A "febre Ferrante" ataca outra vez: "A Amiga Genial" chega à televisão
A série começa tal como o livro com um telefone a tocar e a notícia de que Lila desapareceu. E não só desapareceu como fez questão de não deixar qualquer rasto. Nem roupas no armário nem fotografias nas estantes. É como se nunca tivesse existido. A sexagenária Elena não fica surpreendida. Parece-lhe um gesto típico da sua amiga de infância. E talvez numa tentativa de deixar um registo da presença daquela amiga na sua vida - a sua melhor amiga, a sua pior amiga - senta-se ao computador e inicia um exercício de retrospeção.
Como é que começou tudo mesmo? Foi com a boneca. Lenù e Lila a brincar juntas no pátio. E de repente estamos nos anos de 1950 num bairro de Nápoles, que poderia ser retirado de um qualquer filme neorrealista italiano. Há roupa estendida. Crianças a jogar à bola na rua. Mães que gritam pelos filhos à janela. Jovens que se metem em confusões. Vendedores ambulantes anunciando as melhores laranjas. Tudo numa tonalidade pastel e falado numa mistura de italiano e dialeto napolitano.
A minissérie A Amiga Genial, que adapta o livro da escritora italiana Elena Ferrante, estreia-se este domingo no canal americano HBO (e noutros países que transmitem a HBO, como o Reino Unido, através da Sky Atlantic). Coprodução com a televisão italiana RAI, onde a série se estreia só no próximo dia 27, A Amiga Genial ainda não tem data de estreia marcada para Portugal. Porém, os muitos fãs portugueses de Ferrante podem deliciar-se com as fotografias e o trailer disponibilizados pela HBO:
O projeto de adaptação da tetralogia de Nápoles - como são conhecidos os quatro livros que contam a história da amizade de Lila e Lenù - prevê que cada um dos livros dê origem a oito episódios. Estes primeiros oito referem-se apenas ao primeiro volume, A Amiga Genial. A personagem de Elena (Lenù), a narradora dos livros, é interpretada por Elisa Del Genio em criança e por Marguerita Mazzucco na juventude. Lila (que na verdade se chama Raffaella) é interpretada por Ludovica Nasti e, depois, por Gaia Girace. Uma é estudiosa e muito esforçada, mas não é brilhante. A outra é mais inteligente mas não prossegue os estudos. Uma é preocupada com a família, gosta de agradar os outros, é uma boa amiga. A outra é impulsiva, diz o que pensa e por vezes é até maldosa. Mas, apesar de todas as diferenças, a amizade resiste.
Desde que chegou às livrarias em 2011, A Amiga Genial já vendeu mais de dois milhões de cópias em todo o mundo. O anúncio da adaptação dos "romances napolitanos" para uma série de televisão deixou alguns dos fãs de Ferrante de pé atrás. Seria possível uma minissérie captar o essencial dos livros? "Miraculosamente, no entanto, a série consegue-o", escreve Sophie Gilbert, na The Atlantic ."Saverio Costanzo fabrica um bairro banal, nos arredores da Nápoles de 1950, que se distingue por ciclos de violência que se repetem perante uma comunidade decidida a não ver nada e a não dizer nada." E conclui: "Os atores falam numa mistura de dialeto italiano e napolitano, com legendas para os telespectadores em inglês, mas não há a exuberância de Fellini ou Bertolucci, ou as cores vibrantes e distintas de Paolo Sorrentino (O Jovem Papa), que foi o produtor executivo. As paredes do prédio são cinzas; a sujidade no chão é de um castanho lamacento. Todas as personagens usam tons sujos de azul e verde, o que significa que a única cor vivida nos primeiros episódios é o vermelho do sangue derramado."
Na New Yorker, Troy Patterson é um pouco mais crítico e diz que esta série é, visualmente, como "um anúncio da Prada para a tristeza da classe trabalhadora" mas, apesar disso, com "tons de uma humilde ternura". Na Time, Judy Berman diz que se trata de uma adaptação "deslumbrante". Na Rolling Stone, Alan Sepinwall dá-lhe 4,5 estrelas (num máximo de 5).
Todos estes textos só nos aguçam ainda mais a curiosidade. Qualquer leitor de Elena Ferrante dirá que os livros da tetralogia de Nápoles são viciantes. Daqueles que estamos a ler no metro e continuamos a ler enquanto caminhamos pela rua, sem ver os carros ou as pessoas à nossa volta. Daqueles que nos fazem ficar acordados até tarde para ler só mais uma página e mais outra e mais outra. Será que a série também vai ser assim?
"Sabe o que eu comecei a ler e é hipnótico? Os romances napolitanos de Elena Ferrante. Li o primeiro e não conseguia parar de ler ou de pensar naquilo." Hillary Clinton estava em plena campanha para as eleições presidenciais norte-americanas, em setembro de 2016, quando, no podcastWith Her, Max Linsky lhe perguntou o que andava a ler e ela falou entusiasticamente da sua mais recente descoberta: os livros desta escritora italiana. "É verdade, parece que as pessoas que leem esses livros começam a telefonar para o trabalho e dizem que estão doentes", responde, entre risos, o entrevistador.
