Elena Ferrante pela sua tradutora: "Não me interessa nada saber quem é"

Sem metafísica mas uma grande escritora. Margarida Periquito fala da autora italiana que não revela a sua identidade
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"Sintetizando isso numa frase, até Tolstoi é uma sombra insignificante se for passear com Anna Karénina." A frase é de Elena Ferrante, podia talvez defini-la como autora, e surge em Escombros, livro que é uma espécie de viagem pelo gabinete de escrita daquela que fecha ao mundo a porta da sua identidade. A porta em que o recebe é aquela que abriu em 1992 com Um Estranho Amor: a dos livros. Aquele que a Relógio d'Água agora publica reúne maioritariamente correspondência de Ferrante com os seus editores, Sandra e Sandro Ferri, e entrevistas que deu a jornalistas de todo o mundo, sempre escritas e mediadas pelos seus editores.

A conversa com Margarida Periquito, que traduz a autora italiana desde A Filha Obscura (que surge em Crónicas do Mal de Amor, 2014), assinando a tradução de todo o - habitualmente chamado - quarteto de Nápoles, que começa com A Amiga Genial e termina com História da Menina Perdida, inicia-se com a tradutora a dizer: "Referimo-nos a ela, não importa quem seja, porque têm vindo tantas coisas a lume..." Margarida fazia alusão à novela extrínseca às de Ferrante: a da sua identidade.

O jornalista Claudio Gatti publicou em outubro um artigo na New York Review of Books onde alega ter descoberto que Ferrante será Anita Raja, tradutora de alemão casada com Domenico Starnone, também já apontado como a mão por detrás de Ferrante.

"A mim não me acrescentou nada, nem me interessa absolutamente nada saber quem é. Já tinha lido sugestões que fosse o Domenico Starnone, a própria Anita Raja, ou os dois em conjunto. Ele é napolitano e tem aquelas características que ela criou - na minha opinião -, para ela, aquele perfil que nós vemos delineado no Escombros, e que eu acho que se adapta a ele, à vivência dele."

Margarida Periquito. A solidão do ofício de tradutora pauta as horas dos seus dias. Discreta (embora não secreta, como Ferrante), trouxe para português obras de Ludovico Ariosto, Joseph Conrad, James Joyce ou Dino Buzatti. Diz ter traduzido autores onde encontra "uma profundidade literária, uma metafísica que em Ferrante não existe". Há cerca de vinte anos começou a dedicar-se inteiramente à tradução de obras literárias. Antes, licenciada em Estudos Portugueses e Italianos, e natural de Santiago do Cacém, trabalhou como correspondente de língua estrangeira para varias firmas, passando por Angola, onde chegou antes do 25 de Abril, ou pela Namíbia (para onde fugiu depois).

Quando traduz, o autor prende-se à sua mão durante aquele tempo. E dorme com "um papelinho e um lápis à cabeceira", para apanhar as palavras que não vieram durante o dia e por vezes chegam de noite. Ao contrário de outros tradutores, como Ann Goldstein (para inglês), diz que nunca sentiu necessidade de se corresponder com a autora.

Se a chocava que Ferrante fosse um homem? "Não, chocar não", responde. "Embora eu ache que se acaso é um homem tem um conhecimento profundo da psicologia feminina, e não só: os sentimentos, o relacionamento com o sexo oposto e com os filhos, com a fisiologia feminina, com a gravidez. Há ali coisas que custa a crer que um homem fosse capaz de expressar da mesma maneira, mas pode haver duas mãos, duas cabeças."

A tradutora afirma que Elena Ferrante, de quem apenas sabemos que terá crescido em Nápoles - cidade que é cenário, quase personagem viva, da sua obra -, é formada em Estudos Clássicos, e mãe de filhas, "escreve como um rio que corre, tem uma bagagem enorme para escrever". O que é que ela tem para ter chegado a tantos e provocar um efeito que, como a certa altura escreve um jornalista numa pergunta que lhe dirige, faz com que as pessoas ponham baixa para ficar em casa a lê-la? "A leitura é compulsiva. Acho que é sobretudo o enredo. Às vezes eu estava a traduzir e pensava: isto parece uma telenovela." A própria Ferrante admite em Escombros (La Frantumaglia) que "com o passar dos anos" foi sentindo "cada vez menos vergonha" da sua paixão "pelas histórias das revistas femininas".

