A caricatura de um político megalómano

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O meu texto da semana passada, sobre o radicalismo islamita, provocou várias reações. Os amigos portugueses, que sempre viveram em Portugal, embora com muitas viagens turísticas no currículo, ficaram surpreendidos com a minha descrição da intolerância que se vive em certas escolas e nalguns segmentos da sociedade francesa.

Essa é uma situação que não ocorre em Portugal. Aqui ninguém intimida ninguém por mencionar o infante D. Henrique, Mouzinho de Albuquerque ou o ateu José Saramago. Amigos residentes na Europa da imigração - na Bélgica, por exemplo - reconheceram na minha crónica situações que lhes são familiares. A rejeição de valores que consideramos fundamentais e a vida em silos sociais são factos correntes. Acrescentaram que é preciso coragem para falar dessas coisas, de modo equilibrado e sem cair na recriminação primária e racista. Também recebi mensagens de antigos colegas de trabalho, que por esse mundo vivem a sua fé muçulmana. Para eles, o problema reside na troça, nas caricaturas, na interpretação que delas fazem como um instrumento de investida dos europeus contra o islão.

Lembrei-me, então, que na cerimónia de homenagem ao professor Samuel Paty, o presidente Emmanuel Macron afirmou que a França não iria abdicar das caricaturas. Compreendo essa posição. O que outros veem como uma ofensa imperdoável, é para nós uma simples expressão da liberdade. A religião é um tema como qualquer outro. Na Europa, o desmoronamento da ideia de blasfémia começou em 1789, com a Revolução Francesa.

Recep Tayyip Erdogan agarrou-se a essa declaração de Macron sobre os desenhos para tratar o seu homólogo francês de doente mental. Disse-o repetidamente, para que não houvesse dúvidas sobre o insulto. Para Erdogan, o desenho de um boneco de rabo no ar é mais chocante do que a perseguição inumana de milhões de muçulmanos pelo regime de Xi Jinping. Em relação a isso, não se exalta, nada diz.

Vivemos tempos únicos, com um chefe de Estado a abocanhar um outro, de um país aliado. A hostilidade de Erdogan em relação a Macron não é novidade. Começou logo após o início do mandato do presidente francês, em 2017. Existem vários pontos de fricção entre ambos, a começar pela oposição francesa à adesão da Turquia à União Europeia e a continuar na Líbia, na Síria, no apoio à soberania da Grécia no Mediterrâneo e mais e mais. Perdura, além disso, uma enorme tensão no seio da NATO, onde a França acusa a Turquia de travar a estratégia da organização, quando se trata de regiões em que Ancara está diretamente implicada.

Para além de tudo isso, adivinho que Erdogan quer quebrar a aliança que existe entre Paris e Berlim; investe contra a França sabendo que a Alemanha, onde vivem mais de quatro milhões de pessoas com raízes turcas, não tem muita margem de manobra para tomar uma posição solidária com a França. Ao atacar este pilar da UE e ao manter a ameaça recorrente de abrir os portões a uma nova onda de migrações para a Europa, semelhante à que ocorreu em 2015, a Turquia constitui o risco mais importante para a sobrevivência do projeto europeu.

No Conselho Europeu de dezembro é absolutamente necessário que os dirigentes dos Estados membros tomem uma posição dura contra o presidente turco. Em política internacional, só há duas posições possíveis perante um brigão: ceder e acabar por pagar um preço elevado, ou então fazer-lhe frente com todo o arsenal diplomático necessário.

Salman Rushdie adverte-nos de que "o fundamentalismo não diz respeito à religião, mas sim ao poder". Erdogan vê-se como o líder dos muçulmanos sunitas e o guardião dos fiéis perante os pretensos ataques europeus. Combina megalomania com fanatismo. Em conluio com os radicais da Irmandade Muçulmana e com o apoio financeiro de Qatar, Erdogan estabeleceu em vários países europeus uma série de associações que, sob a capa da religião, da cultura e da ação humanitária, promovem interpretações totalitárias do Corão e a sua imagem de defensor da fé.

Uma das tarefas dos serviços de segurança europeus é a de monitorizar essas associações e os seus membros mais influentes. É, todavia, uma missão quase impossível. A vigilância de cada extremista potencialmente violento, para ser feita como deve ser, requer cerca de duas dezenas de agentes, vinte e quatro horas por dia. A verdadeira resposta tem por isso de ser política e partilhada por todos os países europeus.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-representante especial da ONU

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