Magda Cocco é advogada na Vieira de Almeida & Associados onde é responsável pelas áreas de Comunicações, Proteção de Dados & Tecnologia e Digital Frontiers.
Magda Cocco é advogada na Vieira de Almeida & Associados onde é responsável pelas áreas de Comunicações, Proteção de Dados & Tecnologia e Digital Frontiers.Direitos reservados

"O legislador é crucial para equilibrar a liberdade de expressão com a proteção contra discursos de ódio”

Inserido nas conferências “A caminho de uma sociedade digital”, a Academia das Ciências promove esta quarta-feira (18:30) debate sobre “Coisas de direito no digital”. Palestra a advogada Magda Cocco.
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Assistimos a mudanças rápidas no mundo digital, com o crescimento de novas tecnologias como a inteligência artificial, a blockchain e a “Internet das Coisas”. Consegue a regulação acompanhar a vertigem das mudanças de forma a garantir um ambiente seguro e transparente para os cidadãos?

Vivemos, sem dúvida, um momento de rápidas e profundas mudanças no mundo digital, em que a regulação desempenha um papel crucial para garantir que essas inovações são implementadas de forma segura e transparente, protegendo os cidadãos e, sobretudo, promovendo a confiança no ambiente digital.

O legislador europeu tem procurado assegurar que o quadro legal digital é “future proof”, ou seja, que a legislação está preparada para acompanhar a vertiginosa velocidade das mudanças tecnológicas. Este esforço é executado através, entre outras, de “ferramentas” como o princípio da neutralidade tecnológica; a identificação e mitigação proativa dos riscos e a incorporação de mecanismos de revisão e adaptação constante das normas legais.

Quer deter-se em cada uma destas “ferramentas”?

Sim. O princípio da neutralidade tecnológica garante que as regulamentações não favorecem nem prejudicam tecnologias específicas, permitindo que a inovação floresça de maneira justa e equilibrada. A neutralidade tecnológica é essencial para garantir que as regras são aplicáveis a uma ampla gama de tecnologias, independentemente de como estas evoluam.

Os riscos associados às novas tecnologias são continuamente mapeados pelas instituições europeias e abordados de forma proativa na preparação da legislação europeia.

Por último, a legislação europeia é projetada para ser dinâmica e adaptável. O Regulamento de Inteligência Artificial, por exemplo, prevê mecanismos de revisão e atualização regulares. A Comissão Europeia está habilitada a adotar atos delegados para alterar a lista de casos de uso de alto risco, garantindo que a regulação permanece relevante e eficaz à medida que a tecnologia evolui. Esta abordagem permite que a legislação se ajuste rapidamente às novas realidades tecnológicas e aos riscos emergentes, mantendo um ambiente seguro e transparente para os cidadãos.

As questões da privacidade e proteção de dados têm estado no centro da agenda legislativa. No entanto, existem ainda áreas cinzentas que podem representar riscos. Quais são as principais lacunas legais que identifica e como podem ser corrigidas?

A legislação existente, como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), o Regulamento de Cibersegurança e a Diretiva NIS2, estabelece normas rigorosas para a gestão, proteção e segurança de informações pessoais. As zonas cinzentas surgem frequentemente devido à dificuldade das autoridades de proteção de dados em orientarem entidades públicas e empresas na interpretação do quadro legal, adaptando-o ao complexo e sempre em evolução ecossistema digital.

Um dos principais desafios que enfrentamos é fortalecer as capacidades das autoridades de proteção de dados, garantindo que possuem as ferramentas, o pessoal e o financiamento necessários para dar uma resposta adequada aos desafios da proteção de dados no mundo digital. Este aspeto é crucial na era da inteligência artificial, em que o volume e a sensibilidade dos dados são cada vez maiores. Sem um domínio completo da cadeia de valor dos dados e do ecossistema da inteligência artificial, as autoridades correm o risco de comprometer a inovação e permitir violações graves de privacidade.

Estamos num momento de viragem, que pode trazer mais zonas cinzentas. A Internet of Everything (IoE), a tecnologia quântica e o metaverso introduzem novos desafios e exacerbam alguns existentes. A falta de um quadro internacional harmonizado, por exemplo, está a ser um aspeto crítico no desenvolvimento da Web 3 e do metaverso, uma rede de mundos virtuais interconectados sem fronteiras onde coexistem avatares com diferentes nacionalidades e que carregam quadros jurídicos distintos.

