Quando em meados de março, os portugueses se apressaram a ir para casa, só saindo para o essencial, os profissionais de saúde fizeram o percurso inverso: de casa para o hospital. E muitas têm sido as tentativas de lhes agradecer o gesto (palmas, palavras, doações). Os supermercados, por exemplo, criaram logo uma hora de acesso privilegiado para quem trabalha no ramo da saúde e para as forças de segurança. Nesse dia, Nuno Costa - técnico de cardiopneumologia no Hospital de São João, no Porto - teve uma desilusão; quando percebeu que, numa das cadeias de supermercado, a hora destinava-se apenas a médicos e a enfermeiros. A regra foi alterada, mas a ideia ficou: "A sociedade não nos conhece.".Em Portugal, há cerca de 25 mil técnicos de diagnóstico, nove mil a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). São responsáveis por análises, radiografias, estudam e contribuem para o tratamento da função cardiovascular, da visão, da audição, da saúde oral, da saúde pública. E, em tempo de covid, tal como habitualmente, a vida das pessoas também passa pelas suas mãos. Mesmo que os doentes não os vejam por estarem a dormir um sono profundo (no caso dos cuidados intensivos) ou terem um contacto fugaz com estes técnicos, apenas para tirarem sangue ou uma fotografia ao interior. Os resultados do trabalho invisível dos técnicos traduzem-se em diagnósticos clínicos e na garantia de que as máquinas ajudam os humanos da melhor forma..Tanto o cardiopneumologista do São João, como a técnica de radiologia do Santo António, no Porto, Marta Macedo e a técnica de análises clínicas do Hospital Amadora-Sintra Lígia Henriques trabalham dentro do "covidário", como a última descreve o serviço dedicado ao tratamento da covid-19. Camuflam-se a rigor e seguem, cheios de calor, para mais um turno..Técnicos de diagnósticos estão no grupo "outros". E não se sabe quantos são os infetados.Só no serviço de Lígia Henriques foi encontrado um profissional infetado com o novo coronavírus. Mas nenhum dos três técnicos com quem o DN falou acusou positivo no teste de despistes da covid, mesmo quando, no caso de Nuno, a noiva, enfermeira também no Hospital de São João, já contraiu a doença..O número de técnicos de diagnóstico infetados não é conhecido. Estão integrados num grupo a que o Ministério da Saúde chama "outros" e inclui assistentes operacionais, administrativos, farmacêuticos. As únicas duas classes distinguidas são a dos médicos e a dos enfermeiros, que têm, segundo os últimos dados divulgados pela tutela, a meio do mês de abril, 396 e 566 infetados respetivamente. Os "outros" contabilizam 1 169..O Sindicato dos Técnicos Superiores de Saúde (STSS) estima que haja mais de 150 profissionais infetados, indica ao DN. Garantindo que já solicitaram "mais do que uma vez esses dados" ao ministério da Saúde, mas que continuam sem "qualquer resposta". Contactada pelo DN, a tutela explica que estes números ainda não existem..Para os três técnicos de diagnóstico e terapêutica, o tratamento igual por parte das autoridades de saúde seria um bom primeiro passo para verem a sua profissão reconhecida, um exemplo para a sociedade. Insistem que não procuram um tratamento especial, "nem palmas", acrescenta Lígia Henriques. Só reconhecimento como "profissionais capazes e necessários". Até porque "não há diagnóstico sem meios complementares", lembra Marta Macedo..Nenhum dos três escolheu a profissão como primeira opção no ensino superior, mas todos queriam trabalhar na área da saúde e todos perceberam, durante o curso, que gostavam desta vertente. Não se arrependem, mesmo em tempo de pandemia, conscientes do risco e com medo de contaminar os mais próximos, a vontade de desempenhar da melhor forma que sabem o seu trabalho não dá tréguas. "Ninguém estava à espera de uma pandemia, mas efetivamente todos nos dispusemos a isto", diz a técnica de análise clínicas do Amadora-Sintra. "Foi para isto que fomos preparados"..Os pulmões da covid e o "afeto pensado".O trabalho de Marta Macedo, 43 anos, 21 de profissão, é executar os raio-x, tac`s, ressonâncias, mamografias. Por estes dias, é junto à máquina que faz a radiografia pulmonar que passa mais tempo, embora continue a dar assistência a doentes não covid, tal como os colegas. Os pulmões são o órgão mais afetado pela doença, inflamados dão origem a uma pneumonia. O que significa que são incapazes de receber o oxigénio suficiente para libertar na corrente sanguínea, impedindo o corpo de absorver este oxigénio e de libertar o dióxido de carbono. Uma vez atingida esta fase, o tratamento poderá ter de passar pela ventilação - a introdução artificial de ar.."