Paris, na década de 1940, que Manuel Pereira Bastos trouxe a especialidade da casa, as amêndoas de licor da Arcádia, como ficaram conhecidas as drageias Bonjour. "Foi um homem que procurou inovar. Trouxe de Paris o conhecimento para fazer as amêndoas de licor que ainda hoje são o nosso produto de excelência", diz Margarida Bastos, neta do fundador da Arcádia e que hoje com o irmão João e o sobrinho Francisco dirige a empresa que tem agora um centro de produção e distribuição em Grijó, Gaia, e mantém uma unidade de fabrico - apenas de amêndoas de licor - na loja original na Rua do Almada.
As drageias ganharam fama e impuseram-se no mercado. "É muito manual a sua produção, requer muito tempo, é tudo pintado à mão. Até chamamos bordadeiras às pessoas que pintam", refere Margarida Bastos, com o irmão João a recordar que, nas décadas de 1940 e 1950, "era o pessoal de Belas-Artes que muitas vezes trabalhava em part-time a pintar as amêndoas. Ganhavam uns cobres." O método ainda vivo é único em Portugal, garantem os Bastos.
Doze anos depois de ter criado a Confeitaria Arcádia, Manuel Pereira Bastos voltou a apostar numa novidade. Nascia no número 63 na Rua do Almada uma fábrica de pastelaria de raiz, com um pequeno estabelecimento de venda que hoje permanece ativo, tendo sido remodelado recentemente e é a sede da Arcádia. A família mantinha ainda a pastelaria Portugália, a primeira loja de Manuel Bastos, também na Rua do Almada. Mas a Arcádia era já o principal negócio e, em 1964, o pai de Margarida e João assumiu a gestão, tendo-a assegurado até ao final do século XX.
Desde o início e até meados da década de 1970, a Arcádia era também conhecida pelos seus serviços de banquetes. Organizou eventos importantes como a visita da princesa Ana de Inglaterra ao Porto. Com a desertificação da Baixa - um panorama hoje invertido -, a loja tradicional na Praça da Liberdade encerrou portas em 2000, um ano antes de Margarida e João assumirem a gestão da empresa e conseguirem uma nova dinâmica comercial, "sempre com a qualidade pela qual a Arcádia ficou conhecida".
"Hoje temos uma grande variedade produtos. A Arcádia começou por ser conhecida pelas línguas-de-gato e pelo sortido tradicional. Houve um percurso de especialização no chocolate", aponta João Bastos, com Francisco a reforçar que "não são usados corantes nem conservantes" no fabrico, nada de químicos, "só produtos naturais".
Os dois irmãos Bastos nunca estiveram totalmente fora da Arcádia, dado o carácter familiar da fábrica, mas as suas carreiras profissionais passaram por outros meios. Licenciada em Farmácia, Margarida trabalhou "muitos anos na área das análises clínicas", enquanto João, economista, foi quadro do grupo Sonae durante mais de 20 anos. "A certa altura fiquei dividido", confessa. E escolheu empenhar-se no negócio de família, do qual ele e a irmã nunca estiveram totalmente afastados, "sobretudo em cada Páscoa e Natal", as alturas do ano com maior produção e venda.
O mais novo elemento é Francisco. Licenciado em Gestão e Finanças, trabalhou cinco anos em Inglaterra na banca. "Ia falando sempre com os meus pais e havia a ideia assente que um dia viria para a Arcádia. Em 2018 sentimos que era o momento certo."
De resto, a confeção de pastelaria reúne muitas pessoas com uma ligação quase familiar. Uma funcionária, já reformada, trabalhou 48 anos na Arcádia. "Temos pessoas com mais de 40 anos, outras com 30 e tal anos. Muitos são primos, sobrinhos de funcionários", diz Margarida Bastos. No total, só na produção, trabalham 170 pessoas.
A qualidade exige dedicação e rigor, em especial numa área como a pastelaria e o chocolate. "Tem os seus segredos. Mantemos métodos muito artesanais, embora já apoiados por alguma tecnologia", diz João, com Margarida a destacar que "as receitas são as mesmas de 1933 e os processos são demorados, já que os produtos são moldados, banhados um a um", como o DN assistiu na unidade de produção de Grijó e na Rua do Almada.
No espaço no centro do Porto, o visitante da loja passa por um autêntico museu da arte de confecionar chocolates, com muitos utensílios antigos em exposição, e ainda pode assistir à pintura de drageias. Primeiro, no andar superior, as amêndoas são torradas e caramelizadas, em tachos de cobre. Em baixo, são recheadas com licor e coradas. Depois há a parte artística, é feita a pintura, com inúmeros desenhos, e só por mulheres. Uma a uma as drageias ganham vida. Por causa deste método, manual e lento, o Natal já está há semanas a ser preparado e em dezembro já se trabalha para a Páscoa. Com algumas diferenças, a forma de trabalhar o chocolate é seguida em muitos outros produtos fabricados na unidade de Grijó, onde as mulheres também são dominantes.
