A um mês do fim da fase Charlie, a mais crítica de incêndios, o número de detidos por suspeita de crime de incêndio já tinha ultrapassado as quatro dezenas até ao dia 27 de agosto. No âmbito da Polícia Judiciária (PJ) foram 20 as detenções realizadas - menos 11 do que em igual período do ano anterior. Já a Guarda Nacional Republicana (GNR) foi responsável por 24 detenções até 18 de agosto, menos 33 do que em agosto de 2023. Pelo menos, 44 indivíduos estão, neste momento, a contas com a justiça por suspeita de terem provocado incêndios, por negligência ou dolo..Do lote dos 20 suspeitos na esfera da PJ, “cerca de um terço são reincidentes”. Significa que seis “já passaram pelo sistema como suspeitos, acusados ou condenados”, disse ao DN o diretor-nacional adjunto da PJ, Carlos Farinha. Aquele responsável admite mesmo que o nível de reincidência é ligeiramente superior ao de outros anos..Entre outras tendências que a investigação crimininal já permitiu apurar ao longo deste ano, Carlos Farinha destaca a presença de “mais mulheres entre os detidos”. Elas representam agora um quinto do universo de presumíveis incendiários, quatro em concreto. No âmbito das detenções de presumíveis incendiários para serem ouvidos em tribunal, nota-se ainda que os juízes estão a decretar mais prisões preventivas do que para os outros crimes. Segundo a PJ, “40% daqueles casos resultaram em prisão preventiva, superior à média de 25% a 30% de outros processos tratados pela PJ e acima dos 15% a 20% de prisões preventivas aplicadas para a criminalidade geral”..Desde há vários anos, a legislação permite o cumprimento da pena de forma alternada para os incendiários, com a privação da liberdade no período do verão, justamente o mais crítico para os fogos. Mas, segundo Carlos Farinha, o sistema judicial “ainda não interiorizou esse mecanismo, que nem sempre é aplicado”..Os casos apurados até agora permitem também concluir que, para além da reincidência, há quem não se contente em atear apenas um fogo. “Em várias das detenções verifica-se que os suspeitos estão ligados não a um, mas a quatro, cinco, seis, sete eventos”, indicou o diretor-nacional adjunto da PJ. Por outro lado, também se nota “uma maior futilidade no motivo” e uma motivação consciente, com “elevado nível de organização para obter um resultado danoso”..Carlos Farinha evita estabelecer um perfil-tipo do incendiário, se bem que, de acordo com estudos publicados, numa grande parte dos casos, são homens com problemas de saúde mental, abuso de álcool ou padrão de conflitualidade, e que costumam atuar relativamente perto do local onde reside. Mas, “noutros casos, o perfil do autor do crime escapa completamente à lógica, obrigando a uma investigação mais complexa e demorada”..Novas estratégias dão resultados.No conjunto das duas forças policiais (PJ e GNR) registaram-se em agosto menos cerca de 40 detenções do que em igual período do ano passado. “A quebra no número de detenções está diretamente relacionada com a redução do número de ignições”, explica aquele responsável. Com efeito, até 25 de agosto tinham sido registadas 4114 ocorrências, um valor muito inferior às mais de 7 mil ignições no ano passado..Mas ambas as situações estão, para lá da meteorologia, ligadas a “um conjunto de alterações nos comportamentos individuais e na estratégia de prevenção, combate e de investigação que ocorreram, sobretudo, a partir dos incêndios de 2017, em que morreram mais de 100 pessoas”, considera o responsável da PJ. “Foi um trauma nacional, houve coisas que correram mal e é algo que assumimos todos que não se pode repetir.”.Desde 2018, “há uma nova cultura de cooperação inter-institucional que está a dar os seus frutos”, admite o diretor-nacional adjunto. Para além da PJ e da GNR atuam em articulação próxima o ICNF (Instituto de Conservação das Florestas), a ANPC (Autoridade Nacional de Proteção Civil) e a AGIF. E há também uma recomendação da Procuradoria-Geral da República para que os processos relacionados com este tipo de crimes não parem durante as férias judiciais, o que estará a ser “razoavelmente” cumprido..Do lado do fator humano, é também inegável que há agora “uma maior consciência do risco do uso do fogo”, também pelo contributo das campanhas de prevenção. E nunca é demais lembrar que com os baixos níveis de humidade, cada vez é mais difícil combater um incêndio, pelo que é mesmo na prevenção que está o ganho. Numa parte mais reduzida dos casos, as ignições não estão necessariamente relacionadas com negligência, mas com curto-circuitos em cabos de alta tensão, faíscas lançadas pelos travões de comboios ou sobreaquecimento de painéis solares, por exemplo..