Uma promessa de trabalho em Portugal com ordenado, alojamento, alimentação e todas as condições previstas na legislação laboral, mediante pagamento. Era esta a promessa a “centenas de imigrantes” do sul da Ásia, Timor Leste e países africanos, que foram vítimas de um esquema criminoso em que são suspeitos dez militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) e um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP). O modus operandi era clássico dos casos de tráfico humano: ao chegarem ao país, nada do que era prometido era cumprido e, por mais que trabalhassem até à exaustão, pouco ou nada de dinheiro recebiam. Muitos deles tinham de recorrer a pedir esmolas nas ruas para conseguirem ter comida. Era desta forma que, sabe o DN, atuava o grupo criminoso desmantelado ontem pela Polícia Judiciária (PJ) na Operação Safra Justa. Segundo o Ministério em Público, são pelo menos quatro os crimes pelos quais os suspeitos são investigados: auxílio à imigração ilegal, tráfico de pessoas, corrupção ativa e passiva e o crime de abuso de poder. A suspeita é de que o “papel” dos agentes de autoridade eram responsáveis pelo transporte dos imigrantes e, principalmente, por ameaças físicas e psicológicas, afirmou ao jornal uma fonte ligada à investigação. “Um clima de medo e terror”, definiu. O comunicado oficial da PJ confirma que as vítimas eram mantidas “sob coação através de ameaças, havendo mesmo vários episódios de ofensas à integridade física”. A Judiciária, a partir dos meses de investigações e diligências foi possível “obter indícios e elementos incriminatórios, bem como traçar o quadro geral do funcionamento deste grupo violento, de estilo mafioso”.Além disso, o próprio MP atribui aos suspeitos a missão de evitar que as vítimas denunciassem os crimes. “Estes suspeitos ameaçavam ainda aqueles cidadãos, dando-lhes a entender que a queixa às autoridades não seria uma alternativa viável para reagir aos abusos de que foram e/ou estão a ser alvo”, pontua o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) em comunicado.Os imigrantes eram instalados em alojamentos precários ou casas sobrelotadas. Além dos militares da GNR e do agente da PSP, são alvo desta investigação da PJ empresários que montavam empresas de fachada para as contratações, envolvendo também fraude fiscal e branqueamento de capitais. No total, foram cumpridos 50 mandados de busca e 17 mandados de detenção, em Beja, Portalegre, Figueira da Foz e Porto. O DN sabe que a operação apanhou os três chefes máximos da PJ, GNR e PSP, em Marrocos numa reunião da Interpol. Contactados, nem o diretor Nacional da PJ Luís neves, nem o comandante-geral da GNR, Ribeiro Veloso, nem o diretor Nacional da PSP, Luís Carrilho, quiseram comentar a operação.Fragilidade e corrupçãoDe acordo com o MP, os investigados “aproveitaram-se da situação de fragilidade (documental, social e económica) de cidadãos originários de países terceiros, na sua grande maioria indocumentados, para daí retirarem avultadas vantagens económicas”.E o caso da Operação Safra Justa não é o único recente em que agentes públicos são investigados por corrupção e outros crimes em que os imigrantes são vítimas. Recentemente, a 19 de novembro, a PJ deteve duas funcionárias administrativas de uma Unidade de Saúde Familiar por suspeitas de terem sido responsáveis pela inscrição fraudulenta de milhares de imigrantes no Sistema Nacional de Saúde (SNS). Segundo a Judiciária, estas mulheres serão “responsáveis pela inscrição fraudulenta de milhares de imigrantes no Sistema Nacional de Saúde”, mais especificamente “recebiam a informação das pessoas que tinham de inscrever, sem preencher os critérios [como o comprovativo de morada] e eram inscritas em massa. Estamos a falar de um universo enorme, conseguimos perceber que terão inscrito, num ano e meio, cerca de 10.000 pessoas”.Esta ação foi mais uma etapa da Operação Gambérria, de combate a imigração ilegal, desencadeada inicial em maio. Foram detidas 13 pessoas, uma delas uma técnica superior do ministério dos Negócio Estrangeiros, que encontra-se em prisão preventiva desde então. No livro O Nexo Corrupção-Migração - Que desafios à proteção dos Direitos Humanos?, um texto destaca que os imigrantes são um alvo da corrupção pela sua condição de fragilidade. “Investigações, como a de Grant (2005), identificaram como causas subjacentes e facilitadoras do tráfico de seres humanos, situações em que os Direitos Humanos não são protegidos porque o Estado de Direito é débil e/ ou a corrupção opera nas instituições governamentais” e que “nesta toada, pode-se já aferir que a corrupção se pode tornar um obstáculo a mais para a garantia e proteção dos Direitos Humanos dos migrantes”.E há ainda o efeito contrário, de acordo com os mesmos investigadores. “Geralmente, os migrantes são vistos não só como potenciais iniciadores de comportamento corrupto, mas também como vítimas de práticas corruptas no país de acolhimento, independentemente do facto de terem ou não um comportamento corrupto”. Além do fator corrupção, quando há o envolvimento de violência física e agentes de autoridade. Recorda-se que ganhou repercussão um caso em Vila Nova de Mil Fontes, em que quatro militares da GNR foram condenados por sequestro, humilhação e tortura de quatro imigrantes do sul da Ásia. Na ocasião, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa comentou publicamente o assunto e pediu que os imigrantes fossem respeitados. Em 2021, foi lançado um Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, desenvolvido vido pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI), que inclui sessões de sensibilização com polícias e militares da Guarda.O DN chegou a acompanhar, em 2024, uma destas sessões, que teve lugar em Braga, onde foi deixado claro que comportamentos racistas e xenófobos não teriam lugar nas forças de segurança em Portugal. O DN perguntou ao IGAI como está o andamento destas sessões e foi informado por fonte oficial que “até à presente data, foram feitas 10 ações de formação (em Setúbal, Santarém, Lisboa, Leiria e Portalegre), estando, ainda para este ano, prevista a realização de mais duas ações de formação em Évora”. O jornal questionou as datas exatas e o número de participantes, mas não teve resposta até o fecho desta edição.amanda.lima@dn.ptvalentina.marcelino@dn.pt