Foi quase nove meses após a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março de 2020, que o país acordou para o escândalo e exigiu responsabilidades - um “acordar” na sequência do qual a diretora nacional da polícia de fronteiras foi demitida, se anunciou a extinção desse corpo de segurança e se decidiu a atribuição de uma indemnização de cerca de 800 mil euros à família do morto. E é mais de quatro anos depois que a justiça, tendo em 2021 condenado a nove anos de prisão os três inspetores (Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva) que responsabiliza diretamente pelo óbito, por terem agredido e deixado Ihor mais de oito horas algemado, inicia aquele que pode ser definido como o julgamento póstumo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.Isto porque em causa no julgamento que se iniciou a 16 de setembro, e que esta segunda e terça-feira continua no Juízo Local Criminal de Lisboa, está algo nunca antes visto nos tribunais portugueses: o apuramento de responsabilidades da hierarquia policial e a criminalização do conluio e da omissão de ação num caso de morte em custódia. Desde logo porque um dos crimes em causa é denegação de justiça e prevaricação - ou seja, encobrimento - e dele acusado está o responsável hierárquico máximo da divisão do aeroporto de Lisboa do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) onde, como se costuma dizer, “tudo aconteceu”. Com ele, o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa António Sérgio Henriques, que foi logo - a 30 de março de 2020, quando a Polícia Judiciária deteve os três inspetores entretanto condenados -, demitido do cargo e mais tarde, por proposta da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI), expulso da função pública, por se ter concluído que orquestrara, ao encarregar-se da escrita e supervisão dos relatórios oficiais, o encobrimento da “etiologia criminosa” da morte do cidadão ucraniano, estão também arguidos dois outros ex-membros do SEF. São eles o ex-inspetor coordenador João Agostinho e a inspetora Cecília Vieira, acusados de homicídio negligente por omissão. Por, malgrado o dever, que sobre eles impedia, de agir de modo a obviar à morte de Ihor, nada terem feito - nomeadamente não tendo zelado para que o detido, que, crê a acusação, sabiam estar algemado e isolado numa sala sem videovigilância nem acompanhamento, fosse desalgemado. Enfrentando a juíza Hortense Marques estão ainda dois ex-seguranças (funcionários da empresa de segurança privada Prestibel) do centro de detenção do SEF no aeroporto de Lisboa, Manuel Correia e Paulo Marcelo.Estes últimos estão acusados de sequestro, por terem, confessadamente (admitiram-no no julgamento dos três inspetores, em que foram testemunhas), manietado Ihor com fita adesiva. Estão igualmente acusados do exercício ilícito de segurança privada.Nas primeiras sessões do julgamento a maioria dos cinco arguidos prescindiu de fazer declarações - só João Agostinho falou, para assegurar que nada viu de “anormal” das duas vezes que, na manhã do dia 12 de março, antes e durante a intervenção dos três inspetores que foram condenados pela morte de Ihor, espreitou para a sala onde o cidadão ucraniano fora colocado. Embora quer no anterior julgamento (o dos três inspetores, no qual depôs como testemunha) quer no atual tenha assumido que notou que o “passageiro” - como eram referidos, na gíria do SEF, os detidos no centro de detenção daquela polícia - estava manietado com fita adesiva (que lhe amarrava os tornozelos), o ex-inspetor coordenador reconheceu simultaneamente que não era suposto isso acontecer e que nada fez para obviar a que acontecesse. Sobre nada ter feito para saber se Ihor fora desalgemado ou para que o desalgemassem (admite que sabia que os três inspetores estavam a algemá-lo), Agostinho, como antes enquanto testemunha, não parece ter uma justificação coerente.Ex-diretora nacional do SEF testemunha na terçaOutro motivo pelo qual este julgamento funciona como julgamento póstumo do SEF é que Cristina Gatões, a diretora nacional dessa polícia ao tempo dos factos (e que passou à disponibilidade, ou seja, à pré-aposentação, por despacho de julho de 2023), foi arrolada como testemunha. No seu depoimento, que