Não era, já nessa altura, propriamente uma novidade. Elena Ferrante publicou o seu primeiro romance Um Estranho Amor, em 1992, e era já uma autora reconhecida em Itália quando em 2011 editou A Amiga Genial, o primeiro volume da "tetralogia de Nápoles" que, no ano seguinte, foi publicado em inglês. Porém, como qualquer autor de língua não-inglesa, demorou algum tempo até ter sucesso mundial. Foi preciso que, em setembro de 2013, James Wood (o Papa da crítica literária americana) publicasse um artigo na New Yorker elogiando a escrita de Elena Ferrante para que os seus livros começassem a ser procurados nas livrarias de Nova Iorque.
Em Portugal, as primeiras traduções só chegaram em 2014. História da Menina Perdida, o último volume da tetralogia, apareceu no top 10 dos livros de 2015 no The New York Times e esteve nomeado para o Man Booker International Prize. E em abril 2016, a revista Time colocou Ferrante na sua lista de 100 pessoas mais influentes do mundo. Nesta altura não só está toda a gente a ler os livros de Elena Ferrante como toda a gente se pergunta quem é, afinal, esta autora italiana que nunca deu a cara - não aparece nos lançamentos dos livros nem faz sessões de autógrafos, não dá entrevistas (só responde por escrito e nunca conta muito sobre a sua vida de pessoal), não aparece em debates, em programas de televisão ou em cerimónias de prémios. A autora acredita que a obra fala por si e que não precisa do seu rosto para ter mais valor. As especulações sucedem-se, até que em outubro de 2016 um artigo de investigação publicado na The New York Review of Books anuncia que Elena Ferrante é na verdade Anita Raja, mulher, de 63 anos, a viver em Roma, trabalhando sobretudo como tradutora de alemão. Nem Ferrante nem a sua editora italiana confirmam a veracidade da notícia.
Quando isto aconteceu, o realizador Giacomo Durzi já estava a fazer o documentário A Febre Ferrante no qual tenta perceber qual é o segredo do sucesso destes livros. O filme, que estreia esta quinta-feira em Portugal, conta com declarações de críticos e de fãs como os escritores Jonathan Franzen, Elizabeth Strout e Robert Saviano, a sua tradutora para inglês Ann Goldstein ou os realizadores Mario Martone (que adaptou Um Estranho Amor para cinema em 1995) e Roberto Faenza (que fez Os Dias do Abandono em 2005).
O segredo do sucesso de Ferrante? São muitos segredos. Contar a experiência feminina como poucas vezes acontece. Mostrar as entranhas da amizade entre duas mulheres. Ou as complexas relações entre mães e filhas. O modo como nos faz mergulhar num espaço e num tempo, envolvendo-nos com descrições precisas e entrelaçando a história social e política de Itália (a tetralogia desenrola-se ao longo de mais de 40 anos) com as histórias daquele grupo de pessoas. A escrita aparentemente simples mas onde cada frase é essencial. Os muitos mistérios que nos fazem ler compulsivamente para saber o que vem a seguir.
Com tudo isto, o anonimato da autora é apenas mais um ingrediente que desperta o interesse dos leitores. "Não é a minha ausência que causa interesse pelos meus livros. É o sucesso dos meus livros que causa o interesse dos media pela minha ausência", escreve Elena Ferrante em Escombros (2016), volume que reúne cartas e entrevistas da autora. Talvez tenha razão. Afinal, depois daquelas investigações que podem ou não ter revelado o verdadeiro nome da escritora, nunca mais ninguém quis saber quem ela era. Deixou de ser um assunto.
Muito se especula se haverá mais um "romance napolitano" a caminho. O que sabemos é que desde que terminou a tetralogia de Nápoles Elena Ferrante não publica nenhum novo romance. E que desde janeiro deste ano escreve regularmente no The Guardian crónicas curtas e pessoais onde, sem nunca revelar a sua identidade, nos vai revelando bocados do seu universo mais íntimo.
Numa das últimas crónicas, falava sobre as adaptações dos seus livros: "Na versão cinematográfica ou televisiva, tudo, absolutamente tudo, terá que ter um aspeto preciso: as ruas, a igreja, o túnel, as casas, os quartos, a sala de aula, as carteiras. E todos, absolutamente todos, terão que ter um corpo específico. Essa definição inevitável de cada detalhe acontece fora do próprio argumento." E por isso deixa o lembrete a quem for ver a série A Amiga Genial: "Quanto ao livro, ele ficará para trás, imperturbável, enquanto o filme se aproxima cada vez mais de uma de suas possíveis encarnações." Uma entre muitas.