Discurso foi com foco nas mulheres.
Discurso foi com foco nas mulheres.Gerardo Santos

Na abertura do ano judicial, ministra lembra mulher assassinada pelo marido à frente dos filhos

"O que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias?", questionou Rita Júdice.
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"Há quatro dias, pouco depois da meia-noite, uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz. Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz?"

Com esta interrogação, a ministra da Justiça, Rita Júdice, iniciou a intervenção na sessão de abertura do ano judicial. O caso citado pela ministra foi o último caso de femicídio registado em Portugal, ocorrido na passada quinta-feira no Barreiro. Segundo Júdice, a queixa da vítima foi apresentada em 2022 e "arquivada no ano seguinte".

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"As palavras bonitas sobre a Justiça já foram todas inventadas e já foram todas ditas. Encaremos então as palavras duras", destacou antes de classificar a violência doméstica como um dos crimes "mais graves" que existem.

"Muitas pessoas pensam que a violência doméstica é apenas uma questão familiar, e até se envergonham de serem vítimas, o que as leva a sofrer em silêncio. Mas a violência doméstica não é uma questão familiar. É um crime, e dos mais graves, que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado.  Alcinda Cruz é a grande ausência, e o grande silêncio, nesta sala e nesta cerimónia", ressaltou.

De acordo com Júdice, as vítimas de violência doméstica devem "ocupar um lugar cimeiro do sistema judicial". Apesar do destaque para o crime, cujas vítimas em 2024 foram pelo 16, além de 53 tentativas, nenhuma medida nesta área foi anunciada pelo Governo.

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Depois de falar da violência doméstica, Rita Júdice anunciou no discurso que este mês "fica concluído o trabalho que reformula o instituto da perda alargada de bens, conhecido como “confisco” de bens obtidos pela via da corrupção", além da criação de um grupo de trabalho "que se vai debruçar sobre matérias de promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios". A ministra adiantou que trata-se de medidas na fase da instrução no processo penal, nomeadamente o "reforço dos poderes do juiz na gestão processual e de outras alterações ao Código de Processo Penal – por exemplo, em matéria de recursos".

Sobre a negociação com oficiais de justiça - que promovem uma manifestação silencioso do lado de fora do prédio - Júdice afirmou que a classe já teve "provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe nos últimos meses". O Ministério da Justiça e o sindicato vai voltar a mesa de negociações no dia 16.

"Os funcionários judiciais sabem que têm na Ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os Tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova", argumentou, citando também o aumento do Suplemento de Recuperação, a revisão em curso do Estatuto Profissional e o recrutamento de quase 600 novos profissionais.

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Também comemorou os resultados da tramitação eletrónica do inquérito no processo penal, iniciada no mês passado. "Num mês, poupámos 238 dias de trabalho de um Oficial de Justiça: são mil e 665 horas, ou seja, oito meses de trabalho. É tempo que pode ser alocado a outras tarefas, também úteis e necessárias. Poupa-se tempo, ganha-se eficiência e celeridade", contou. Neste período, deram entrada sete mil peças processuais e foram feitas 22 mil notificações sem papel.

Sobre a redução de candidatos à magistratura, a ministra disse esperar um aumento com as novas regras de acesso ao Centro de Estudos Judiciários e com a abertura de um novo Polo em Vila do Conde ainda neste ano. A governante ainda lembrou que está no Parlamento uma proposta de lei que altera os Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a Lei Orgânica do Sistema Judiciário. 

Segundo Rita Júdice, o principal objetivo é rejuvenescer o corpo de juízes conselheiros. "Propomos alargar, aos magistrados mais jovens, o acesso ao concurso para o Supremo Tribunal de Justiça. A nova regra vai trazer mais estabilidade, reduzir a indesejada rotatividade e colmatar a saída de muitos graduados, que se encontram em idade próxima da jubilação", explicou. Igualmente, está a se preparado um projeto de Decreto-Lei para regular "de forma global e sistematizada as assessorias em todos os Tribunais".

A ministra indicou ainda que ouviu, no Funchal, "uma conservadora dizer que as conservatórias não têm correio eletrónico há mais de um ano". Por isso, assegurou que está a tratar do envio de 110 computadores aos funcionários do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) da Madeira e cinco mil computadores a magistrados e a auditores de justiça. O investimento faz parte do Programa Recuperação e Resiliência (PRR).

Por fim, Rita Júdice lembrou as mulheres "de relevo na Justiça Portuguesa", com especial destaque para a antiga procura-geral da república Joana Marques Vidal. "Cuja morte não vem esbater o legado de independência, dignidade e de trabalho que nos deixou. Que o seu exemplo nos inspire a mudar a história de Alcinda Cruz com que iniciei esta intervenção e a darmos o melhor de nós a favor da Justiça do nosso país".

amanda.lima@dn.pt

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