A última conquista: o direito a ser mãe sem dizer adeus aos relvados
Patrícia Gouveia era capitã do Sporting e jogadora da seleção nacional de futebol quando em 2016 interrompeu a carreira devido a uma gravidez muito desejada, mas não planeada. Ela "tinha os objetivos muito bem definidos para aquela época" e nenhum passava por ter um filho e parar uma carreira no auge e cinco títulos nacionais.
Durante a gravidez viu-se envolvida num processo de defesa dos direitos básicos enquanto mulher e profissional de futebol e por isso aplaude as novas leis de proteção do direito à maternidade da FIFA. "Uma atleta não pode ser discriminada porque quer ser mãe. Isso tem de ser um ponto assente e por isso a norma da FIFA de proteção à maternidade é muito importante. É uma vitória para as mulheres. Não têm de ser criticadas e discriminadas como eu senti que fui na altura. Foi uma das alturas em que eu senti mais discriminação no futebol", confessou a ex-jogadora ao DN.
Habituada a ouvir os sinais de um corpo esguio e atlético, Patrícia começou a reparar que tinha uma barriguinha que teimava em ficar presa a ela. Tinha um período menstrual irregular e por isso quando ele deixou de aparecer - é o primeiro sinal de gravidez - nem sequer pensou no que isso poderia significar. Depois foi juntando os pontos. Além da barriguinha e da falta de menstruação, tinha muita vontade de comer, logo ela "que nem depois dos treinos sentia muita fome". E só a ideia de comer sushi, que tanto adorava, a agoniava. Mas só quando o namorado verbalizou a hipótese de poder estar grávida foi ao médico.
Ir a um obstetra no auge da carreira foi algo para o qual não estava preparada, mas foi isso que aconteceu. Já estava grávida de nove semanas e ainda competiu durante três semanas: "Depois o médico disse que podia ser perigoso para mim e para o bebé, afinal o futebol é um desporto de contacto e mudanças bruscas de velocidade. Eu sabia que era um risco continuar a jogar e tive uma conversa franca com o meu treinador da altura, depois informei o clube e comuniquei à equipa."
Nenhuma destas conversas foi fácil. Muito menos ficar de fora do Euro 2017. Ela tinha contribuído para o inédito e histórico apuramento da seleção nacional feminina, mas quando o Campeonato da Europa começou ela estava a mudar fraldas e a dar de mamar à Constança: "Foi tudo muito difícil, não vou mentir. Eu desejava ser mãe mas não foi fácil ir ao Jamor assistir da tribuna à final da Taça de Portugal que eu devia estar a jogar. Quando começou o Europeu eu já tinha sido mãe e já estava mais conformada."
O pior mesmo foi quando o clube que representava lhe pediu para assinar um contrato de substituição. "Nem todas as pessoas do Sporting aceitaram muito bem a gravidez e cheguei a acionar o Sindicato de Jogadores para defender os meus direitos. Quando informei o clube que estava grávida a primeira reação da direção técnica foi de total compreensão e sensibilidade para com a situação. Eu coloquei-me à disposição para exercer outras funções ou tarefas, mas passados umas três semanas o cenário deixou de ser tão cor-de-rosa. Fui abordada por um elemento da direção do clube, que me colocou um documento à frente dizendo que aquele contrato substituía o que tinha assinado. Eu tinha um contrato de dois anos mais um de opção e ele apresentou-me um de seis meses, que terminaria no momento em que iria ser mãe e a ganhar um quinto daquilo que estava a ganhar", contou.
Recusou e pediu a ajuda ao sindicato, mas o "processo chegou a ser feio" e ela ponderou ir para tribunal. Numa das reuniões, os advogados do clube disseram-lhe que "até podia ter razão e ganhar em tribunal", mas que pensasse bem "se queria ficar anos à espera de receber aquilo a que tinha direito", ainda mais estava grávida: "Eu disse que esperava o tempo que fosse, mas depois o sindicato conseguiu um acordo para que o contrato fosse cumprido."
