Antes do Pai Natal, havia as cartas ao Menino Jesus

Para os portugueses com mais de 45 anos, o Pai Natal é um estrangeirismo tardio. Até meados dos anos 1980, Portugal era um dos países europeus em que os pedidos natalícios das crianças eram dirigidos ao Menino Jesus. Punha-se a meia ou o sapatinho na chaminé (ou sob a árvore de Natal) e esperava-se até à manhã seguinte pela generosidade da criança nascida na manjedoura de Belém.
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Primeiro limpava-se a chaminé de fuligens e gorduras. "É preciso que o Menino Jesus não suje os pezinhos quando descer na noite de Natal", dizia a avó, afadigada entre essa tarefa e o vigiar da massa dos coscorões a repousar em alguidar de barro. E acrescentava, tornando mais penosa a espera da criança: "Mas pode não vir a esta casa se achar que te portaste mal." A cena passa-se nos anos 1970, em plena baixa pombalina, num tempo e num espaço em que as cozinhas, que podiam ser enormes, eram a oficina de todas as maravilhas natalícias. O lugar onde se cozinhavam as iguarias doces e salgadas mas também aquele onde, na véspera de Natal à noite, a tremer de ansiedade, as crianças deixavam a meia ou a pantufa à espera de ver a graça divina transformada em brinquedos novos. O Pai Natal começava a aparecer mas dele, explicavam os adultos, esperava-se apenas que ajudasse o Menino, que era demasiado pequeno para a tarefa de andar a saltar de telhado em telhado, com um saco carregado de bonecas e triciclos às costas.

Portugal foi durante muito tempo um dos poucos países europeus em que a tradição de distribuição de presentes pelas crianças era atribuída a Jesus em detrimento dos Reis Magos (como ainda hoje acontece em Espanha e em vários países de língua espanhola) ou do próprio Pai Natal, que só em meados dos anos 1980 adquiriu, entre nós, o protagonismo que hoje lhe conhecemos. Um processo em tudo idêntico ao que ocorreu em países como Alemanha, Hungria ou Itália (onde Santa Luzia, celebrada a 13 de dezembro, também chegou a assumir um papel nesse ofertório). A (abundante) literatura portuguesa sobre esta quadra reflete, aliás, esse papel do Menino Jesus. Desde os versos tradicionais publicados no antigo Livro de Leitura da 1.ª Classe ("Menino Jesus contente./Vai descer às chaminés./E caminha docemente./Ninguém o vê, nem pressente./Dormem todos os bebés (...) Não cabem nos sapatinhos/ os brinquedos, oh Jesus!/São pequenos os pezinhos/Mas deixa bolas, carrinhos/tudo o que é lindo e reluz") mas também António Gedeão ou Mário de Sá-Carneiro ("Alegram-se os pequenitos;/ Pois sabem que o bom Jesus/ Costuma dar-lhes bonitos./Vão-se deitar os lindinhos/Mas nem dormem de contentes/E somente às dez horas/Adormecem inocentes").

As cartas com os pedidos das crianças eram, pois, endereçadas ao Menino Jesus, que as deixava sem resposta à espera da manhã de Natal. Mas, em 1971, o jornal O Comércio do Porto, descobrindo que tais missivas levavam o carimbo de "refugo" na central dos correios da cidade, decidiu que, nesse ano, haveria volta do correio.

Reunida a vasta correspondência, esta foi levada para uma sala e devidamente tratada pela redação, que, nas páginas do matutino, informou os pequenos leitores do que ia acontecer "Por esta altura dos meus anos, os Correios lá do Céu não têm mãos a medir! É uma farturinha de cartas que nem fazes ideia!... Vêm de todos os cantos do mundo!...Ele são cartas em português, em francês, em inglês, em chinês, imagina tu! Até em chinês! Ora eu não posso responder a tudo ao mesmo tempo, e então resolvi arranjar uns secretários por aqui, por ali, por acolá, de maneira que...

- Não ponhas mais na conta, querido Jesus do meu coração, pelos vistos secretário, "por aqui"... fico a ser eu!? - atalhei, todo bobadinho de alegria."

E o "secretário" iniciou o seu alegre labor. Em 1985 - 14 anos depois desta iniciativa - os próprios CTT se encarregaram de criar um serviço de resposta a estes pedidos infantis. Mas o país abrira-se ao mundo e o destinatário já não era o Menino Jesus, mas o Pai Natal.

Quase sempre perdidos, estes escritos, cheios da ortografia hesitante de quem aprende as primeiras letras, contêm também a poesia e o sentido de humor muito próprio das crianças. Há uns anos, o jornal italiano Corriere della Sera publicou algumas das melhores cartas ao Menino Jesus, recebidas, nesse Natal, na Central dos Correios de Roma. Algumas eram alegres, outras bem pelo contrário, mas havia também as que desconcertavam pelas recomendações dirigidas ao destinatário. Como esta, cheia de um saber de experiência feito, em que se lia: "Menino Jesus, não compres os presentes na loja do meu prédio, a mãe diz que eles são ladrões."

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