Vivemos uma paz guerreira, os nossos corpos instalados na paz, os nossos espíritos entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras e ele ataca-nos com ameaças, mas nós dormimos numa cama e não num abrigo..E, no entanto, participamos na verdadeira guerra sem nela termos entrado, mas fornecendo-lhe armas e munições..A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa sucedeu uma ajuda militar em armas, primeiro defensivas depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade aumentam principalmente devido à contribuição maciça dos Estados Unidos, acompanhados da maior parte dos países da União Europeia..A estratégia do exército russo é implacável. Ela é filha da estratégia de Jukov, durante a Segunda Guerra Mundial, dando o protagonismo a formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra o exército inimigo, mas também contra as cidades a tomar acabando com o esmagamento total pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como todos os exércitos vitoriosos, mas mais terrivelmente no avanço soviético na Alemanha, assassinatos e violações multiplicaram-se. Nós soubemo-lo na altura, mas evitámos denunciá-los, explicando-os como uma vingança pelo imenso sofrimento e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas..No que respeita à Ucrânia, povo se não irmão pelo menos primo próximo do povo russo, podemo-nos perguntar se assassinatos e violações se devem à desordem de certas tropas, à fúria da derrota ou a uma vontade de aterrorizar..Não sabemos ainda se a intenção primordial da agressão de Putin era a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja a de conquistar de maneira duradoura as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov. No momento em que escrevo a luta é aguerrida e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa, mas o exército ucraniano, no decurso da sua guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos, estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que até agora têm travado consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos..O que parece provável agora, salvo um golpe de estado no Kremlin ou um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar-fogo, compromisso de paz), é que a guerra está para durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante das armas ocidentais e as retaliações cada vez maiores da Rússia..O caráter internacional da guerra na Ucrânia cresce. É verdade que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara que não está em guerra com a Rússia. Mas a sua intervenção militar a favor da Ucrânia é uma guerra indireta à qual se junta uma guerra económica aumentada pelo crescimento das sanções..Estamos em plena escalada, alimentada por novos bombardeamentos, novas acusações mútuas, novas vagas de criminalização recíproca; a guerra indireta incluída na guerra da Ucrânia, pode a qualquer instante alargar-se por bombardeamentos acidentais ou não, em território russo ou europeu..A esse respeito, Putin retomou o seu anúncio de uma resposta "rápida e fulminante" se um certo patamar não especificado de hostilidade ou de ingerência ameaçasse a Rússia, apontando para uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, que só a Rússia possuiria..Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento aparentemente racional, bem conhecido desde a Guerra Fria. Se a Rússia nos quiser aniquilar, uma resposta rápida aniquilá-la-ia por sua vez. Este argumento não leva em conta um possível acidente ou uma possível irracionalidade. O possível acidente seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o qual desencadearia uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador enraivecido ou a roçar o delírio..De qualquer maneira, é provável atualmente (sabendo que o improvável pode acontecer) que, de derrapagem em derrapagem, a guerra se expanda para os territórios europeus, e se amplifique com mísseis intercontinentais sobre os territórios russo e americano sem no entanto poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, de um tipo novo, utilizando armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra de destruições dos sistemas de comunicação que sustentam a vida das sociedades, seria o fim lógico da amplificação da guerra internacionalizada atual..Juntemos uma constatação importante: a guerra introduz nos países em conflito os controlos, vigilâncias, a eliminação de qualquer opinião desviante da linha oficial e o desencadear de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin já era um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também aqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas levou a um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou alguns legionários são ocultados, e ao denunciar as barbaridades reais, a Propaganda ataca um inimigo totalmente criminalizado. Em França, se bem que não beligerantes e ainda nos confortos supremos da paz, apenas temos acesso às asserções mais mentirosas da Rússia de Putin e às imagens das destruições que ela causa. E proibimos artistas e desportistas russos numa histeria que confunde uma grande cultura, um grande povo e o seu dirigente atual..Estamos na escalada da desumanidade e no colapso da humanidade, na escalada do simplismo e no colapso da complexidade. Mas, sobretudo, na escalada em direção à guerra mundializada e no colapso da humanidade para o abismo..Conseguiremos escapar a esta lógica infernal?.A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instalaria e garantiria uma neutralidade da Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. O da Crimeia, região tártara e em parte russificada mereceria um estatuto especial..Em suma, as condições para um compromisso, por muito difícil que este seja de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a amplificação da guerra diminuem as possibilidades de uma forma brutal. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros fazem dela uma presa para os grandes predadores que são as duas superpotências..A inclinação da Ucrânia para o Ocidente depois de Maidan provocou a agressão russa e a agressão russa provocou não só o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no Ocidente, o que correspondia, de resto, à vontade de uma maioria de ucranianos..A Ucrânia é mártir não só da Rússia mas também do agravamento das relações conflituosas entre os Estados Unidos e a Rússia das quais fazem parte evidentemente o alargamento da NATO, ele próprio inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e a sua intervenção militar na Geórgia..A salvação da Ucrânia não está apenas na sua libertação da invasão russa, mas também em se libertar do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos..Esta dupla libertação permitiria aos países da União Europeia libertarem-se igualmente deste conflito e procurarem unir a segurança e a autonomia..As sanções contra a Rússia, ao atingirem duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não sabemos até que ponto, atingem também os sancionadores voltando-se parcialmente contra eles: não é só o seu aprovisionamento em energias e em alimentação que está ameaçado, é sem dúvida, com a inflação a crescer e as restrições que virão, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre, ela própria, geradora de regressões autoritárias e da instalação duradoura de sociedades de submissão..A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas ela não é comparável à Alemanha hitleriana; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar os povos racialmente inferiores. Qualquer hitlerização de Putin é excessiva..Nós estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas, racistas..Por muito repugnantes que sejam as superpotências a diversos títulos, o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar os desastres generalizados. Assim, devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não ficaria a salvo; ganharia uma prorrogação e, talvez, uma esperança..Filósofo e ensaísta francês