Com 30 anos e talento suficiente para despertar o interesse de qualquer equipa, Patrícia ainda tentou voltar, mas um problema de saúde antigo, até então adormecido, acordou com a gravidez e obrigou-a a colocar um travão definitivo na carreira. "A Constança tinha 4 meses quando voltei aos treinos, mas sentia que algo estava diferente e passados dois meses comecei a ter problemas respiratórios, consequência de uma bronquiolite na infância. Segundo o médico, a gravidez pode ter levado a que a doença se manifestasse. Comecei a ter febres e necessidade de medicação diária e antibióticos frequentes. Por vezes o médico nem me deixava ir para o campo treinar e eu comecei a pensar que não ia voltar a atingir o nível de antigamente e resolvi parar", revelou a ex-jogadora, que seria depois convidada para team manager da equipa do Sporting, após a saída de Bruno de Carvalho da presidência e a entrada de Frederico Varandas. Há cerca de um ano deixou o futebol de vez por um emprego estável numa seguradora.
Por tudo isto, a gravidez "foi um misto de emoções". Ela sempre quis ser mãe, mas isso implicou abdicar de alguns sonhos.
Para evitar situações como a que aconteceu com Patrícia Gouveia, a FIFA avançou com uma norma de proteção do direito à maternidade. O organismo que rege o futebol mundial prepara-se para aprovar uma nova regulamentação para permitir às futebolistas o gozo de, pelo menos, 14 semanas de licença de maternidade, remuneradas a dois terços do salário-base. As federações nacionais terão liberdade para impor condições mais vantajosas, mas um clube que rescinda o contrato de trabalho com uma jogadora durante a gravidez será obrigado a pagar uma compensação e uma multa, podendo ainda ficar impedido de contratar novas futebolistas durante um ano. A nova regra entra em vigor em 1 de janeiro de 2021.
A iniciativa merece o aplauso de Rita Monteiro, apesar de não acreditar que as atletas vejam nisso uma oportunidade para serem mães. Ela jogava num dos melhores clubes (Futebol Benfica) quando em 2011 decidiu que era a altura certa para cumprir o sonho de ser mãe. Tinha 31 anos e estava numa relação séria desde os 21 quando engravidou. Tinha sentido o apelo da maternidade uns dois anos antes e já tinha tido um aborto pelo meio. Por isso quando soube que estava grávida aguardou um mês até contar às colegas. O clube nunca soube. Entretanto meteram-se as férias de final de campeonato e no ano a seguir já não se inscreveu.
Depois de ter o bebé era "praticamente impossível voltar a jogar futebol". Como não era profissional tinha de trabalhar durante o dia e à noite precisava estar com o bebé e não podia ir treinar: "Na altura nem ajudas de custas havia quanto mais contratos. Os treinos eram à noite e jogávamos por gosto, por um sumo e uma sandes, como se diz. Se fosse profissional ponderava ser mãe apenas no final da carreira."
Hoje a profissionalização é uma realidade em Portugal, mas não pode ter as costas largas na altura de salvaguardar as especificidades do futebol jogado por mulheres. Ou seja "é bom ter a lei, mas não terá grande impacto", uma vez que "muitas das jogadoras gostam de jogar, mas também gostam de ter um dinheirinho no final do mês e uma vida pessoal que não precisa de ficar em stand by até aos 30 anos".
Foi o que aconteceu com ela. Rita optou por não voltar aos relvados. "Quem tem um filho muda as prioridades e pensa na estabilidade financeira, coisa que o futebol não me dava", admitiu a ex-atleta, que hoje em dia trabalha na área de informática e já tem dois filhos: "Um filho é o maior projeto que se pode ter."
No caso de Jacyra de Melo a gravidez também foi planeada, numa altura em que fazia uma pausa na carreira. Jogou no Odivelas e no Futebol Benfica (Fofó) antes de decidir ir trabalhar para Angola, onde tentou retomar a carreira. As condições eram muito precárias e ela resolveu parar. E foi nessa altura que ficou grávida. Tinha 29 anos. "Há muitas mulheres que sonham com uma carreira no futebol e que sonham igualmente ser mães. Até agora quem consegue bons contratos põe a maternidade em pausa até ao final da carreira, mas porquê colocar a vida pessoal em espera só porque és jogadora?", questionou a ex-jogadora, lembrando que "o jogador homem não precisa de nove meses para ser pai e nem licença de paternidade tira".
Jacyra nunca teve muita barriga e recuperou a forma num mês. "Uma gravidez não é uma coisa do outro mundo. São nove meses. Há lesões graves que demoram mais tempo a recuperar. Temos de a encarar como algo lindo e não doloroso, um início de um novo projeto que te obriga a uma pausa, mas não a abdicar de jogar", segundo a luso-angolana, que acabou por retomar a carreira no Qatar, para onde se mudou com o marido. No ano passado voltou a Portugal à boleia de novo emprego do marido (scout no Benfica) e jogou no Alverca. Neste ano não assinou por ninguém e em agosto prepara-se para ir para Abu Dhabi e logo vê se continua a jogar. Afinal ainda só tem 33 anos.