Por vezes, há certos aspetos de Ferrante que parecem excessivos à sua tradutora portuguesa. Entre eles, uma certa descrição ostensiva e gráfica do sexo. "Mas acho que ela quer tirar partido disso porque escreve muito bem cenas de sexo e sentimentos relacionados com ele. Aí às vezes penso se não estará ali um homem. Não é costume ver uma mulher - e mesmo homens não há muitos - que entre tão bem numa cena de sexo como ela, e com uma vivência tão clara." Por outro lado, Periquito reconhece no texto alguém com um conhecimento profundo da literatura clássica - personagens como Medeia, Leda ou Dido são constantes - e lembra que Anita Raja traduziu Christa Wolf, alemã que muito escreveu sobre a mitologia grega.

Mas cumpramos o que Ferrante pede incessantemente ao longo de Escombros: atentemos à sua escrita e nada mais (porque "as nossas caras não nos prestam um bom serviço, e as nossas vidas nada acrescentam às obras"). Margarida conta que um dos aspetos mais difíceis de transpor para o português veio do facto de ela - que "detesta a escrita bonita, a escrita elegante", lembra - "escrever por vezes de uma maneira feia." "Os italianos têm muitas palavras ordinárias e usam-nas com uma grande displicência que nós não usamos. Eu tento acompanhar, mas às vezes não há um léxico tão rico que permita aquela variedade."

A Filha Obscura permanece a obra favorita de Periquito no universo Ferrante. "Acho que resume muito aquilo a que se reduz a literatura dela: ao problema entre filhas e mães. Depois vem aparecer também no quarteto de Nápoles de uma forma mais diluída, e ali está com toda a intensidade. É uma maternidade que nunca é aceite. Acho que isso é transmitido naquele episódio em que ela [Leda] rouba a boneca à criança na praia." Episódio retomado no "assustador" A Praia de Noite, que Ferrante classifica como infantil e Periquito diz ser "totalmente desaconselhado às crianças". "A história é vista da perspetiva da boneca, que no romance era uma coisa inerte, e aqui tem vida porque dentro dela há palavras, que constituem um tesouro. Quem não tem palavras não tem préstimo nem valor."

Quem é a Amiga Genial?

Em Escombros assiste-se à musculatura de que é feita a obra de Ferrante e ali se mostra a sua visão da literatura (que deve ser sempre "urgente" e mostrar não a verosimilhança mas a verdade). Aquela que assim traduziu a palavra do título, frantumaglia, tão cara a Ferrante, explica-a: "Tem a ver com estilhaços, cacos. Ela diz que é o que a mãe sentia - em cacos por dentro - quando havia coisas que a puxavam de um lado para o outro, coisas que ela não conseguia resolver dentro dela, vivências desagradáveis que lhe vinham à cabeça. Ela diz que a partir dessa palavra cria toda a literatura dela."

Por fim, falamos do quarteto napolitano, de Lila e Lena, as duas amigas cuja história, da infância à velhice, é narrada pela segunda ao longo de quatro volumes. Perguntamos a Periquito se Ferrante acaba por ser uma grande escritora: "Sim, acaba. No conteúdo e na criação."

Perguntamos ainda porque terá Ferrante tomado a opção de dar voz àquela que é porventura a menos genial das duas amigas, aquela que terá talvez menos força, e que escreve sempre à imagem dos escritos de Lila que leu à revelia dela e destruiu - e aos quais nós nunca temos acesso -, mas que aparecem sempre como a escrita ideal, que Lena nunca atinge. "A Lila ao fim e ao cabo era uma personagem mais completa e mais intelectual do que a amiga, mas não teve os meios [para prosseguir os estudos]. E venceu muitas coisas que não sei se a Lena seria capaz de vencer. Acho que aquela que escreveu não era de facto a que estava mais habilitada para o fazer."

Então por que razão não é Lila quem conta a história? "Se calhar era mais comum. É mais natural querer dar mais relevo a quem tem mais faculdades intelectuais, e ela não fez isso." E se a riqueza literária ou narrativa decrescesse por isso mesmo, aí se mostraria a coerência de Ferrante. E o seu desprendimento "total", diz Periquito. "Muitos escritores não se permitiriam desnudar-se tanto, porque estão preocupados com a imagem, ela está-se marimbando para a imagem. E atingiu um ponto em que o mundo provou-lhe que ela pode realmente agir assim."

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