Uma trajectória na esfera penal

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Os 50 anos do 25 de Abril proporcionaram muitos confrontos entre projetos e realizações, expectativas e resultados, objetivos e rumos tomados - e isso, também, área por área. Nem sempre se explicita, porém, o que concretas pessoas quiseram para o Estado democrático e como se atingiram contornos que, no longo prazo, a realidade viria a assumir. Assim também, claro, no campo da Justiça. Darei aqui apenas um contributo.

Um ano antes do 25 de Abril, foram aprovadas no III Congresso da Oposição Democrática (1973) conclusões e “objetivos para a luta democrática” onde a Justiça esteve longe de ser descurada. Nada que se fique pela abolição dos tribunais plenários, o fim da polícia política e dos seus múltiplos poderes e outros pontos, como esses, obviamente esperados - bem mais do que isso. Não há que estranhar por que da comissão nacional do Congresso, com representantes de todo os distritos, faziam parte 98 juristas, na sua quase totalidade, pelas razões que se calcula, advogados. Declaração de interesses: fiz parte dela.

Para introduzir o ponto de hoje, cito do “4.3. Objetivos da luta democrática”: “Cumpre basear a democracia portuguesa no respeito da legalidade democrática e garantir a neutralidade doutrinária do Estado, um regime ilimitadamente pluralista e pluripartidário, a vigência das liberdades públicas, a formação do poder por delegação representativa do sufrágio universal, a separação dos poderes, o controlo do executivo pelo legislativo, a democratização da Administração Local, a eficiência e racionalidade da administração, a legalidade dos atos administrativos e seu controlo judicial, a plena judicialidade do processo penal em todas as fases.”

É uma formulação que ainda hoje impressiona, sobretudo se repararmos que é pensada, escrita e aprovada mais de 3 anos antes da votação da Constituição de 1976. Mas o que conta para este exercício é mesmo o último ponto: “A plena judicialidade do processo penal em todas as fases.”

Não era ali um detalhe acidental . Havia um vasto trabalho de sustentação e divulgação desse objetivo no campo da Oposição Democrática, onde Salgado Zenha tinha assumido o maior destaque. Ainda no ano anterior Zenha escrevera sobre o tema na Seara Nova (até eu, recém-licenciado, publicara no República, em 72, sobre matéria conexa). Mas deve registar-se, sobretudo, que da comissão nacional do Congresso faziam parte figuras como José Magalhães Coutinho , Abranches Ferrão, Duarte Vidal, Adão e Silva, além de muitos nomes que viriam a estar na Constituinte, de que menciono Vital Moreira e José Luís Nunes.

A “plena judicialidade do processo penal em todas fases” teve, obviamente, ganho de causa na Assembleia Constituinte e foi vertida no texto de 1976. Mas logo na década seguinte o abandono dessa visão obteria consagração no Código de Processo Penal, aprovado no primeiro Governo de Cavaco Silva, numa verdadeira “revisão constitucional antecipada”, bem evidenciada em declarações de voto dos juízes vencidos no Tribunal Constitucional.

Mário Soares cumpriu o seu dever ao pedir a fiscalização preventiva do Código. O acórdão do tribunal teria seis declarações de voto de vencido, das quais duas, a meu ver, memoráveis (Monteiro Dinis e Vital Moreira).

O inquérito tinha agora, sem ambiguidades, um novo dominus: o Ministério Público. Em conforto dessa viragem ocorreria depois, na revisão de 1989 (acordo Cavaco-Constâncio), a introdução no discurso constitucional da “autonomia” do Ministério Público . Na verdade, ao contrário do que muitas vezes se faz crer, em 1976 os founding  fathers da Constituição tinham deixado essa ideia de fora do discurso constitucional, onde apenas acolheram “hierarquia” e “responsabilidade”: essa foi a mensagem da Constituinte quanto ao Ministério Público.

Nos anos seguintes , e durante toda a segunda metade do seu longo período governativo (1990-95), Cavaco Silva teria à frente do Ministério da Justiça um procurador-geral-adjunto - e isso significou uma espécie de corolário ideal para a legitimação da nova arquitetura.

A revisão constitucional de 1997 (acordo Guterres-Marcelo) ficaria na margem do problema (isto, não obstante a introdução de novos dados, com destaque para a expressa vinculação do Ministério Público à “participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania” - inovação por largos anos desvalorizada, e por todos os destinatários).

Desaproveitada essa oportunidade, com a passagem do tempo estaria a questão de todo encerrada? Por surpreendente que pareça, não era isso que pensava Pedro Passos Coelho. Num livro publicado em 2010, a um ano de assumir a chefia do Governo, no capítulo dedicado às suas “escolhas políticas” na Justiça, escrevia o futuro primeiro-ministro: “Essa opção (a de cometer a direção da investigação a um juiz), tornaria a investigação menos dependente do poder político, na medida em que o procurador-geral é nomeado e demitido por órgãos políticos.” E depois de argumentar que “este último viu reforçados os seus poderes hierárquicos sobre os magistrados do MP, a quem pertence a condução da investigação”, concluía a abordagem do ponto do modo seguinte: “A jurisdicionalização da investigação criminal, no todo ou em parte, poderia garantir uma maior independência da mesma e uma menor propensão à sua manipulação.”

Não se diga que Passos Coelho estava “fora do contexto”: pouco antes da saída desse livro, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça dava uma entrevista a um jornal diário e o grande título era Investigação devia caber aos juízes de instrução. Mas a “ideia no livro” não teria expressão na “ação do Governo”.

Nos seus oito anos de primeiro-ministro, António Costa superaria Cavaco Silva num ponto que é, neste contexto, expressivo: durante seis anos teria uma procuradora-geral-adjunta à frente do Ministério da Justiça. Sem entrar agora noutras consequências, que requerem mais extensa análise, a proposta do seu Governo - que daria lugar à última revisão do Estatuto do Ministério Público - levaria as coisas para mais longe ainda da visão da Constituinte.

Voltarei à avaliação desta divergência que foi crescendo entre os objetivos e perspetivas existentes no campo democrático nas vésperas do 25 de Abril ( e depois na Constituinte) e o que foi a evolução dalgumas componentes duras da realidade institucional no mundo da Justiça - e que está longe de ficar por aqui.

Revisitar pontos dum passado, por vezes esquecido, pode ajudar a levar mais luz ao terreno das opções, no presente e no futuro. Obviamente nenhuma delas poderá ser um caminho de regresso ao que, no tempo próprio, não chegou a existir.

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