Uma agressão com motivo fútil ou torpe — ou seja, sem motivo nenhum. Foi assim que o Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo, em decisão de 19 de setembro, qualificou os murros, um dos quais fatal (por causar uma queda da qual resultaram lesões cerebrais), desferidos, na madrugada de 17 de março de 2024, à porta de uma discoteca na Horta/Faial, por Adriano Pereira, então com 23 anos, sobre Ademir Moreno, 49 anos, cidadão cabo-verdiano a residir em Portugal há décadas e nos Açores a trabalhar como calceteiro.Isto malgrado o tribunal, numa decisão assinada pelos juízes Miguel Ângelo França, Filomena Bernardo e Adelaide Patrícia Freitas Lima, e à qual o DN teve acesso, ter dado como provado que antes das agressões Adriano Pereira (AP) se tinha dirigido a Ademir (que não conhecia) dizendo “não tenho medo de pretos, não tenho medo de vocês”, e que noutra ocasião, também em março de 2024, proferira, para com pessoas racializadas, as frases “vocês pretos de merda querem o quê”, “vocês não são nada”.Esses factos tinham levado à pronúncia do arguido, a 30 de dezembro de 2024, por homicídio qualificado por motivação de ódio racial (e também por motivo torpe ou fútil). Dizia o despacho do Tribunal de Instrução Criminal da Horta: “Tudo indica que o arguido atuou por ódio racial, com total desprezo pela vida humana daqueles que não partilham da sua cor de pele (…). Tanto resulta, desde logo, das expressões proferidas pelo arguido antes de atuar (...), cuja adjetivação utilizada se afigura manifestação de uma alegada e perspetivada superioridade face à vítima, colocando a última num (pretenso) nível inferior civilizacional, intelectual e/ou moral”. Mas os juízes de Angra do Heroísmo não concordaram: “Não se pode dizer que este [AP] tenha sido determinado por ódio racial (…), pois o que determinou/motivou o arguido a agredir Ademir Moreno não foi qualquer razão ou ideologia racista, mas sim o facto de, antes, Ademir ter intervindo (ajudando a separar e pedindo para parar) na contenda entre (…) a namorada do Arguido) e [outra jovem]”. Ou seja, prossegue o acórdão, AP “não teve qualquer motivo para perpetrar a agressão em causa.”Expressão “pretos do c...” não é racistaO coletivo atendeu assim parcialmente à contestação do arguido, que asseverou não nutrir “qualquer animosidade pessoal ou ideológica contra a vítima em razão da sua origem étnica, não tendo escolhido a vítima com base na sua cor de pele ou nacionalidade”, garantindo que “as expressões utilizadas (‘pretos do caralho’, etc.) foram proferidas num contexto de tensão e descontrolo, como desabafo impulsivo, e não como manifestação estruturada de ideologia de ódio ou motivação racial.” Também no que respeita ao tipo de crime o tribunal acolheu a contestação do arguido, a qual argumentava que este “não previu nem aceitou como possível a morte da vítima, acreditando, com base na agressão anterior sem consequências [um primeiro murro desferido sobre Ademir], que a nova agressão provocaria apenas dor ou humilhação”. Deste modo o coletivo alterou, antes da decisão, a qualificação jurídica dos factos: de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de homicídio com dolo eventual (que pressupõe a aceitação da possibilidade de da ação — no caso, a agressão — sobrevir a morte) para dois crimes de ofensas à integridade física, o segundo dos quais “grave, qualificado, agravado pelo resultado morte”.Se no homicídio qualificado a moldura penal é de 12 a 25 anos, na ofensa à integridade física grave, qualificada e agravada pelo resultado morte a pena vai de quatro a 16 anos de prisão. A pena final decidida foi sete anos e 10 meses, cúmulo jurídico dos oito meses de prisão pela primeira agressão e dos sete anos e seis meses pela segunda (a que resultou na morte).“Quem morreu não foi um cão”Apesar de verberar o AP por faltar à verdade ante o tribunal — pretendendo que nunca proferira certas expressões e que só agredira Ademir uma vez, e apenas porque achava que este ia agredir a sua namorada —, o coletivo elencou a seu favor a juventude e nunca ter sido condenado por qualquer crime.Tendo a viúva e a filha de Ademir pedido indemnizações num total de 724 mil euros, foi deliberado atribuir-lhes cerca de 479 600 euros (mais juros de mora até integral pagamento), em várias parcelas. Em danos não patrimoniais, 600 euros pela primeira agressão, 50 mil euros pelo dano morte, 45 mil euros pelos danos sofridos por Ademir antes de morrer, mais 50 mil euros para a viúva e 55 mil euros para a filha pelos danos sofridos pelas próprias devido à morte; em danos patrimoniais (Ademir era o ganha-pão da família), 279 mil euros a dividir pelas duas.O DN contactou a viúva de Ademir, Lurdes Ferreira, que adianta estar ainda a refletir sobre a decisão judicial, e esperar o conselho da advogada para decidir o que fazer, tanto mais que tem dificuldades económicas e recorrer implica custos. Mas manifesta a sua revolta: “Acho uma pena muito leve para uma morte. Quem morreu não foi um cão, foi um marido e um pai. E eu estava lá, ouvi as testemunhas. A meu ver foi um crime com motivação racial.” Desde o início do processo que a questão da motivação e a natureza do crime divide os magistrados que nele intervieram. Se o Ministério Público (MP) e o Tribunal de Instrução consideraram estar em causa homicídio qualificado pelo ódio racial, as juízas desembargadoras do Tribunal da Relação de Lisboa (chamado pelo arguido a ajuizar sobre a sua manutenção em prisão preventiva) discordaram. Em acórdão de 15 de julho de 2024, evidenciaram não só não considerar adequada a indiciação por homicídio (que também não foi subscrita pela magistrada que decidiu a prisão preventiva) como apresentaram “dúvidas” face à motivação de ódio racial — mas por porem em causa os testemunhos que referem as expressões sobre as quais o MP assentava a qualificação.No acórdão, assinado pelas magistradas Carla Carecho, Fernanda Sintra Amaral e Renata Whytton da Terra, lê-se: “Não se torna possível afirmar, ainda que numa fase de apreciação indiciária da prova, que dos autos resultam fortes indícios de ter o arguido proferido as expressões em causa nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos autos (…). Ficámos com dúvidas sobre qual a parcela da realidade que efetivamente cada uma das identificadas testemunhas (…) presenciou e se o que trouxeram aos autos como tendo sido as expressões proferidas pelo arguido na(s) ocasião(ões) em causa nos autos corresponde efetivamente ao que o arguido verbalizou”.E advertem: “O que interessa apurar é se os factos que se possam dar como fortemente indiciados são suficientes para se poder fazer um juízo de censura tal que se constate que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu a vítima, não bastando para tal o facto de esta ser de nacionalidade cabo-verdiana e com um tom de pele diverso da do arguido, para se poder considerar que este atuou movido por ódio racial”.Houve vontade de "exponenciar lesões", disse Tribunal da RelaçãoAs desembargadoras acabam por considerar que sim – que a agressão fatal, de cuja autoria afirmam “inexistirem dúvidas”, se revestiu de especial censurabilidade/perversidade. Não por causa da motivação (em relação à qual, de resto, não aventam qualquer hipótese) mas pela forma como foi perpetrada, quando Ademir estava de costas para o arguido: “Bem sabia o arguido que, ao atuar, como atuou, com surpresa, deixaria a vítima sem reação e sem possibilidade de defesa, o que exponenciava o potencial das lesões resultantes da agressão, o que também quis.”No ver das magistradas, a atuação em causa encaixa numa das definições de “catálogo” para a qualificação dos crimes dolosos contra as pessoas (catálogo que consta no artigo 132º do Código Penal, “homicídio qualificado”): aquela que, aplicando-se por exemplo a envenenamentos, se refere à utilização de “qualquer meio insidioso”. E explicam: “O meio insidioso compreende, necessariamente, as condições escolhidas pelo arguido para utilizar meio ou instrumento particularmente perigoso, de jeito que, colocando a vítima numa situação que a impeça de resistir em face da surpresa, da dissimulação, do engano, da traição, lhe permita tirar vantagem dessa situação de vulnerabilidade e praticar o crime”.Haverá então nesta visão como que uma premeditação na agressão no sentido de, lê-se no acórdão, “exponenciar o potencial das lesões”. Porquê essa vontade de causar tanto dano a um homem que AP nunca teria visto antes e que, a crer no que está relatado no processo, nada lhe fez, o citado acórdão da Relação não procura explicar – mas também não optou por sublinhar essa inexistência de explicação ao não escolher, do leque das circunstâncias agravantes, aquela que se prende com “o prazer de causar sofrimento” ou “por qualquer motivo torpe ou fútil”. Que foi precisamente a circunstância agravante pela qual o tribunal de Angra do Heroísmo qualifica as agressões de Adriano Pereira a Ademir Moreno. .Morte no Faial: MP vê crime racista, Relação não.Jovem açoriano julgado por homicídio por ódio racial.Foi ódio racial que matou Bruno Candé, acusa Ministério Público.Homicida de Bruno Candé condenado a 22 anos e nove meses de prisão