A 3 de outubro de 2014, João, então com 34 anos, perdeu um olho e ficou com a face deformada devido a agressões perpetradas por elementos do Corpo de Intervenção da PSP. Apesar de ter ficado provado que a agressão policial ocorreu, os agressores não sofreram, graças à ausência de identificação individual nas respetivas fardas e a falsidade de testemunho — todos os membros da equipa afirmaram nada ter visto —, qualquer sanção, criminal ou disciplinar, e o respetivo chefe foi até promovido na PSP. João, obrigado a pagar as custas das ações criminais, não foi, mais de 11 anos após os factos, alvo de qualquer reparação por parte do Estado.O seu pedido de indemnização arrastou-se nos tribunais administrativos até que em maio deste ano o Ministério Público (que no foro administrativo funciona como defensor do Estado), considerando “muito elevada” a “previsão da condenação do Réu Estado”, se pronunciou a favor da suspensão do processo e de um acordo no qual João receberia 185 mil euros. Mas para que o pagamento se efective é preciso que a ministra da Justiça, Rita Júdice, exprima a sua concordância, o que até agora, apesar de ter sido instada pelo tribunal a responder, não sucedeu.Esta terça-feira, a juíza que preside à ação fez o último aviso à governante, dando-lhe 10 dias para responder, sob pena de proferir sentença. No despacho em causa, faz referência à carta dirigida à ministra a 17 de setembro na qual a magistrada dizia considerar que “seria de todo proveitoso para as partes que os presentes autos terminassem com uma transação” (ou seja, no mencionado acordo) e advertia: “A verdade é que encontra-se largamente ultrapassado o prazo legal de suspensão da instância, não podendo o Tribunal mantê-la, estando, por isso, reunidas as condições para que a mesma seja levantada e proferida sentença, motivo pelo qual solicita-se a V.Exa se digne mandar informar em que estado se encontra a proposta de acordo oportunamente apresentada pela Procuradoria Geral da República”.A PGR, como já referido, fez a proposta há quase seis meses, com a procuradora-geral adjunta coordenadora dos tribunais administrativos e fiscais do Norte e Centro a sublinhar que “o teor da prova documental, designadamente, o processo crime e o processo disciplinar instaurado pelo Ministério da Administração Interna, confirma a veracidade dos factos ilícitos e consequentes lesões sofridas pelo Autor [João], não tendo sido possível apurar da identificação dos agentes da PSP que agrediram fisicamente o Autor, o que permite concluir pela verificação de forte e ampla possibilidade da condenação total do Réu Estado (…)”. Neste acordo, João, que pedira cerca de 190 mil euros, mais juros de mora, ao Estado e aos 11 membros da equipa do Corpo de Intervenção que estavam presentes aquando da agressão, desiste dos juros de mora (os quais, de acordo com o cálculo do MP, ultrapassavam 56 mil euros em maio de 2025) e das remunerações que não auferiu durante os 633 dias em que esteve em recuperação. De acordo com a sua representante legal, Sónia Carneiro, João, que nunca quis falar publicamente sobre o assunto e sofreu de depressão profunda na sequência das agressões, só deseja que o processo se encerre.Encobrimento “em comunhão de esforços” As agressões, segundo ficou provado no processo criminal, ocorreram quando João acabara de chegar a Guimarães, com o irmão e amigos, para assistir a um jogo de futebol em que participava o se clube (o Boavista). Ao sair do autocarro que o transportara, acompanhado de uma amiga, quis esperar pelo irmão e foi insultado — “Não podes estar aí, toca a andar filho da puta”— por um dos agentes do Corpo de Intervenção que ali estavam para enquadrar os adeptos. João pediu calma, explicando que só aguardava o familiar, mas foi empurrado, lançado ao chão e agredido, sem que ninguém, de entre os adeptos presentes, conseguisse socorrê-lo, impedidos pela restante equipa do Corpo de Intervenção (que era composta de 11 elementos). No acórdão de primeira instância, do Juízo Central Criminal de Guimarães, exarado a 7 de novembro de 2019, lê-se: “Do julgamento resultou, sem margem para dúvida, que um agente da equipa 42 do Corpo de Intervenção [CI] sai da linha e agride o assistente João sem que para tal houvesse qualquer justificação, ao que após mais dois agentes da equipa 42 do CI também saem da linha e igualmente agridem o mencionado ofendido, momentos depois mais alguns (em número não concretamente apurado) agentes da equipa 42 do CI igualmente saem da linha inicial e formam um semicírculo em volta do ofendido e dos outros três agentes do CI que continuam a agredir o sobredito ofendido, impedindo assim que outras pessoas pudessem impedir as agressões e/ou auxiliar esse ofendido. (…) Os arguidos em comunhão de esforços encobriram a identidade dos agentes que praticaram os factos exarados na acusação. (…) Os arguidos claramente demonstraram em julgamento não terem ainda interiorizado a gravidade da conduta que foi empreendida por alguns (ou eventualmente todos) os membros da equipa 42 do CI e das consequências que da mesma resultaram. Se (em tese) interiorizaram a gravidade então manifestaram um profundo desprezo pela normatividade