"Sem cuidados primários fortes, o SNS transforma-se num Serviço Nacional da Doença"
ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA (Arquivo)

"Sem cuidados primários fortes, o SNS transforma-se num Serviço Nacional da Doença"

Apesar do aumento dos atrasos nas consultas e cirurgias oncológicas, coordenador da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde, Fernando Regateiro, recusa a ideia de que os doentes com cancro estão a ficar para trás e reforça a importância dos cuidados primários como "a alma do SNS". Em funções desde 2024, comissão assinalou esta semana um feito: já todas as ULS têm uma comissão própria para a humanização de cuidados.
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Portugal só terá um SNS sólido se conseguir reforçar, sem hesitações, a eficiência dos cuidados de saúde primários. A convicção é de Fernando Regateiro, coordenador da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde, que deixa um diagnóstico claro: quando os cuidados primários falham, o país deixa de ter um verdadeiro Serviço Nacional de Saúde para passar a ter um “Serviço Nacional da Doença”.

Num país em que a sensação de se estar “perdido” dentro do sistema de saúde continua a ser uma das queixas mais frequentes dos utentes, o médico é claro: sem uma aposta decidida nos cuidados de saúde primários, o SNS perde identidade, perde eficácia e perde humanidade, sublinha o antigo presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, um dos oradores presentes no 6.º Congresso Nacional de Prevenção Oncológica e Direitos dos Doentes, promovido pela Liga Portuguesa Contra o Cancro, no Porto.

“O sistema tem de ir melhorando a forma como oferece os seus cuidados, e tem havido melhoras fantásticas”, reconhece Fernando Regateiro, que elogia a integração em Unidades Locais de Saúde e a hierarquização dos níveis de cuidados que “organizam a procura, aproximam a oferta para situações comuns e ajudam a identificar o que deve seguir para internamento ou maior complexidade”. Mas para essa organização funcionar em pleno, diz, a peça central é o médico de família.

Para o coordenador da comissão para a humanização do SNS, a importância dos cuidados primários ultrapassa a gestão de fluxos. É a base de todo o modelo de saúde pública. “Essa é a alma do SNS. É aí que se ganha a organização, a boa gestão e a sustentabilidade. Os cuidados de saúde primários devem ser o coração da saúde em Portugal. Os hospitais tratam a doença, mais nada.”

Fernando Regateiro lembra que “muitas das situações que hoje chegam ao SNS como doença podem ser travadas a tempo, a nível dos cuidados primários, em proximidade.” “Se não houver cuidados primários fortes”, afirma, o país arrisca transformar-se num sistema que trata, mas não evita, acumulando pressão hospitalar, atrasos e sofrimento evitável. Por isso, resume: “Se queremos um Serviço Nacional de Saúde centrado nos hospitais, temos um Serviço Nacional da Doença. Ora, o que queremos é manter o cidadão o mais tempo possível livre da doença.

Nesse sentido, admite, os números recentes que apontam ainda para mais de 1,5 milhões de utentes em Portugal sem médico de família estão longe de ser o ideal. “O número não é novo. Há três ou quatro anos, já era esse o total. Houve um ligeiro alívio, mas rapidamente voltou a aumentar, não só porque saíram profissionais, mas também porque centenas de milhares de pessoas se inscreveram, entretanto, nos cuidados primários, diluindo ainda mais a capacidade de resposta”

Regateiro aponta razões estruturais, que vão do envelhecimento dos recursos humanos à saída de alguns profissionais, ou à falta de atratividade da carreira que empurram médicos recém-especialistas para fora do SNS: “É preciso criar condições para que a realização pessoal do médico especialista o leve a optar por esta ocupação e não por outras. Há médicos de família que uma vez especialistas não optam por integrar a sua função no SNS.” 