Como se enfrentam esses desafios?

Para enfrentar esses desafios, é essencial, entre outros aspetos, que as autoridades de proteção de dados sejam apoiadas por políticas claras e recursos adequados, além de promoverem a cooperação internacional para estabelecer padrões globais de proteção de dados. A consciencialização e a educação sobre a importância da proteção de dados são fundamentais para garantir que tanto cidadãos quanto empresas estejam cientes dos seus direitos e responsabilidades no ecossistema digital em constante evolução.

A desinformação e os discursos de ódio online são problemas que cresceram exponencialmente. Qual deve ser o papel do legislador para equilibrar a liberdade de expressão com a proteção contra o abuso e o discurso de ódio no digital?

O papel do legislador é crucial para equilibrar a liberdade de expressão com a proteção contra abusos e discursos de ódio, garantindo um ambiente digital seguro e respeitoso.

Para enfrentar esses desafios, o legislador deve focar-se em aumentar a transparência das plataformas digitais e criar mecanismos de resposta rápida para remoção de conteúdos que incitam ao ódio ou espalham desinformação. Além disso, é fundamental promover a educação digital e programas de alfabetização mediática, capacitando os cidadãos a identificarem desinformação de forma eficaz.

A União Europeia (UE) tem adotado uma abordagem abrangente para enfrentar a desinformação e o discurso de ódio online. Diversos instrumentos legislativos foram implementados para lidar com esses desafios, como o Digital Services Act, que exige que as plataformas online tomem medidas para mitigar a disseminação de conteúdos ilegais, forneçam relatórios sobre as suas práticas de moderação de conteúdos e um quadro de supervisão robusto, com a criação de autoridades nacionais competentes e a possibilidade de sanções significativas para as plataformas que não cumpram as suas obrigações. Além disso, o Código de Conduta da UE sobre Desinformação é uma iniciativa voluntária que envolve plataformas digitais, anunciantes e outros intervenientes, com o objetivo de combater a desinformação online, e a Diretiva sobre Serviços de Comunicação Social Audiovisual foi revista para incluir disposições específicas sobre a desinformação e o discurso de ódio.

O Regulamento de Inteligência Artificial também estabelece um quadro robusto para abordar a desinformação e o discurso de ódio. Entre outras medidas, o Regulamento proíbe a utilização de sistemas de IA que empreguem técnicas subliminares ou manipuladoras para distorcer substancialmente o comportamento humano de maneira prejudicial e exige que os prestadores de sistemas de IA que geram conteúdos sintéticos assegurem que esses conteúdos sejam marcados de forma que possam ser identificados como artificialmente gerados ou manipulados.

Estas medidas legislativas e regulatórias são essenciais para criar um ambiente digital mais seguro e respeitoso, onde a liberdade de expressão é protegida, mas o abuso e os discursos de ódio são rigorosamente controlados. Contudo, para sermos bem-sucedidos neste domínio, como em qualquer outro, não basta um quadro legal robusto – a supervisão contínua e a aplicação rigorosa das normas são fundamentais para assegurar que as plataformas digitais e os demais stakeholders relevantes respeitem a lei e promovam um ambiente digital mais transparente e responsável.

Existe uma crescente preocupação com os "efeitos colaterais" do digital, como o vício das redes sociais ou a vigilância digital. Vê com bons olhos medidas de regulamentação capazes de mitigar estes efeitos e promover um uso saudável da tecnologia?

As redes sociais têm-se tornado uma parte essencial da vida quotidiana para milhares de milhões de pessoas em todo o mundo. No entanto, o design destas plataformas muitas vezes prioriza a maximização do tempo de uso e o envolvimento dos utilizadores, fomentando comportamentos aditivos. Isto pode resultar em problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e diminuição da capacidade de concentração. Medidas de regulamentação que limitassem práticas de design que incentivam o uso compulsivo e que exigissem transparência sobre algoritmos de recomendação poderiam ajudar a mitigar esses efeitos.

