Para fazer El Mal Querer, o seu segundo disco de originais, Rosalía inspirou-se num livro do século XIII, de um autor anónimo, intitulado Flamenca. "Apesar do título, não tem nada que ver com a música", explicou a cantora espanhola. "É a história de uma mulher que se casa com um homem muito ciumento, ele enlouquece e prende-a. E isso pôs-me a pensar quase antropologicamente: tantos séculos depois, mudámos o modo como amamos e nos relacionamos com os outros?".O disco foi construído, então, como um romance - cada canção é um capítulo nesta história de amor, um amor tóxico que começa com um augúrio, passa por um casamento, crises de ciúmes, filhos, violência (na canção De aqui no Sales ela fala explicitamente sobre violência doméstica e diz aquela frase que os abusadores costumam usar: "dói-me mais a mim do que a ti"). Uma relação que é uma prisão até que a mulher consegue finalmente terminar tudo. A última canção, então, é um grito de liberdade: "A nenhum homem consinto/ Que dite a minha sentença." A mensagem é clara. E vem de uma rapariga de apenas 25 anos..Editado em outubro do ano passado, El Mal Querer foi o álbum de consagração de Rosalía. Para o seu lançamento deu um concerto na Plaza del Cólon, em Madrid, para 11 mil pessoas. Depois, viu o seu rosto ocupar os ecrãs gigantes de Times Square, em Nova Iorque. Ganhou dois Grammys Latinos com a canção Malamente. Dominou a cerimónia dos prémios europeus da MTV. Esteve nas listas dos melhores do ano de publicações da especialidade como a Pitchfork, a Billboard ou a NME..E não para. Em janeiro ouvimo-la a cantar Barefoot in the Park com James Blake. Em breve iremos ouvir as canções que gravou com Dua Lipa e com Pharrell Williams, nomes maiores da música da atualidade. Antes de, em junho, a vermos no palco do festival Primavera Sound, no Porto, ainda a veremos no grande ecrã, num pequeno papel em Dolor y Gloria, o novo filme de Pedro Almodóvar, com Penélope Cruz e Antonio Banderas, que se estreia em Espanha a 22 de março.."Quando eu era pequena ia ver os filmes de Pedro com a minha mãe e a minha irmã e aquelas mulheres pareciam de outro mundo e ao mesmo tempo eram muito familiares", escreveu Rosalía na legenda de uma foto publicada no Instagram em que aparecia ao lado do realizador no seu primeiro dia de rodagem. "Passei a vida a cantar, tocar, dançar, representar. E posso dizer sinceramente que desde pequena que sonho com este momento.".Desde pequena. Na sua família não havia ninguém ligado à música, mas parece que Rosalía Villa Tobella andava pela casa, em Sant Esteve Sesrovires, a cantar e a dançar. Aos 8 anos o pai pediu-lhe que atuasse num jantar de família. Rosalía fechou os olhos e cantou. Quando os abriu estavam todos a chorar. Foi a primeira vez que percebeu que tinha um superpoder. Pensou: "Eu tenho o poder de comunicar alguma coisa, e quero desenvolver isto. É isto que quero fazer na minha vida.".Começou a aprender música aos 13 anos. Conta que a primeira vez que ouviu flamenco, "aquele lamento antigo, em espanhol", "foi como ser atingida por uma seta - foi a coisa mais pura que alguma vez tinha ouvido". Estudou durante oito anos com um professor de flamenco, El Chiqui, que lhe disse "tens tudo dentro de ti, só tens de saber tirá-lo cá para fora". "Isso deu-me muita confiança", admitiu mais tarde. O flamenco é um género fortemente codificado, em que a tradição é sagrada, o domínio da técnica é imprescindível e a contribuição das mulheres nem sempre é valorizada. "Aprender flamenco é engolir o nosso orgulho", explica..Tornou-se conhecida nos tablaos catalães (locais onde se realizam espetáculos de flamenco), saltou para as pistas das discotecas pela mão do rapper C. Tangana, namorado na altura, com quem gravou Antes de Morirme e Llámame más Tarde. E foi além-fronteiras com o tema Brillo com o rei do reggaeton, J. Balvin..Do encontro com Raül Fernandez Miró, músico e produtor, conhecido como Refree, saiu Los Ángeles, o álbum de estreia, lançado em 2017, em que ela pega num conjunto de canções tradicionais de flamenco e as transforma, distorce, recria. Mostrou-se ao mundo com um disco comovente e melancólico, atravessado pela ideia da morte e que inclui uma versão de I See Darkness, de Bonnie "Prince" Billy. "Muita gente disse que não era flamenco, algumas pessoas até ficaram zangadas, porque estava a desvirtuar o flamenco. Mas eu acho que não há nada intocável, só devemos fazer as coisas com respeito e com amor", defendeu-se..Se há coisa de que não a podem atacar é de não saber o que quer. "Eu componho, toco, produzo, faço os arranjos - não me limito a cantar", sublinha Rosalía. "Faço tudo." É também ela que, com a ajuda da irmã, cria o visual com que sobe ao palco, que imagina os videoclips, que escolhe a equipa com quem quer trabalhar. Inspira-se na verdade da cantora flamenca Juana La del Pipa, na independência da islandesa Björk, no poder da megaestrela Beyoncé..De certa forma, El Mal Querer representa uma viragem de 180 graus. Coproduzido pelo músico espanhol El Guincho (que vem da eletrónica), o disco junta o ritmo do flamenco clássico com elementos de R&B e do hip hop. Numa música ouvimos um riff de Justin Timberlake, noutra a voz de Rossy de Palma. Chamam-lhe "flamenco millennial" ou "trap flamenco" e é claro que os puristas já vieram dizer que se trata de apropriação cultural e que Rosalía, que não é da Andaluzia nem tem sangue cigano, é apenas uma paya que produz flamenco de contrafação..Rosalía faz uma pose de rapper mas bate palmas como se dançasse flamenco. E responde: "Gosto de fazer as coisas à minha maneira e tenho a minha linguagem própria, mas não posso controlar o modo como ela é recebida. Sei que corro riscos mas não tenho outra opção. Esta é a minha maneira de fazer música."