“A nossa malha de deteção está a melhorar, nomeadamente com os sistemas de vigilância e as torres de vigia da GNR”, diz..Do ponto de vista da investigação criminal, “a qualidade da investigação também melhorou, com mais recursos tecnológicos à disposição, desde a georeferenciação, à possibilidade de interseções telefónicas e meios de vigilância eletrónica ”, exemplificou Carlos Farinha. .Um exemplo de investigação.Foi graças aos recursos tecnológicos e à possibilidade de cruzar dados com grande rapidez que a PJ conseguiu desvendar, por exemplo, o crime ocorrido há dois anos relacionado com uma área ardida de 60 mil hectares no distrito de Coimbra, com vários acendimentos seguidos, num total de 16 incêndios. Muito longe do “perfil-tipo” do homem com vida problemática ou com visíveis problemas de saúde mental, o autor, que só foi recentemente condenado, é um engenheiro eletrotécnico, sem referências negativas. “A partir dos artefactos incendiários encontrados no local, com algum nível de sofisticação, foi possível à PJ perceber que só eram vendidos num tipo muito específico de estabelecimento, o que ajudou a apertar a área de investigação”. Mesmo assim, “a conclusão do caso foi demorada, porque não tinhamos qualquer indício do autor nem suspeitas, tivemos de ler os factos e os artefactos que tinhamos e investigar”. O autor do crime usava um sistema retardador que ativava uma ignição a cada 12 ou 14 horas. O autor foi condenado em primeira instancia, recorreu, mas viu confirmada a sentença, tendo alegado uma depressão na sequência da morte do pai e sustentado que ver o fogo o acalmava. Uma justificação que não convenceu os investigadores..A investigação ao recente incêndio da Madeira, que consumiu 5.104 hectares ao longo de duas semanas, também não tinha como ponto de partida os ‘suspeitos do costume’, tendo de ater-se aos indícios encontrados no local. A PJ acabou por concluir, na última quinta-feira, que na origem do violento incêndio estiveram foguetes lançados numa festa privada, na Ribeira Brava, estando identificados três suspeitos. Ao contrário do Continente, a Região Autónoma da Madeira não proíbe o lançamento de foguetes no período crítico de incêndios. É certo que a região não tem um histórico de grandes incêndios, mas a dimensão deste caso poderá obrigar a repensar a estratégia..Proprietários de terrenos foram alvo de 1708 coimas.Falta de limpeza de terrenos foi mais penalizada nos distritos de Santarém, Braga e Castelo Branco.A Guarda Nacional Republicana (GNR) aplicou um total de 1708 contraordenações a proprietários por incumprimento da obrigatoriedade de limpeza dos terrenos até ao fim do prazo legal, que terminou a 31 de maio. Santarém, Braga e Castelo Branco foram os três distritos em que os proprietários mais foram multados por não fazerem a sua parte na prevenção de fogos florestais..Desde fevereiro deste ano que, por despacho das secretarias de Estado da Proteção Civil e da Conservação da Natureza e Florestas, estavam identificadas 991 freguesias prioritárias para fiscalização da gestão de combustível entre 1 e 31 de maio (entretanto adiado para junho), no caso de proprietários de terrenos rurais próximos de edifícios ou em aglomerados confinantes com espaços florestais..Findo aquele prazo, uma primeira verificação dos militares permitiu fazer 10.252 sinalizações por falta de limpeza dos terrenos, que não deram logo origem à aplicação de contraordenações. Foi nos distritos de Leiria, Viseu e Coimbra que houve mais sinalizações, mas não foram os mais afetados por contra-ordenações , o que significa que o primeiro contacto com a GNR cumpriu o efeito dissuasor..No seu primeiro balanço, apresentado na última semana, a GNR registou até 18 de agosto, 1.912 crimes de incêndio florestal, mais de metade do que os 3.299 de todo o ano passado, e efetuou 24 detenções..No âmbito da Operação Floresta Segura 2024, aquela força de segurança “realizou 6.139 ações de sensibilização, tendo alcançado 99.419 pessoas com o objetivo de evitar comportamentos de risco, sensibilizar para a importância de adoção de medidas de autoproteção e uso correto do fogo, por parte da comunidade”, disse a porta-voz da GNR, Mafalda Gomes de Almeida, citada pela Lusa.