A agressão violenta a um aluno de 14 anos com espetro do autismo, numa escola da Moita, há cerca de três semanas, reacendeu o debate em torno da violência em ambiente escolar. O caso ganhou contornos ainda mais chocantes por ter sido filmado por outros menores. A este incidente têm-se somado vários outros entre alunos ou envolvendo agressões a professores. O diploma (Estatuto do Aluno e Ética Escolar), que estipula as medidas corretivas a aplicar nesses casos, bem como os direitos e os deveres do aluno, data de 2012 e mantém-se inalterado desde a sua publicação. Uma situação que, segundo Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), deve ser revista. “O diploma legal está ultrapassadíssimo. Já tem 12 anos. É preciso rever com urgência a regulamentação dos processos disciplinares, pois é um procedimento muito moroso e burocrático, que exige pessoas especializadas, como advogados, que não temos as escolas”, explica ao DN. Segundo o responsável, “em 12 anos na educação muitas coisas aconteceram e a escola já não é a mesma”. “O que pedimos é a revisão urgente desse diploma. É isso que nós precisamos. Não vai resolver o problema da indisciplina, mas vai facultar às escolas um instrumento de maior celeridade da aplicação de medidas disciplinares”, sublinha. Questionado pelo DN sobre a eventual necessidade de responsabilizar os Encarregados de Educação (EE), o presidente da ANDAEP diz ser um tema “muito pertinente”, mas que carece de “um amplo debate entre os atores educativos”. “Há pais responsáveis com filhos complicados e outros que falham. Custa-me ver casos de bons pais em situações que não podem controlar. Por isso, essa particularidade do estatuto deve ser debatida e deve chegar-se a um amplo consenso”, acrescenta. Já Cristina Mota, porta-voz da Missão Escola Pública (MEP), não tem dúvidas. “As famílias têm um papel crucial na formação dos valores e na disciplina dos seus filhos e, por isso, devem ser responsabilizadas quando não assumem essa responsabilidade”, afirma. E exemplifica: “o inquérito sobre bullying a professores, divulgado pela MEP, revela que, em várias situações, são os próprios pais e encarregados de educação que, através de ameaças e comportamentos agressivos – tanto físicos como psicológicos – contribuem para o aumento da violência nas escolas, além de não responsabilizarem os seus filhos”. “Propomos, ainda, que a Escola Segura seja um parceiro neste sentido. Uma das possibilidades que defendemos é que os alunos alvos de processos disciplinares tenham de frequentar, obrigatoriamente e juntamente com o seu encarregado de educação, ações de formação no âmbito do combate à violência. Esta medida poderá contribuir para uma mudança efetiva no comportamento e na cultura de impunidade que se tem instalado”, defende.Tal como o representante dos diretores escolares, Cristina Mota diz ser imperativa a revisão “profunda” do Estatuto do Aluno, que “responsabilize tanto o aluno como as famílias”. A docente lamenta que o documento permita que “os alunos avancem para o próximo ano letivo independentemente dos seus resultados académicos ou comportamentos, tratando a retenção como uma medida excecional”.Não há uniformização das medidas sancionatóriasNum caso de agressão em ambiente escolar não existe um protocolo a seguir de forma transversal por todas as escolas. Segundo Filinto Lima, as escolas devem pedir a intervenção da polícia, participar o caso à CPCJ, acionar apoio psicológico e, depois, há abertura do processo disciplinar. E é nesta fase que as escolas sentem as maiores dificuldades. “Quem for ler o estatuto vai perceber que as escolas viram autênticos tribunais para conduzir um processo disciplinar. Não se parte da boa-fé do professor. Se um docente ou não docente assistir a um ato de violência, a sua palavra apenas não serve. É preciso testemunhas. Não basta ver a agressão para provar. É também preciso ouvir os pais e nomear um instrutor de processo. As escolas viram um autêntico tribunal e as escolas não são tribunais”, lamenta. Assim, Filinto Lima quer um novo diploma que parta também da boa-fé do professor ou do funcionário. “São adultos que querem o melhor para todos. Não quero violar o direito ao contraditório, mas deve haver mudanças nesse sentido”, sustenta.Já Cristina Mota salienta a necessidade de “estabelecer um sistema rigoroso com regras bem definidas e medidas claras e objetivas que sirvam de referência a todas as escolas”. “A instabilidade e a falta de uniformização das medidas têm contribuído para a desresponsabilização dos alunos, dos encarregados de educação e da própria gestão escolar. Um conjunto de diretrizes comuns – adaptáveis às especificidades de cada instituição – é crucial para assegurar um patamar mínimo de segurança e disciplina em todo o sistema educativo”, sublinha.O Estatuto do Aluno prevê várias medidas mais gravosas para casos de violência, mas as mais pesadas, como a expulsão, raramente são aplicadas, segundo Filinto Lima. “A expulsão de escolas é rara. Na transferência de estabelecimento, muitas vezes, é a vítima que sai e não o agressor”, refere. Foi o que aconteceu com uma estudante de 11º ano, de uma escola de Lisboa, vítima de bullying no decorrer do 1.