está previsto para esta terça-feira, a ex-dirigente deverá ser questionada sobre o que soube, como soube e quando soube e o que fez e não fez - matérias que, como o DN reportou em detalhe, até hoje nunca clarificou cabalmente. Recorde-se que o Ministério Público (MP) ponderou levar Gatões a julgamento pelo crime de denegação de justiça e prevaricação - o mesmo pelo qual é arguido o seu antigo inferior hierárquico Sérgio Henriques -, por não ter comunicado de imediato à IGAI, mal teve dela conhecimento, a morte de Ihor ("Em caso de morte da pessoa detida deverá o comandante do estabelecimento policial comunicar imediatamente o facto ao Ministério Público, à Inspeção-Geral da Administração Interna e ao familiar mais próximo conhecido", decreta o despacho 5863/2015). O crime em causa, previsto no artigo 369º do Código Penal (CP), é cometido pelo funcionário que, "no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce", sendo punido com pena de prisão até dois anos.O MP desistiu da acusação por considerar que “mesmo que [Gatões] tivesse comunicado a morte no próprio dia à IGAI, o resultado seria sempre o mesmo.” Ou seja, que a IGAI não iria efetuar qualquer investigação da morte, porque a comunicação que o SEF lhe faria mais cedo seria igual à que fez por ofício a 17 de março (e, diz Gatões, por telefone à inspetora geral da Adminstração Interna, Anabela Cabral Teixeira, no dia 16): que Ihor morrera de “causas naturais”.Revisitemos os factos: a então diretora nacional assume que foi informada por Henriques do óbito pouco tempo após aquele ter ocorrido e, como declarou à IGAI quando ali foi ouvida no âmbito do inquérito disciplinar ao inspetor-coordenador João Ataíde, enviou de imediato uma SMS ao ministro da tutela (Eduardo Cabrita). Mas só cinco dias depois, a 17 de março, terça-feira (a morte ocorreu a uma quinta), enviaria a comunicação à IGAI a dar conhecimento do óbito. Tal como no reporte efectuado pelo SEF no dia do óbito ao MP e à Embaixada da Ucrânia, a morte é, no ofício enviado à IGAI, atribuída a causas naturais. Mas, como o DN revelou, nesse mesmo dia 17 de março a Polícia Judiciária já iniciara a investigação do caso - por ter recebido, a 14 de março, uma denúncia anónima na qual se descrevia o crime (inclusivamente nomeando dois dos inspetores depois condenados por agredir Ihor), e um aviso do médico que autopsiou o cidadão ucraniano de que este não morrera de “causas naturais” - alocando-o à Brigada de Homicídios. A PJ já estivera até, a 16 de março, nas instalações do SEF do aeroporto de Lisboa, sendo recebida por Sérgio Henriques; e no dia 17 foram, da Brigada de Homicídios, enviados emails para quer a direção de Fronteiras de Lisboa (ou seja, para Sérgio Henriques) quer para a Direção Regional de Lisboa do SEF pedindo as imagens das câmaras de vigilância e a lista das pessoas que tinham estado no centro de detenção onde Ihor morreu - o Espaço Equiparado a Centro de Instalação (EECIT) de Lisboa. E, a 19 de março, um email do diretor de Fronteiras de Lisboa (Sérgio Henriques) para a Polícia Judiciária, que o DN encontrou no processo criminal, incluia a diretora nacional nos destinatários.Mas Cristina Gatões garante não ter tido conhecimento de nada disso, nem sequer do email para a PJ de que foi destinatária. Terá estado 18 dias - de 12 de março a 30 de março - completamente alheada da existência de uma investigação de homicídio que tinha como alvo membros da sua polícia e durante a qual forem efetuados várias inquirições de membros do SEF e de funcionários da empresa segurança privada contratada pelo SEF.Aliás, na primeira vez que falou publicamente sobre o caso, numa entrevista à RTP, em novembro de 2020, a diretora nacional do SEF garantiu só ter sabido o que se passara - e que classificou como uma “situação de tortura” - quando, precisamente, a PJ deteve os três inspetores envolvidos nas agressões, a 30 de março.Seria demitida menos de um mês depois, a 9 de dezembro, quatro dias após o DN ter revelado que estava nos destinatários do email de 19 de março.Houve logo suspeitas de violência, mas não foram investigadas pelo SEFO total desconhecimento de Cristina Gatões da existência de uma investigação de homicídio é ainda mais