Segundo ela, a questão da maternidade não é pacífica e há jogadores que se "debatem com lutas internas" sobre isso. E considera que jogadoras com contratos profissionais devem encarar a maternidade de forma planeada: "Quando tens um relacionamento sério não é fácil esperar dez ou 15 anos para dar início a uma família. Tudo isto deve ser ponderado. Já não estamos na fase de jogar futebol só porque sim."
E o que pensa quem ainda joga sobre a maternidade? Jéssica Silva tem 26 anos, joga no Lyon, uma das melhores equipas do mundo e que neste ano venceu a Liga dos Campeões, e sonha ter um filho (ou mais). "Quero muito ser mãe, mas acredito que isso aconteça perto do final da minha carreira. Mas não sei... Esta nova norma da FIFA vem dar mais suporte e fazer que a mulher não veja o tempo de ausência como uma limitação. Sempre quis ser mãe cedo, mas sendo jogadora profissional de futebol sou obrigada a planear. Nunca sabemos o amanhã, mas agora ainda não é o momento", confessou a internacional portuguesa.
Segundo ela, a nova regulamentação da FIFA acompanha o crescimento da modalidade: "Esta preocupação pelo bem-estar da mulher no futebol faz e fará toda a diferença em direção à evolução e ao avanço da profissionalização. Esta nova norma faz todo o sentido, uma vez que as jogadoras passam a sentir-se mais protegidas e apoiadas durante o período pré e pós-gravidez. O querer ser mãe não pode e não deve ser um entrave. Acredito que esta medida trará mais estabilidade às jogadoras. Fará que comecem a pensar em constituir uma família sem terem receio de que os clubes lhes retirem o direto a ganhar o seu salário ou que rescindam os contratos."
Jéssica espera que a nova norma da FIFA caminhe rumo à profissionalização da jogadora e que "aquilo que antes era uma limitação passa a ser um incentivo". Ela jogou em Portugal, Espanha, Suécia e França e admite que já teve contratos com cláusula antigravidez , uma realidade escondida, que "não faz sentido" no século XXI.
Com o futebol feminino a avançar a várias velocidades as realidades diferem de país para país. Em Espanha até junho havia cláusulas antigravidez, que davam o direito ao clube de rescindir contrato. As jogadoras aceitaram-na encurraladas pela necessidade e a vontade de cumprir um sonho, mas denunciaram a situação e obrigaram a alterar a lei quando o país avançou com a profissionalização a 100%.
Nos EUA as jogadoras já gozam de um certo estatuto e são várias as campeãs mundiais de 2019 que têm filhos e que inclusive os levam para os estágios e competições. Alex Morgan, por exemplo, foi mãe pela primeira vez em maio, com 31 anos. Treinou até o sétimo mês de gestação, embora tenha deixado de jogar a partir de certa altura. Era (e é) um das jogadoras mais requisitadas pelas marcas a nível mundial dado o seu talento e beleza física, mostrou a barriga em capas de revista e garantiu que não perdeu patrocínios. Uma declaração importante tendo em conta que há grandes marcas, como a Nike, com contratos revistos por baixo em caso de gravidez. Uma medida considerada discriminatória.
Já Sydney Leroux dos Orlando Pride (EUA) foi mãe duas vezes. Em 2016, após ter sido campeã do mundo, decidiu fazer uma pausa na carreira para ter um filho. Voltou e foi novamente chamada à seleção até engravidar de novo. Pelo meio sofreu um aborto espontâneo. Quando voltou a jogar depois de ser mãe pela segunda vez foi ovacionada por um estádio cheio.
No Brasil, Tamires descobriu que estava grávida nos exames de rotina. "Chorei três dias seguidos. Achava que o futebol tinha acabado para mim", contou a lateral-esquerda da seleção brasileira, que ficou afastada dos relvados quase quatro anos: "Era impossível viver a maternidade e a rotina de atleta ao mesmo tempo." Depois de regressar aos relvados foi chamada à seleção, foi ao mundial e ganhou um contrato profissional na Europa.
Mas também há quem admita esperar pelo fim da carreira para ser mãe. Cristiane é uma delas. A jogadora do São Paulo e da seleção brasileira anunciou há dias o congelamento dos óvulos, com vista a uma gravidez futura.
