Samuel Paty

Adriano Moreira

A grave crise americana

Independentemente do valor da soberania e da independência dos Estados, que se alargou com a intervenção do princípio do fim do colonialismo sobretudo ocidental, a regra da cooperação global orientou o encontro de todas as diferenças culturais, éticas, étnicas e religiosas, na ONU. Tratando-se de ter a paz como um valor assim reforçado, não seria realista deixar de prever, e antecipar, regras e condutas que viessem a repetir violações do direito internacional, que teriam como primeira resposta, impedindo o agravamento do contencioso, a criação de tribunais internacionais, com reconhecida autoridade judicial. Seria menos raro, na lógica dos apelos mais documentados pelas exigências, em que se destacam as duas Guerras Mundiais do século passado. Infelizmente não foi possível evitar guerras que exigiram lideranças personalizadas, para intervirem a favor ou contra as perceções políticas em confronto, sendo talvez Churchill o mais saliente estadista dos que ficaram na história (1939-1945), quando, enfrentando o nazismo alemão, gritou: "We shall fight on the beaches, we shall fight on the landing grounds, we shall fight in the fields and in the streets, we shall fight in the hill: we will never surrender." Lembrado nesta data inquietante em que a gravidade da pandemia parece cobrir de um nevoeiro espesso a desregulação da ordem internacional, e que vai como que sendo silenciada a integridade imaginada pelos fundadores da ONU.

Adriano Moreira

Fundamentalismo terrorista

Quando o presidente da França foi surpreendido pelo cruel assassinato de Samuel Paty, professor de História e Geografia, em Conflans-Sainte-Honorine (Yvelines), por um jovem muçulmano, que o decapitou por ter utilizado caricaturas de Maomé numa das suas aulas, assumiu a indignação da França, afirmando que esta manteria a liberdade de ensinar, e a prática da vítima seria mantida: infelizmente, uma série de assassinatos cresceu em diferentes lugares da França, e depois fora, obrigando, para além das medidas de segurança e justiça, a recordar o famoso estudo de Nicolas Sarkozy, sobre O Estado, as Religiões e a Esperança, concluindo que "os muçulmanos já são a segunda religião da França", e advertindo "contra o fundamentalismo laico e contra o fundamentalismo religioso", acrescentando que "a República é uma maneira de organizar o universo temporal. É a melhor maneira de viver em comum. Mas ela não é a finalidade do homem: há ao mesmo tempo uma afirmação espiritual que a República não deve negar, mas que não é também de sua competência".

Margarita Correia

Do medo e do terror

Medo "provém do latim "metus" e é, em português, o nome genérico da emoção que acompanha a tomada de consciência de um perigo. Os vários nomes de significado relacionado (e.g. "receio", "pavor", "temor", "terror") denotam diferentes nuances ou intensidades de medo. Todos eles podem denotar também, por metonímia, o objeto que provoca a emoção. "Terror" constitui o nome do medo mais intenso ou avassalador e provém do nome latino "terror, terroris", com idêntico significado. O nome "terreur" em francês designa, desde 1789, o conjunto de meios de coerção política que permitia manter os opositores em estado de terror, e o Terror ("La Terreur"), com maiúscula, designa o regime instaurado em França entre setembro de 1793 e julho de 1794, encabeçado por Robespierre, que se caracterizou pela execução daqueles que se consideravam inimigos da Revolução. São da mesma época as primeiras atestações em francês das palavras "térrorisme", denotando um regime de terror político e "térroriste", denotando o partidário ou o agente de tal regime. O dicionário Houaiss propõe o ano de 1836 (no dicionário de Francisco Solano Constâncio, editado em Paris) como o da primeira atestação das palavras portuguesas "terrorismo" e "terrorista", não indicando étimos, mas apenas a sua estrutura morfológica ("terror" + -"ismo" / -"ista"). Em inglês, segundo o Merriam-Webster online, o par "terrorism"/"terrorist" surge logo em 1795 para se referir ao Terror francês. Até ao século XX, ambos os termos são marcadamente políticos e referem-se ao terror do Estado para com o povo. No mesmo sítio é-nos dito que, em 1920, em jornais como o Chicago Tribune, "terrorism" adquire aceção politicamente neutra, para referir o terror instalado pelos "gangsters", e que é em 1934 que o termo passa a ser usado para designar já não apenas o terror imposto pelo governo, mas também aquele que é imposto contra o governo. Atualmente, "terrorismo" designa o emprego sistemático de medidas violentas com objetivo político e dizem-se "terroristas" os atos arbitrários de violência extrema, executados para criar um clima de terror e desestabilizar o sistema social e político vigente. Ao escrever sobre a decapitação de Samuel Paty pela primeira vez, centrei-me na motivação do ato, identificando-a como sendo o fundamentalismo religioso, e o seu alvo a laicidade da escola. Para reforçar o meu ponto de vista dei o exemplo do movimento Escola sem Partido, no Brasil. Ao fazê-lo, alerta-me uma leitora, coloquei a execução de Samuel Paty no mesmo plano, desvalorizando-a. Entre o que se pretende veicular e o que se consegue efetivamente veicular vai frequentemente alguma distância; eu tinha obrigação de o ter tido em conta. O ato de pura barbárie cometido contra Samuel Paty a 16 de outubro foi um ato de terrorismo, tal como o ataque na basílica de Notre-Dame em Nice, a 29. O móbil destes atos é o fundamentalismo islâmico. A sua natureza é terrorista. O seu alvo é a sociedade francesa e também os valores da Europa. Ambos são atos chocantes, horrendos, inaceitáveis. Ambos podem apenas merecer repulsa e rejeição. Perante ambos, resta fortalecer a luta contra o terror e a favor da liberdade. Nenhum ato terrorista pode ser desvalorizado. Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

Margarita Correia

Graças a Deus. Ou graças a nós.

Fomos abalados pela execução de Samuel Paty, professor de História e Geografia, a 16 de outubro, frente à escola onde trabalhava, nos arredores de Paris. A causa próxima do crime foi a exibição, numa aula de Ensino Moral e Cívico, de duas das caricaturas de Maomé publicadas pelo Charlie Hebdo. A disciplina de Ensino Moral e Cívico é obrigatória ao longo de todo o currículo do ensino não superior, desde o ataque ao Charlie Hebdo em 2015, que é um dos temas do programa. Os seus objetivos são: respeitar os outros, adquirir e partilhar os valores da República (liberdade, igualdade, fraternidade, democracia, cidadania, laicidade, liberdade de expressão) e construir para si mesmo uma cultura cívica.