A vigilância digital, por sua vez, é um fenómeno através do qual empresas e governos recolhem, analisam e utilizam informações pessoais de cidadãos, muitas vezes sem o seu consentimento informado. Esta monitorização pode levar a invasões de privacidade, discriminação e manipulação comportamental, além de colocar riscos à segurança digital. Regulamentações que estabeleçam limites claros à recolha de dados e que exijam mecanismos robustos de consentimento informado e proteção de dados são essenciais para proteger os direitos dos indivíduos.

Vejo, naturalmente, com bons olhos quando se trata de abordar estas preocupações.

A União Europeia tem adotado uma abordagem proativa para mitigar os efeitos colaterais do uso da tecnologia, implementando uma série de regulamentações e iniciativas que visam proteger a privacidade dos utilizadores, promover a transparência e a responsabilidade das plataformas digitais, e educar os cidadãos sobre o uso seguro e saudável da tecnologia. A título de exemplo, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, em vigor desde maio de 2018, é uma das legislações mais abrangentes do mundo em termos de proteção de dados pessoais. Este regulamento estabelece regras rigorosas sobre como os dados dos cidadãos da UE devem ser recolhidos, armazenados e utilizados, e a diretiva Privacidade nas Comunicações Eletrónicas regula o uso de cookies e outras tecnologias de rastreio, garantindo que os utilizadores são informados e podem autorizar o rastreio das suas atividades online.

A cooperação internacional tem sido frequentemente mencionada como crucial na regulação digital. Quais são os principais desafios e oportunidades que a colaboração entre países pode trazer para criar um ambiente digital mais seguro e coeso a nível global, tendo em conta as especificidades locais?

A cooperação internacional na regulação digital enfrenta inúmeros e significativos desafios, que vão desde diferenças culturais até divergências económicas e complexidade técnica.

As diversas culturas e sistemas políticos dos países resultam em normas e valores contraditórios sobre questões fundamentais da regulação digital, como privacidade e liberdade de expressão. Democracias liberais e regimes autoritários, por exemplo, têm abordagens bastante distintas em relação a essas questões, dificultando a construção de um consenso global.

A relutância dos países em ceder parte da sua soberania em questões de regulação digital é um obstáculo considerável. Existe o receio de que a cooperação internacional possa comprometer a autonomia e a segurança nacional desses países.

Além disso, grandes potências tecnológicas, como os Estados Unidos e a China, possuem interesses económicos que frequentemente entram em conflito. A competição pela liderança tecnológica pode dificultar a cooperação em regulamentações que visam limitar o crescimento das suas empresas. Países em desenvolvimento enfrentam desafios adicionais, como o desequilíbrio de recursos e capacidades tecnológicas quando comparados com os países desenvolvidos, o que influencia as negociações e a implementação de regulamentações.

A criação de normas técnicas aceites globalmente é um desafio devido à rápida evolução da tecnologia. Harmonizar esses padrões técnicos exige elevada coordenação e um consenso robusto entre os países.

Além dos desafios mencionados, há oportunidades de cooperação internacional, especialmente no combate ao cibercrime e em matérias de desenvolvimento sustentável.

No combate ao cibercrime, a colaboração entre países pode resultar em acordos internacionais que facilitem a investigação e a punição de crimes que cruzam fronteiras. Programas conjuntos de capacitação e formação podem melhorar as competências das forças de segurança cibernética de diferentes nações, reforçando a defesa contra ameaças digitais globais.

A área do desenvolvimento sustentável também oferece excelentes oportunidades para cooperação internacional. Neste âmbito, a cooperação pode promover a inclusão digital, garantindo que os benefícios da tecnologia sejam acessíveis a todas as pessoas, independentemente da sua localização geográfica ou condição socioeconómica. Além disso, a colaboração internacional pode incentivar a inovação e a investigação em tecnologia, abordando desafios globais como alterações climáticas, saúde pública e educação.

Estas oportunidades de cooperação não só ajudam a criar um ambiente digital mais seguro e coeso, como também promovem uma distribuição mais equitativa dos benefícios tecnológicos e impulsionam soluções colaborativas para problemas globais urgentes.

A próxima conferência decorre a 19 de março com o tema “A transformação digital nas bibliotecas, arquivos e museus (memória coletiva)”.

Acesso à conferência:

https://videoconf-colibri.zoom.us/j/92188938954#success

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