É fácil olhar para um raio-x ou para uma tac e ver que é covid. É uma imagem muito diferente daquela a que estávamos habituados a ver, até numa pneumonia mais comum", explica a técnica de radiologia do Hospital de Santo António. O que tem de diferente? Faltam-lhe as palavras para descrever a imagem. "Parece... parece... parece um vidro fosco"..E depois de ver a imagem não pode ir ter com o doente e descansá-lo ou consolá-lo. Isso é o que mais a entristece, diz. "Saber que aquele doente está assustado, sem poder receber um telefonema ou uma visita e depois depara-se com profissionais fantasiados. Só nos veem os olhos. Eu custo-mo dizer que gostava muito que os meus olhos falassem, neste momento", confessa..A angústia estende-se à sala onde é feita a pausa, indo-se "lanchar à vez", e segue para lá do horário de trabalho já por si longo. Em casa, esperam-na o marido e a filha e, apesar dos banhos no serviço e de quase se "despir à porta" do domicílio para evitar tocar em algo com os objetos que traz do hospital, paira sempre a questão: "Será que levo o bicho para casa?". E o "afeto vai-se perdendo", pelo menos, passa a ser "pensado"..A máquina que não desiste de quem não consegue respirar sozinho.Se os raio-x ou as tac que os radiologistas fazem sugerem alterações substanciais na quantidade de ar que os pulmões conseguem receber, entram os cardiopneumologistas. Habitualmente, Nuno Costa divide o seu tempo no Hospital de São João entre o bloco operatório e a unidade de urgência. Lida com as máquinas de que substituem o pulmão ou o coração, programando e vigiando-as..Para os casos mais extremos ainda, o Hospital de São João tem um Centro de Referência de ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal), onde estão os doentes em falência cardíaca ou pulmonar, que se acredita ainda poderem voltar à vida. Junto à cabeceira de cada doente na sala da ala dos cuidados intensivos estende-se um braço com um monitor, uma série de botões. A máquina faz as vezes de pulmão ou coração, engana o corpo e bombeia o sangue. E às vezes engana bem e os pacientes voltam a respirar por si..O cardiopneumologista do São João já viu dois infetado com covid-19 largarem a máquina e sair dos cuidados intensivos. Um número esperançoso, porque "cada doente que sai dos intensivos é uma vitória", explica. Principalmente perante um vírus "sem respostas".."Antes desta pandemia, já vi passar por ECMO entre 200 a 300 doentes. Nós nunca tivemos de mudar tantas vezes os dispositivos [da máquina] como agora. É uma doença que vem mudar o nosso paradigma de atuação. As alterações que ela induz a nível pulmonar, vascular, da coagulação é algo que não tínhamos visto antes", admite Nuno Costa. "Claro que lemos toda a informação que se produziu na China e na Itália, mas efetivamente é um paradigma diferente", lamenta..Tudo é um desafio. Até o equipamento de proteção individual. "Imagine enfiar uma agulha ou um cateter com dois e três pares de luvas", propõe. Depois está sempre a despir e a vestir, porque há outros doentes para ajudar, fora da área covid. E lá vai Nuno, há 13 anos nesta correria. Agora mais acelerada ainda..O desagradável cotonete gigante e fato que esconde o sorriso de Lígia.A Lígia Henriques, 44 anos, não lhe desagrada completamente o fato espacial, que tem para se proteger. E não só porque a protege do vírus. Também a protege do olhar de quem está a magoar quando coloca um cotonete com mais de dez centímetros pelo nariz das pessoas, a famosa zaragatoa. "Os doentes não nos verem até é bom, porque aquilo é doloroso", brinca a técnica de análises do Amadora-Sintra. "Para ficar bem feito tem de se chorar"..Pelo menos em ambiente hospitalar - e as boas práticas recomendam que o mesmo se aplique a outros contextos - são os técnicos de análises os responsáveis pelos exames de despiste do novo coronavírus. Uma tarefa contínua para a equipa de Lígia, que tem cerca 40 elementos. São 24 horas por dia..De noite as horas demoram mais a passar. O trabalho envolve "sete, oito horas ali fechados sem poder comer, ir à casa de banho, com muito calor, muito apertada", suspira e denuncia o cansaço. "Não temos folgas, estamos a fazer muitos turnos e estamos cá todos os dias praticamente". No entanto, a fadiga não pode levar a melhor na hora do trabalho, lidam com amostras ativas e todo o cuidado é pouco..Para Luís Dupont, presidente do Sindicato dos Técnicos Superiores de Saúde, a maior preocupação é precisamente "a segurança e saúde destes trabalhadores". Mas gostava que não ficasse esquecida a carreira, "os salários dignos" e que fossem eliminadas "as desigualdades que o processo de revisão da carreira e de descongelamento não anulou", diz o sindicalista. Marta, Nuno, Lígia são mais modestos nos pedidos. Gostavam mesmo era que as pessoas soubessem o que fazem.