"Ele dizia sempre: ‘Nasci a 13 de outubro, dia de Nossa Senhora de Fátima, sou abençoado, ninguém me faz mal’.” O irmão mais novo de Ademir Araújo Moreno, Edson Araújo, respira fundo. “Deus sabe o destino que tem para cada um. Ele gostava muito de ir às discotecas, ia muito em Lisboa, adorava dançar, não se cansava. E foi ao dançar que perdeu a vida.”.Nascido em 1974 na Cidade da Praia, Cabo Verde, Ademir Moreno chegou a Portugal há 24 anos, para ficar. Aqui se apaixonou e casou, aqui aprendeu uma profissão nova, calceteiro – antes, no país de origem, era instrutor de condução – aqui teve uma filha, agora com 20 anos, aqui se fez cidadão português. Foi para assentar calçada portuguesa – para ele uma paixão, garantiram familiares ao DN – que este sportinguista “doente”, filho de um famoso jogador de futebol cabo-verdiano, Djudja (Manuel Jesus Moreno), viajou para a Horta, na ilha do Faial, Açores. Ali estava há cerca de três meses quando, na madrugada de domingo 17 de março, à saída de uma discoteca, foi agredido. No dia seguinte, seria declarado morto em resultado de lesões cerebrais..Ademir e a filha, ambos sportinguistas ferrenhos..Edson, como o resto da família – a mulher e a filha declinaram prestar declarações ao DN – ainda está, quase nove meses depois, a processar a perda. “A morte do meu irmão como foi, da maneira como foi… revolta. Custa muito, uma pessoa tão boa, pacata, sem maldade, sempre a sorrir, sempre a querer ajudar. Fazia amigos em toda a parte, não se guardava. Por que vai uma pessoa agredi-lo assim?”.Para o Ministério Público (MP), de acordo com o despacho de acusação, datado de 5 de setembro e ao qual o DN teve acesso, a resposta é racismo. Imputa ao agressor de Ademir– que designaremos por AP –, natural do Faial e ali residente, com 23 anos à data dos factos, os crimes, “em concurso efetivo”, de homicídio e ofensa à integridade física motivados por ódio racial. .Para sustentar esta acusação, tão rara na justiça portuguesa que se contam pelos dedos de uma mão os casos em que foi formulada, o despacho cita duas frases que, segundo várias testemunhas, AP teria proferido antes da agressão fatal – “Não tenho medo de pretos, podem vir quem quiser!”; “Eu não tenho medo nenhum de pretos!” .A esta qualificação dos crimes – “qualificação” significa maior gravidade, ou maior grau de culpa, e, de acordo com o Código Penal, existe quando o crime ocorre “em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”– o MP soma ainda a motivação torpe ou fútil e o caráter insidioso, vulgarmente chamada “à traição”, da agressão que causou a morte..“A motivação do arguido para a prática dos factos descritos, tanto mais que não conhecia previamente Ademir Araújo Moreno, é frívola e insignificante e manifestamente desproporcional à gravidade dos factos que precederam o crime”, lê-se no despacho de acusação. No qual é atribuído a AP o cometimento, “em concurso efetivo”, dos crimes de homicídio qualificado com dolo eventual (por se considerar que o arguido aceitou a possibilidade de da agressão poder resultar a morte do agredido) e de ofensa à integridade física qualificada. A moldura penal do primeiro crime é de 12 a 25 anos; a do segundo é até quatro anos..Vontade de fazer mal ao grupo que identifica como “pretos”.Também a juíza de Instrução criminal, que presidiu ao primeiro interrogatório de AP e decretou a respetiva prisão preventiva (entretanto, após recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido foi colocado em prisão domiciliária), não viu outra motivação para o crime que não o ódio racial..Relacionando a principal razão que levou o arguido a decidir-se à prática dos factos com a intolerância e vontade de fazer mal ao grupo que o arguido identificou repetidamente como “pretos”, a magistrada considerou que o crime se tornou ainda mais censurável pelo facto de ter sido determinado por ódio racial e relacionado com o tom de pele da vítima..Já o Tribunal da Relação, em acórdão de 15 de julho, evidenciou não só não concordar com a indiciação por homicídio (que também não foi subscrita pela magistrada que decidiu a prisão preventiva) como apresentou “dúvidas” face à motivação de ódio racial, pondo em causa os testemunhos que as referem..No acórdão, assinado pelas desembargadoras Carla