jurídico-penal. De qualquer modo tal é manifestamente incompatível com o exercício das funções policiais que exercem. A sociedade depende da polícia para os proteger e garantir a sua segurança, não sendo admissível que alguns membros policiais façam precisamente o contrário.”Apesar de do acórdão se retirar a conclusão de que os arguidos mentiram — por afirmarem nada ter visto — e nada fizeram para impedir a agressão e/ou socorrer o agredido (foi um agente da PSP não pertencente ao CI que “furou” a barreira e chamou uma ambulância), não só foram absolvidos do crime de que vinham, em co-autoria, acusados (ofensa à integridade física grave, qualificada, cuja pena é de três a 12 anos de prisão), como nenhum foi acusado de falsidade de testemunho ou omissão de auxílio. O mesmo (absolvição) sucedeu quando o Ministério Público e João recorreram da decisão de primeira instância para o Tribunal da Relação de Guimarães. Ausência de identificação permite absolvição de “delinquentes” O motivo invocado para as absolvições foi sempre o mesmo: a impossibilidade de, devido ao fardamento sem qualquer sinal que os distinguisse, identificar os agressores e os que fizeram barreira para “proteger” os que estavam a agredir. Ao contrário do que pretendia o MP, que pedia a condenação de toda a equipa, sustentando que toda participara no crime, ou agredindo ou assegurando que ninguém interrompia a agressão, os juízes consideraram que havia a possibilidade de alguns dos arguidos não terem participado do crime (mesmo se nada fizeram para o impedir), pelo que se impunha absolver todos. A mesma lógica presidiu ao arquivamento, em 2022, do inquérito disciplinar da Inspeção-Geral da Administração Interna.Em todas as decisões, porém, se censura a inexistência de identificação na farda dos membros do Corpo de Intervenção. “Uma falha muito grave que facilita a ocultação da identificação dos delinquentes que desonram a farda que vestem e mancham a honorabilidade devida à Corporação”, afirma o acórdão da primeira instância.Da mesma indignação se faz eco o acórdão da Relação, de 11 de outubro de 2021: “Independentemente do que resulta do regime legal vigente, não se compreende a ausência de identificação no uniforme dos agentes do Corpo de Intervenção já que não se vislumbra que essa ausência seja necessária, nem do ponto de vista da operacionalidade daquele corpo, nem para segurança dos seus elementos. A história ensina-nos que em certo tipo de operações militares de contra-guerrilha, quer os oficiais quer os demais graduados das forças regulares retiravam os galões e as divisas para não se tornarem alvos preferenciais por parte da força guerrilheira. Mas, nem o Corpo de Intervenção da PSP é um corpo militar, nem as intervenções policiais de manutenção da ordem pública podem ser assimiladas a operações militares, nem, muito menos, os cidadãos podem ser confundidos com o inimigo.”Também a inspetora-geral da Administração Interna, à época a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, reputando os factos provados como sendo de "grande gravidade, representando um uso excessivo, desadequado e até desnecessário da força", lamentou, no despacho no qual propõe o arquivamento dos inquéritos disciplinares, "que quem assim agiu, sendo agente de autoridade e causando gravíssimas e permanentes lesões, não tivesse assumido a responsabilidade pelos seus atos", e não ter sido possível apurar "quem agrediu a vítima, nem a identidade ou número de agentes que viram a agressão e nada fizeram para a impedir". Para concluir que a decisão de arquivamento, "no mesmo sentido daquela que foi tomada pelos tribunais em sede de processo criminal, fere o Estado de Direito e coloca em causa a confiança dos cidadãos nas suas instituições".E explica porquê: "A Polícia serve para garantir a segurança. Serve para proteger os cidadãos e o normal funcionamento das instituições. O uso de uma farda representa que aquele homem ou mulher está investido de poderes que lhes são conferidos pelo Estado. Não são poderes seus, que possa usar arbitrariamente. Representa uma enorme responsabilidade e não justificação para o uso da força. A total impossibilidade de identificar a forma de atuação de cada um dos polícias resulta de, na época, não exibirem qualquer elemento identificativo nas suas fardas. Esta situação não é compatível com o princípio democrático da responsabilidade uma vez que impossibilita um cidadão lesado por força de atuação policial de identificar o autor da lesão."Em consequência, a então dirigente da IGAI considerou imperioso proceder a "uma recomendação no sentido de que os agentes de autoridade atuem sempre, mesmo em cenário complexo, com identificação visível, que se admite possa ser com aposição de um número, por forma a permitir a futura identificação". Mas a recomendação, datada de janeiro de 2024, não foi ainda acatada pelas polícias, facto aliás relevado pelo mais recente relatório do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, no qual se exprime preocupação com o facto, recomendando que sejam tomadas medidas para que os agentes policiais portugueses ostentem, quando em serviço, identificação individual claramente visível.