º semestre. A mãe, que não quer ser identificada, conta ao DN que, após reunir com a diretora de turma e não lhe serem apresentadas soluções para “o caso grave” de que a filha era alvo optou por transferir a jovem de escola. “As agressoras não iriam sair e não me davam qualquer solução. Não podia deixar a minha filha numa situação de dor. Procurei outra escola, que tinha vaga, e apresentei o pedido de transferência”, recorda, Contudo, diz, outro problema se levantou. Apesar de ter vaga para a filha, “como o pedido seguiu após o dia 10 de janeiro, não era autorizado, nem mesmo por motivo de bullying. Após essa data apenas autorizam os que se devem a mudanças de residência”. Seguiram-se três semanas de emails, telefonemas, queixas e “uma dura luta” para conseguir a desejada transferência. “Como a minha filha, muitas crianças estarão assim”, lamenta.O que diz o diploma em vigorO Artigo 10.º estabelece como deveres do aluno, “respeitar a integridade física e psicológica de todos os membros da comunidade educativa, não praticando quaisquer atos, designadamente violentos, independentemente do local ou dos meios utilizados, que atentem contra a integridade física, moral ou patrimonial dos professores, pessoal não docente e alunos”, bem como “prestar auxílio e assistência aos restantes membros da comunidade educativa, de acordo com as circunstâncias de perigo para a integridade física e psicológica dos mesmos”. Quando estes deveres não são cumpridos, as medidas disciplinares sancionatórias a aplicar podem passar por uma “repreensão registada”; “a suspensão até 3 dias úteis”; “a suspensão da escola entre 4 e 12 dias úteis”; “a transferência de escola” e “a expulsão da escola”. A transferência de escola compete, com possibilidade de delegação, ao diretor-geral da educação e apenas pode ser aplicada a alunos de idade igual ou superior a 10 anos. A aplicação da medida disciplinar de expulsão da escola também compete, com possibilidade de delegação, ao diretor-geral da educação “precedendo conclusão do procedimento disciplinar a que se refere o artigo 30.º e consiste na retenção do aluno no ano de escolaridade que frequenta quando a medida é aplicada e na proibição de acesso ao espaço escolar até ao final daquele ano escolar e nos dois anos escolares imediatamente seguintes”. O diploma não estabelece qualquer medida a aplicar, neste contexto, aos Encarregados de Educação.Recorde-se que as ocorrências criminais nas escolas aumentaram cerca de 9% no último ano letivo, totalizando 3824, sendo as ofensas corporais, injúrias e ameaças os crimes que mais aumentaram e os mais predominantes, segundo dados divulgados este ano Polícia de Segurança Pública. No ano letivo 2022/2023, houve predominância dos crimes de ofensas corporais e de injúrias e ameaças, que representam um aumento de 5,5% e 9,6% em comparação com o ano letivo anterior..Número de ilícitos de natureza criminal nas escolas em 2023 foi o mais alto numa década. Prevenir a violência em ambiente escolarCristina Mota defende uma maior aposta na prevenção e a “revisão das políticas internas com estratégias práticas de intervenção”. A Missão Escola Pública propõe algumas medidas, como a dinamização dos intervalos e espaços livres (reduzir os tempos mortos, promovendo atividades desportivas e lúdicas que favoreçam a integração e o respeito mútuo); o reforço do acompanhamento psicossocial (rever os rácios de assistentes operacionais e psicólogos, garantindo apoio contínuo e especializado para intervir precocemente em situações de risco); a ação educativa e cívica (desenvolver projetos que envolvam os alunos em atividades de trabalho cívico e comunitário) e a reintrodução da figura do vigilante. Governo anunciou a contratação de quase 600 vigilantes para as escolasCom o objetivo de combater o aumento da violência em contexto escolar, o Governo anunciou, em julho, a contratação de 588 vigilantes. “Os vigilantes escolares desapareceram. Havia cerca de 600 em 2009 e, neste momento, não temos vigilantes escolares”, explicou o ministro da Educação, Fernando Alexandre, aquando do anúncio da medida. O ministro fez ainda referência aos últimos dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2023, que indicam um aumento de 30% nas ocorrências registadas em contexto escolar, em comparação com 2018/2019. A tutela pretende contratar agentes de segurança ou militares aposentados ou na reserva. Contudo, estes profissionais ainda não chegaram às escolas. Questionado pelo DN para esclarecer quando se irão efetivar essas contratações, o MECI remete para as autarquias. “A contratação de vigilantes está a ser considerada no âmbito do estudo da descentralização e da revisão dos recursos a transferir para as autarquias, a articular com a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), uma vez que o Decreto-Lei 21/2019, de 30 de janeiro, concretiza a transferência de competências para os órgãos municipais e das entidades intermunicipais no domínio da Educação”, esclarece o Governo. .Crianças do 1.º ciclo e raparigas são quem mais sofre de 'bullying' nas escolas .Escola Segura: Agressões a professores e funcionários aumentam quase 40%, a alunos diminuem 22%