Carecho, Fernanda Sintra Amaral e Renata Whytton da Terra, lê-se: “Não se torna possível afirmar, ainda que numa fase de apreciação indiciária da prova, que dos autos resultam fortes indícios de ter o arguido proferido as expressões em causa nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos autos (…). Ficámos com dúvidas sobre qual a parcela da realidade que efetivamente cada uma das identificadas testemunhas (…) presenciou e se o que trouxeram aos autos como tendo sido as expressões proferidas pelo arguido na(s) ocasião(ões) em causa nos autos corresponde efetivamente ao que o arguido verbalizou”..E advertem: “O que interessa apurar é se os factos que se possam dar como fortemente indiciados são suficientes para se poder fazer um juízo de censura tal que se constate que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu a vítima, não bastando para tal o facto de esta ser de nacionalidade cabo-verdiana e com um tom de pele diverso da do arguido, para se poder considerar que este atuou movido por ódio racial”..As desembargadoras acabam por considerar que sim – que a agressão fatal, de cuja autoria afirmam “inexistirem dúvidas”, se revestiu de especial censurabilidade/perversidade. Não por causa da motivação (em relação à qual, de resto, não aventam qualquer hipótese) mas pela forma como foi perpetrada: “Bem sabia o arguido que, ao atuar, como atuou, com surpresa, deixaria a vítima sem reação e sem possibilidade de defesa, o que exponenciava o potencial das lesões resultantes da agressão, o que também quis.”.No ver das magistradas, a atuação em causa encaixa numa das definições de “catálogo” para a qualificação dos crimes dolosos contra as pessoas (catálogo que consta no artigo 132º do Código Penal, “homicídio qualificado”): aquela que, aplicando-se por exemplo a envenenamentos, se refere à utilização de “qualquer meio insidioso”. E explicam: “O meio insidioso compreende, necessariamente, as condições escolhidas pelo arguido para utilizar meio ou instrumento particularmente perigoso, de jeito que, colocando a vítima numa situação que a impeça de resistir em face da surpresa, da dissimulação, do engano, da traição, lhe permita tirar vantagem dessa situação de vulnerabilidade e praticar o crime”..Haverá então nesta visão como que uma premeditação na agressão no sentido de, lê-se no acórdão, “exponenciar o potencial das lesões”. Porquê essa vontade de causar tanto dano a um homem que AP nunca teria visto antes e que, a crer no que está relatado no processo, nada lhe fez, o acórdão não procura explicar – mas também não opta por sublinhar essa inexistência de explicação ao não escolher, do leque das circunstâncias agravantes, aquela que se prende com “o prazer de causar sofrimento” ou “por qualquer motivo torpe ou fútil”. .Uma briga de miúdas e uma morte estúpida.Mas regressemos a 17 de março e aos acontecimentos que, pouco antes das seis da manhã, conduziram à morte de Ademir Moreno. Segundo a narração do despacho de acusação, este estava junto à discoteca B-side, naquela cidade açoriana, quando AP (descrito como tendo 1,78 metros e pesando 100 quilos), que naquela noite tinha estado a trabalhar como barman na discoteca, o agrediu duas vezes..As agressões terão surgido na sequência de uma briga entre jovens mulheres – uma das quais namorada de AP – que ocorreu após o encerramento da discoteca e na qual Ademir, como outras pessoas, terá intervindo, para as separar. O despacho de acusação refere que Ademir segurou pelos braços a namorada de AP para a afastar da contenda, ao que esta lhe gritou “preto do caralho, sai daqui filho da puta!”. De seguida, ainda segundo o despacho, AP, que estava a trabalhar na discoteca, saiu da mesma e, “gesticulando vigorosamente, com os punhos cerrados e tendo batido duas vezes com os punhos no peito afirmando ‘não tenho medo de pretos, podem vir quem quiser!’ avançou na direção de Ademir”. Terá sido agarrado por várias pessoas, conseguiu soltar-se e acabou por se aproximar do cidadão cabo-verdiano, trocando ambos algumas palavras..