surpreendente quando o inspetor-coordenador João Ataíde, à época a dirigir o Gabinete de Inspeção do SEF (supostamente existente para averiguar situações como a da morte de um detido), admitiu à IGAI que soube logo a 16 de março, por Sérgio Henriques, que a PJ estava a investigar o óbito, e que no dia seguinte reuniu com Gatões para falar das circunstâncias em que aquele ocorrera. Ataíde, que também está arrolado para testemunhar nesta terça, foi encarregado por Gatões de visionar as imagens de videovigilância do EECIT para verificar se havia indícios de maus-tratos (o que, admite, fez em fast-forward no dia 16, acompanhado por Sérgio Henriques). O motivo do pedido a Ataíde foi nestes termos explicado por Gatões nas suas declarações à IGAI: “Entendi que seria útil para a IGAI a informação sobre se nós tínhamos ou não... Se tinha havido alguma violência (…). Alguém me contou que ele [Ihor] se tinha atirado ou batido num armário”. Informação que, explicou, a teria alertado para a possibilidade de ter podido haver "algumas agressões ou alguma violência”. A diretora nacional do SEF teria então suspeitas de que poderia ter existido violência sobre o morto e, ao invés de decidir a abertura de uma averiguação, pediu, antes de comunicar o óbito à IGAI, que as imagens de videovigilância fossem examinadas. Terá primeiro solicitado a Sérgio Henriques que procedesse ao visionamento mas, como este lhe tivesse dito que não tivera tempo, requereu o mesmo a João Ataíde. E Ataíde não viu nada digno de ser averiguado na procissão de gente que durante a noite de 11 para 12 de março e a manhã deste último dia entrou e saiu da sala onde Ihor fora "isolado" - a única sem videovigilância no centro de detenção e onde acabaria por morrer. Assim, comunicou à direção nacional que não encontrara "indícios objetivos da existência de situações anómalas".Outra questão por esclarecer é por que motivo Cristina Gatões, que disse à IGAI ter pedido o relatório de ocorrência (RO) relativo a Ihor - trata-se de uma espécie de “diário” no qual deveriam ser anotadas pelos inspetores do SEF todas ocorrências relativas a cada detido - logo no dia 12, e não se lembrar quando o recebeu, se a 13 ou depois, acaba por, como reconheceu ao MP, só ter tido acesso a ele a 16, sem que esse facto lhe determine uma averiguação. É que não só é suposto os RO estarem “em dia” (o de Ihor só estava, no momento da sua morte, preenchido até meio de 11 de março), como a acusação a Sérgio Henriques se baseia, precisamente, na ideia de que o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa “cozinhou” o RO para encobrir o que realmente se tinha passado, cozinhado que só ficou pronto na segunda-feira 16 de março.Cristina Gatões não terá achado estranho que o RO relativo ao morto não lhe fosse entregue no dia do óbito ou, o mais tardar, no dia seguinte? Não quis saber porquê? E, quando o leu - afirmou à IGAI que o leu “um milhão de vezes” - não reparou que era ali dada nota de que o cidadão ucraniano fora algemado, mas não de que fora desalgemado?De resto, sendo a regra, ao algemar alguém, como explicou à IGAI um inspetor formador do SEF, que o algemado fique acompanhado, é óbvio da leitura do RO que tal não aconteceu - o que desde logo devia implicar à diretora nacional que houvera violação das normas e dos direitos do detido e determinar-lhe a instauração de um inquérito interno. Mas, como referido, só viria a fazê-lo a 30 de março, aquando da detenção dos três inspetores suspeitos de terem matado Ihor. Inquérito de imediato, por determinação do ministro da Adminstração Interna, Eduardo Cabrita, alocado à IGAI.Não podia Ihor Homeniuk, que na manhã de 10 de março de 2020, em vésperas do decretar do confinamento devido à epidemia de Covid 19, chegou, vindo da Ucrânia, ao aeroporto de Lisboa, com o objetivo confesso de "trabalhar", adivinhar que não mais dali sairia. E que a sua tragédia pessoal levaria à extinção da polícia de fronteiras portuguesa, a mudanças na legislação - como a obrigatoriedade de que todos os mortos em custódia ou na sequência de intervenção policial sejam sujeitos a autópsia - e ao primeiro julgamento em que são examinadas as responsabilidades da hierarquia num caso de violência policial.