“Há uma genuína preocupação com o doente oncológico e com os tempos de espera”

Os doentes oncológicos continuam entre os mais frágeis e mais dependentes da capacidade de antecipação do sistema. Sem cuidados primários atentos, vigilantes e próximos, muitos cancros são diagnosticados tarde demais. Ora, os números mais recentes mostram uma pressão crescente sobre a resposta oncológica no Serviço Nacional de Saúde (SNS): 57,9% dos doentes esperam além do prazo legal pela primeira consulta e quase 20% aguardam cirurgia para lá dos tempos máximos garantidos, segundo a Entidade Reguladora da Saúde. A estes dados somam-se os sinais de recuo nos ganhos da cirurgia oncológica revelados pelo recente relatório RADIS.

Regateiro reconhece atrasos na resposta, mas recusa a ideia de que os doentes oncológicos estejam a ser abandonados. “Houve uma acumulação de doentes oncológicos grande que tem vindo a ser resolvida. E estava a ser bem resolvida”, afirma. O coordenador da Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde admite que agora se voltou a verificar um aumento dos atrasos, mas mantém confiança de que as causas serão rapidamente identificadas e corrigidas: “Há um aumento do tempo de espera, isso é dos números e, portanto, é irrefutável. Agora, estou convencido que as instituições de governança da saúde estão atentas a isso. Há um foco muito claro na resolução destes problemas, sobretudo em situações graves como as oncológicas. Não tenho dúvidas disso”.

Questionado sobre como a Comissão de Humanização interpreta estes números, Regateiro sublinha que o seu papel não é o da governação direta, mas o da intervenção na relação humana que acompanha todo o processo de cuidados. “A nossa missão primordial é a promoção e valorização da humanização dos cuidados de saúde, com foco na centralidade da pessoa e na sua dignidade.”

Fernando Regateiro foi presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Fernando Regateiro foi presidente do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra e do Centro Hospitalar e Universitário de CoimbraDR / Universidade de Coimbra

Essa atuação concretiza-se na qualidade da comunicação clínica: “Incentivamos e promovemos uma comunicação com escuta ativa, que não seja unidirecional, que ouça.” E no caso dos doentes com cancro, essa necessidade é ainda mais aguda. “O doente oncológico é vulnerável, está em sofrimento, ansioso, é alguém a quem caiu algo em cima. É uma pessoa que carece mesmo de comunicação, de alguém que escute as razões, as preocupações e a experiência que vai tendo.”

Mas a humanização vai além da relação médico-doente. Também é essencial “cuidar de quem cuida”, adverte. “Olhar para as razões de cansaço e desistência dos profissionais, para o desgaste das equipas, para o impacto dos ambientes de trabalho”. E valorizar igualmente o papel das famílias e dos espaços onde os cuidados acontecem: “O espaço é extremamente importante. E, para um doente oncológico, o conforto e as amenidades fazem a diferença.”

O presidente da Comissão para a Humanização do SNS lembra que os direitos dos doentes estão estabelecidos em lei: “Os direitos do doente oncológico - direito à informação, ao consentimento, à privacidade, à assistência espiritual, ao esquecimento oncológico - estão em lei, mas a lei não resolve o problema.” É preciso que existam práticas institucionais que tornem os direitos operacionais, ressalva. É aqui que entram a formação, a comunicação e os modelos de relacionamento desenvolvidos ou incentivados pela Comissão: “Promover a formação em comunicação de más notícias, capacitar os profissionais para informar o doente de forma clara, honesta, empática, respeitando a autonomia e reduzindo a ansiedade.”

Regateiro reconhece que atrasos e constrangimentos como os que se verificam nas cirurgias e consultas dificultam a prática humanizada que a Comissão procura incentivar. “Mais difícil se torna, claro.” Mas volta a rejeitar a ideia de que o SNS tenha negligenciado os doentes com cancro. “Não acho que estejam a ficar para trás, não. Há uma genuína preocupação com o doente oncológico e com os tempos de espera.”