Atualmente a panóplia de produtos é grande, mantendo os tradicionais como línguas-de-gato, bombons e sortidos, com novos artigos como o chocolate com vinho do Porto que resultou de uma parceria com a Cálem e "foi um sucesso enorme". Nasceram os gelados de chocolate e as bolachas. Há ainda novas ofertas como "o chocolate para congelar, que é um produto premium", a gama infantil e o Manicómio. "É um chocolate em forma de comprimido, com o rótulo a ser desenhado por artistas com experiência de doença mental. É uma forma de chamar a atenção para uma causa social", salienta Francisco. Se o chocolate tem os segredos de confeção a sua apresentação ao público é também importante. "Inovamos muito a nível da embalagem, com caixas específicas desenvolvidas para flores de chocolates, por exemplo."
No fundo, resume o mais novo dos Bastos, o objetivo da Arcádia ao cabo de 87 anos é "adaptar a empresa e os produtos aos momentos da história". Por isso, do Porto partiram à conquista do país.
Com 26 lojas em Portugal - sete em franchising -, localizadas entre o Chiado, o mercado da Ribeira de Gaia e vários centros comerciais, como Norte Shopping ou CascaisShopping, a Arcádia tem no abastecimento da sua cadeia o destino principal da produção. Também fazem alguma revenda. A exportação é que não é fácil nem perseguida, apesar de acontecer de forma pontual como foi o caso de uma cadeia do México que comprou artigos gourmet. Mas não é um sonho dos Bastos.
"Não queremos vulgarizar o produto", realça João Bastos, e esta postura implica preservar os métodos de fabrico e os produtos naturais para a confeção. "Exportar implica transporte, armazenamento, exposição, há períodos de validade que não são longos, uma série de cuidados a ter para manter a imagem", refere. O filho Francisco lembra que há métodos de refrigeração em transporte que permitem a exportação mas o recurso a produtos naturais limita. "Não utilizando a vertente química no chocolate é mais difícil." Com este tipo de abordagem, o preço dos chocolates Arcádia acaba por ser "um bocadinho mais elevado". Mas ainda assim acessível, garantem, e com garantia de qualidade.
Numa altura em que a saúde e os produtos alimentares estão em foco, na Arcádia não se teme que o chocolate tenha "penalização". João Bastos graceja que "é como o vinho, pode sempre beber-se um copo. O chocolate consumido com moderação não faz mal, tem até vantagens em termos de saúde". Margarida exemplifica que pode ser um antidepressivo.
Portugal nem tem um consumo alto de chocolate. "É visto como um produto de luxo." João Bastos critica o elevado imposto nacional: "O IVA é a 23%, em Espanha é 10% e na Bélgica é 5%. Isto tem reflexos nos preços, como é óbvio."
A matéria-prima - quando se fala de chocolate - é "importada da Bélgica", um dos centros mundiais a par da Suíça, do tratamento de chocolate que chega de África e da América do Sul. Mas a Arcádia até tem três tabletes de chocolate de origem: São Tomé e Príncipe, Tanzânia e Equador.
Em março, a pandemia de covid-19 abalou muito a atividade comercial. A Arcádia não passou ao lado. As lojas estiveram fechadas, a empresa teve de aderir ao lay-off mas já retomou na totalidade a produção e mesmo as vendas em lojas. Caíram muito. "No Chiado agora é um deserto. Os turistas tornaram-se bons clientes, tanto em Lisboa como no Porto", revela Margarida Bastos. Mas neste ano abriu mais um quiosque-café no Outlet de Vila do Conde e os resultados estão a superar as expectativas.
A Páscoa, um período de excelência, foi um desastre e a ambição passa por recuperar, na medida do possível, neste final do ano com o Natal. E há a vertente digital. "A loja online cresceu muito."
O futuro é por isso encarado com otimismo. Com um jovem Bastos já no negócio, a esperança é prosseguir com a tradição familiar. "Esperamos manter. É importante por uma questão emocional. Em Portugal sentimos uma ligação com os clientes. Somos uma marca do Porto mas reconhecida em Lisboa há décadas. Talvez por ficar perto da Estação de São Bento, era tradição levar-se uns bombons da Arcádia no regresso de comboio", diz a gestora. E há sempre clientes, muito antigos, que não se esquecem de como o chocolate Arcádia contribuiu para a sua felicidade. "Há essa ligação emocional. Há quem venha cá e diga: 'Foi graças a vocês que conquistei a minha mulher com uma caixa de bombons'." Como o cliente, mesmo décadas depois, não esquece, na Arcádia trabalha-se para retribuir. "Sempre a fazer chocolate de qualidade."