Opções de vida que as mulheres jogadoras nem sempre tiveram. Elas derrubaram barreiras, enfrentaram tabus e discriminação por amor ao futebol. Agora, 125 anos depois da primeira partida oficial de futebol feminino (23 de março de 1895, em Inglaterra), conquistaram o direito a ser mães sem ter de dizer adeus aos relvados.
São cada vez mais as mulheres que jogam futebol e futsal. Segundo o último registo da Federação Portuguesa de Futebol, são mais de dez mil as jogadoras federadas a praticar as duas modalidades em Portugal. No total, eram 10 028 as jogadoras inscritas: 6020 em futebol e 4008 em futsal. Números que falam por si e mostram o crescimento constante na ordem dos 15,4% em relação a 2018.
Mas os números são ainda mais impressionantes se recuarmos ao início da década, já que o número de praticantes femininas quase duplicou e registou um aumento de 85,5%. Já em 25 anos o crescimento foi superior a 250%. Segundo a FIFA, No mundo inteiro são mais de 18 milhões de mulheres a jogar futebol, 13,2 milhões fazem-no de forma organizada.
A FIFA quer proteger o direito à maternidade e permitir que as jogadoras de futebol gozem uma licença de 14 semanas, pagas a dois terços do salário. Como nasceu essa proposta?
O futebol feminino teve um crescimento fenomenal nos últimos anos. Vimos isso com o sucesso sem precedentes do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino, que se jogou em França, no ano passado. Houve um processo contínuo de profissionalização, com clubes e ligas de muitos países a tornarem as suas estruturas mais organizadas e profissionais. Este crescimento extremamente encorajador deve ser acompanhado pelo desenvolvimento de um quadro regulamentar adequado às necessidades do futebol feminino, de forma a proteger as jogadoras e proporcionar-lhes as melhores condições possíveis para o desenvolvimento das suas carreiras e ao mesmo tempo poderem ser mães.
Como se protege o direito dos clubes, que contratam uma atleta por dois anos, por exemplo, e depois fica privado de a usar por um ano?
Uma jogadora que engravida inevitavelmente ficará ausente por um certo período de tempo, o que obviamente traz problemas para o clube. É por isso que o novo regulamento também oferece uma maior proteção aos clubes, visto que podem, excecionalmente, registar uma jogadora fora do período de inscrição para substituir temporariamente o registo de outra jogadora que tenha gozado a licença de maternidade.
Em países como Espanha havia cláusulas antigravidez...
Até agora a FIFA não tinha como lidar com muitos diferendos relacionados com a maternidade, mas o futebol feminino está em franco desenvolvimento e a tornar-se cada vez mais profissional a uma escala mundial, por isso era importante estar um passo à frente e definir uma estrutura para evitar abusos potenciais e garantir que as mulheres jogadoras que desejam desenvolver as suas carreiras o possam fazer no melhor ambiente possível.
Acredita que a nova lei impedirá que as jogadoras coloquem a vida pessoal em suspenso em prol da carreira?
Esse é o objetivo. O novo regulamento é um passo no sentido de lhes dar maior proteção para garantir que não tenham de escolher entre a carreira e a família. Embora não tenhamos estatísticas sobre isso, fomos percebendo pelos testemunhos de várias jogadoras que havia muitas atletas a optar por não ter filhos porque sentiam que isso significaria o fim das suas carreiras.
Não acha que em países onde a maioria das atletas ainda não tem contrato profissional, como em Portugal, a regra pode ser facilmente contornada...
Os novos regulamentos aplicam-se aos jogadores profissionais, incluindo, por exemplo, um período de ausência remunerada obrigatória em caso de maternidade. É um primeiro passo, e um padrão mínimo a nível mundial, para garantir condições adequadas às jogadoras que pretendem fazer carreira no futebol. Então, é claro, cada país pode oferecer maior proteção, e vários deles já o fizeram.
Que outras medidas estão a ser tomadas para tornar o futebol feminino mais igualitário e inclusivo?
O desenvolvimento do futebol feminino é uma das principais prioridades da FIFA. Temos de adotar uma abordagem global e garantir as condições adequadas para o crescimento em todo o mundo. Isso significa melhorar as condições, como o aprimoramento constante do Mundial, que é a nossa maior montra. Em muitos países, onde o futebol feminino está apenas a começar, a prioridade passa por definir as condições para que as mulheres possam jogar. A FIFA investirá um milhão de dólares (cerca de 820 mil euros) no futebol feminino em todo o mundo, com projetos feitos à medida das necessidades específicas de cada federação membro.