É aqui que, diz a acusação, ocorre a primeira agressão: “O arguido AP atingiu Ademir Moreno [que media metro e setenta] com um a três socos na região da cabeça, ao que Ademir Araújo Moreno reagiu protegendo-se, colocando os braços cruzados na frente da cabeça”. Várias pessoas terão corrido em auxílio do agredido, perseguindo AP, que fugiu dando a volta ao quarteirão e voltando a entrar na discoteca..Ademir, que de acordo com análise toxicológica posterior possuía uma alta taxa de alcoolemia, terá ficado a conversar com um homem a uns seis metros da porta da B-Side, da qual AP voltou a sair, “projetando os peitorais e afirmando ‘eu não tenho medo nenhum de pretos!’”. Prossegue o relato da acusação: “Ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reação deste, e desferiu-lhe um forte murro na área temporal esquerda”..Apanhado de surpresa, Ademir, caiu desamparado, batendo com a parte de trás da cabeça no passeio e perdendo de imediato os sentidos. Apesar de socorrido pelos presentes, que o colocaram “em posição lateral de segurança” e chamaram uma ambulância, as lesões sofridas determinaram a sua morte na tarde do dia seguinte, 18 de março..Ainda segundo o MP, o agressor fugiu do local sem se abeirar de Ademir para ver como estava ou procurar auxiliá-lo..Arguido nega ter usado expressão ‘pretos’ e diz que Ademir agrediu primeiro.AP seria detido na noite de 19 de março e presente, a 21 de março, a interrogatório judicial. Aí, negou ter usado a expressão “pretos” admitindo embora que se dirigira a um grupo de indivíduos “de cor” para certificar que não tinha medo deles, ato para o qual não terá apresentado explicação plausível. O depoimento do arguido terá aliás sido perpassado por alusões ao grupo de pessoas de “cor” – referindo pessoas racializadas que estavam no local –, o que foi estranhado pela magistrada que presidiu ao interrogatório..Quanto às agressões a Ademir, AP justificou as primeiras alegando que fora aquele a começar, agredindo-o com dois socos na boca – sem que, no entanto, evidenciasse marcas desses socos ou os testemunhos recolhidos permitissem confirmar tal relato. Sobre o soco fatal, AP disse que ocorreu porque quando saiu da discoteca pela segunda vez se deparou com Ademir a gritar com a sua namorada. Acrescentou porém que ao desferir-lhe o soco achara que ele se ia desviar – malgrado antes ter admitido que tinha percebido que a vítima não o estava a ver..Como já referido, a magistrada que decretou a prisão preventiva não subscreveu o entendimento do MP quanto à indiciação por homicídio, concluindo que o arguido não representou como possível que com um soco pudesse causar a morte de Ademir, pelo que não aceitou esse risco nem se conformou conscientemente com tal resultado. Ainda assim, a juíza considerou que ao desferir um soco à vítima e causar-lhe a queda, AP podia e devia ter previsto a possibilidade de ela vir a sofrer lesões que lhe viessem a provocar a morte, pelo que o indiciou pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada agravada pelo resultado (morte). .AP requereu a abertura de instrução. Em causa no debate instrutório, marcado para esta sexta-feira, 20 de dezembro, estará se vai a julgamento e, caso afirmativo, por que crimes; se se mantém a acusação de homicídio e as motivações indicadas pelo MP, nomeadamente a de ódio racial. .Edson Araújo com o irmão, que ele descreve como "sempre a sorrir, a alma de qualquer festa"..Do lado de lá do telefone (vive na Suíça) o irmão mais novo de Ademir evidencia inquietação. “Temos medo que este caso seja esquecido, nunca mais se falou do meu irmão. Na altura da morte houve um voto de pesar no parlamento dos Açores [a nove de abril, proposto pelo BE e aprovado por unanimidade] e uma homenagem do governo de Cabo Verde; a nossa família é muito conhecida lá. Mas nunca mais saiu nada nos media. ” .Perguntado sobre os sonhos do irmão, Edson abre um sorriso na voz: “Ele tinha o plano de ir a Cabo Verde – desde que veio para Portugal nunca mais lá voltou – e aos Estados Unidos, onde vive a nossa avó, que tem 92 anos. Somos uma família em que demoramos muito para falecer, sabe? Um dos nossos bisavôs era de Viseu – parte da nossa família é de origem portuguesa – e morreu aos 104.” Ademir, lembra, não chegou a celebrar os 50, ocasião para a qual estava prevista uma grande festa. Em vez disso, o vazio e o luto. E esta espera por uma resposta, uma conclusão. “Quando falo ao telefone com a avó, ela, que está com Alzheimer, pergunta pelo Ademir. Que é que lhe digo?”