Um ponto que tem sido levantado com insistência pela Liga Portuguesa Contra o Cancro diz respeito aos rastreios ainda por implementar, como os do pulmão, próstata e estômago. O médico concorda com a urgência, mas sublinha a complexidade técnica e organizativa que estes programas exigem. “São respostas extremamente complexas para instalar.” E recorda a própria experiência com rastreios já implementados: “Lidei com o rastreio do cancro da mama aqui na região Centro, onde já estava há muito instalado quando outras regiões ainda nem sequer o tinham. E lidei com a instalação do rastreio do cancro do cólon. Demorou anos. Mas é evidente que merecem ser desenvolvidos e identifico-me exatamente com a preocupação do Sr. Presidente da Liga quando diz que é preciso avançar para esses rastreios. São respostas necessárias não só sobre o ponto de vista da intervenção atempada e curativa na doença, mas também sobre o ponto de vista económico. Se quisermos cuidar de economia de saúde e da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, tudo o que for feito de forma preventiva deve ser feito, porque o investimento em prevenção gera ganhos enormes na poupança em tratamentos de doença”.

Uma rede nacional de humanização instalada: um marco histórico

Entre os resultados muito concretos que a Comissão Nacional para a Humanização dos Cuidados de Saúde já alcançou desde que foi criada em 2024, há um que gera particular satisfação em Fernando Regateiro: Portugal tem hoje, pela primeira vez, todas as unidades .locais de saúde com comissões de humanização formalmente instituídas.

“Esta semana foi formalizada a última que faltava”, afirma ao DN. “Neste momento, nós temos já uma rede completa de comissões de humanização. Todas as ULS e IPO têm uma.”

E se antes disso, diz, mesmo os sete ou oito hospitais que não tinham uma comissão desta natureza criada “desenvolviam já atividades de humanização”, agora, com estas estruturas montadas, existe algo que considera decisivo: grupos de profissionais dedicados, dentro de cada instituição, a pensar a humanização. “Uma comissão tem pessoas a propor iniciativas, a refletir sobre estas ações. Está lá a semente”, diz.

O que dizem os profissionais; e o que dizem os doentes

A Comissão para a Humanização dos Cuidados de Saúde do SNS é também recetora das preocupações de quem está no terreno e Fernando Regateiro dá conta do que lhe transmitem os profissionais de saúde. “Falam sobretudo de relação humana e tempo. Todos se preocupam com o relacionamento com o doente e com as dificuldades de transmitir a informação de forma compreensível.” Vários indicam também “aspetos a melhorar nos circuitos internos, como sinalização, orientação ou a falta de espaços adequados para conversas sensíveis com famílias”.

Do lado dos doentes, que também têm um representante na Comissão, surgem queixas que vão ao cerne da humanização do serviço: “Pessoas que dizem “eu fui ao médico e ele tratar, tratou-me, mas nem para mim olhou”, exemplifica. Para Fernando Regateiro, a necessidade de empatia com o doente é um requisito da prática clínica tão antigo quanto a própria profissão. “Já o Hipócrates, antes de Cristo, dizia: antes de conheceres a doença, conhece o doente.”

Questionado se o SNS é hoje verdadeiramente humanista, o médico reconhece que a “tecnicidade” do sistema “muitas vezes faz esquecer este modo de relacionamento”, mas insiste que os bons exemplos são a norma, não a exceção. “Os casos que são citados não são uma maioria. Nem sequer estatisticamente significativos. O SNS faz milhões e milhões de ações por ano. E o que é que passa para o domínio público? São os casos. A comunicação faz-se de casos. Claro, uma boa notícia é quando o homem morde o cão, não é quando o cão morde o homem”.

Sobre o legado que gostaria de deixar nesta comissão, Fernando Regateiro não tem dúvidas: “Que esta dinâmica de centralidade da humanização se intensifique e se capilarize”, chegando a cada nível dos cuidados proximidade. “Isto é, que a Comissão de Humanização que está na sede das Unidades Locais de Saúde tenha extensões até à proximidade, porque é em proximidade que melhor se percebe os problemas e melhor se age. Os modelos em proximidade são mais confiáveis do que os modelos distantes”.

Fernando Regateiro acredita que “a humanização dos cuidados diferencia” e ajuda também a sustentar o próprio sistema. Porque “um doente que confia, adere mais facilmente” e “um sistema que acompanha cedo, evita tarde”.

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