"É necessário um inquérito nacional sobre assédio sexual no meio académico"
Ouvir mulheres, com muitos anos de academia, sobre assédio sexual. Não apenas como "potenciais vítimas, mas igualmente como bystanders, no sentido de testemunhas e/ou detentoras de cargos com poder de decisão perante denúncias quer da parte de estudantes quer de docentes".
Foi esta a ideia que ocorreu a Maria Helena Santos, Júlia Garraio e Carla Cerqueira, três investigadoras em estudos de género, depois de em abril de 2022 o DN ter revelado que quando na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) se criou um canal de denúncias permitindo o anonimato, 10% dos professores foram denunciados por assédio moral ou sexual.
Conscientes, como mulheres, da existência de assédio sexual desde a pré-adolescência, estas investigadoras, de 54, 52 e 40 anos, respetivamente, e de três instituições diferentes - do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE/ Instituto Universitário de Lisboa, do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias da Universidade Lusófona -, aperceberam-se, com o ocorrido na FDUL, da necessidade de mais investigação sobre "um fenómeno que está pouco ou quase nada estudado em Portugal".
É que, frisam, havendo "uma investigação sólida sobre assédio sexual, nomeadamente no contexto laboral, e que se centra nas mulheres como vítimas", a pesquisa sobre o que se passa na academia tem sido bem menos densificada.
"O nosso projeto", explicam ao DN, "teve como objetivo aprofundar o conhecimento sobre o assédio sexual na academia e perceber se o movimento #metoo contribuiu ou não para uma maior consciencialização do problema. Para tal, optámos por realizar entrevistas individuais a mulheres de diversas gerações e áreas científicas com posições profissionais estáveis na academia portuguesa, que lhes proporcionam um conhecimento aprofundado do seu funcionamento e dinâmicas internas."
Durante cinco meses, ouviram 18 mulheres ligadas a universidades de Lisboa, Coimbra, Porto e Minho, de diversas gerações - dos 40 aos 70 anos - e áreas científicas, procurando "uma diversidade de olhares e experiências sobre o assunto".
Findo o trabalho de campo e na fase de redação, aceitaram falar, numa altura em que a atenção do país se volta a focar no fenómeno devido ao "caso Boaventura Sousa Santos/CES", sobre os dados provisórios deste estudo, ao qual deram o nome "Assédio sexual na academia portuguesa na era #metoo". E que consideram trazer "resultados importantes, quer sobre as variadas formas de assédio sexual ocorridas na academia portuguesa, quer sobre as dificuldade e os dilemas que se colocam às mulheres em lugares de poder perante as denúncias."
Todas as entrevistadas têm uma ideia determinada do que constitui assédio? Essa ideia varia muito no conjunto das entrevistas?
Sim, varia muito e notámos também que muitas têm consciência de que não existe uma definição comum do que é assédio. Começa logo pelos atos e situações que nos relataram quando perguntámos se foram vítimas de assédio ou se testemunharam situações de assédio sexual na academia. Várias entrevistadas refletiram precisamente sobre o facto de o assédio sexual não ser algo fácil de definir no sentido de haver um entendimento partilhado por toda a sociedade.
Que tipo de definições dão de assédio?
Referiram situações que podem ser definidas como agressão sexual (beijos e toques forçados com violência), outras como coação e extorsão sexual, envio de mensagens de teor sexual, e toques subtis. Algumas entrevistadas situam o assédio nas relações de poder, outras relataram situações de importunação sexual entre colegas e mesmo da parte de alunos/as (insistência em acompanhar a professora até ao carro à noite, por exemplo).
Outras situações relatadas configuram abuso de poder: relações consensuais entre professores e alunas em que, após o fim da relação, o professor tenta represálias ou usa o seu poder institucional para fazer com que a aluna deixe a instituição. Há uma grande variedade de situações que nos foram relatadas sob o guarda-chuva do assédio sexual. Notámos também que mulheres com experiências prévias de agressão ou assédio sexual tendem a considerar mais facilmente como assédio situações muitas vezes desvalorizadas socialmente como "comentário ou comportamento despropositado" (por exemplo, envio de mensagens com emojis de beijos em contexto profissional). As subjetividades moldadas por experiências prévias, por vezes traumáticas, devem também ser tidas em conta no que muitas mulheres sentem como sendo assédio sexual.
Encontraram algum padrão, no que respeita a idade, área, formação, ou outro, no que respeita à consciência quanto à relevância/incidência/gravidade do fenómeno no meio académico?
Essa é uma das surpresas. Poderíamos esperar um padrão: que as mulheres mais jovens e das áreas dos estudos feministas e de género revelassem uma maior sensibilidade para o problema. Os resultados demonstram uma maior complexidade. Ainda só temos resultados provisórios, mas a questão da idade não parece ser marcante, o que sinaliza, certamente, que o feminismo tem, em Portugal, uma presença forte de várias décadas.
Algumas das entrevistadas mais velhas são feministas há muito e para elas o assédio sexual em contexto laboral é uma questão à qual estão atentas. Não precisaram do #metoo para ganharem consciência da dimensão do problema. A área científica tão-pouco parece ser definidora da sensibilidade ao problema. O que verificámos é que é, sem dúvida, entre mulheres das áreas dos estudos de género e estudos feministas que há um conhecimento mais informado sobre assédio, desde logo, sobre os debates na área e a própria dificuldade de encontrar uma definição comum sobre o que significa assédio.
Que ideia demonstraram as inquiridas ter do feminismo?
A pergunta não foi colocada, mas, pelas respostas obtidas, percebe-se que todas as entrevistadas consideram o feminismo positivo e/ou se consideram feministas.
Quando é que elas se deram conta da existência e assédio sexual?
O guião não previa essa pergunta (era apenas sobre assédio sexual no contexto académico), mas algumas entrevistadas falaram de experiências fora da academia, algumas logo no início da adolescência, em que foram confrontadas com situações que definem atualmente como assédio ou abuso sexual, quer da parte de estranhos no espaço público, quer em espaços mais restritos.
Também referiram a existência de assédio sexual noutros locais em que já tinham trabalhado além da academia.
Alguma das entrevistadas desconsiderou o fenómeno?
Não, nenhuma entrevistada desvalorizou o assédio sexual e as suas consequências. O que notámos foi, porém, diferentes perceções do que se configura como assédio e da sua dimensão na academia. Algumas apontaram para a evolução histórica no entendimento do que é assédio e associaram-no às transformações socioculturais e das normas de género das últimas décadas - por exemplo, verbalizaram as diferenças existentes entre a sua geração e a geração dos seus pais. Outras refletiram a partir das suas experiências da revolução sexual e do que consideram ser as suas conquistas em termos de vivências sexuais mais descontraídas. Estas tendem a ver com alguma desconfiança o entendimento das gerações mais novas do que é o assédio. Algumas refletiram também sobre a importância dos códigos culturais de cada região, nomeadamente como, no convívio social, o toque é mais comum nos países do Sul da Europa do que nos do Norte, o que pode levar a interpretações diferentes (e erradas) dos mesmos atos de acordo com as geografias.
Qual a percentagem que considera ter sido alvo de assédio?
Não se trata de um estudo quantitativo. Podemos apenas dizer que quase todas as entrevistadas relataram situações de assédio: poucas como sendo elas as vítimas, a maioria como sendo amiga, colega ou professora de estudantes, doutorandas ou docentes assediadas.
Que consequências tiveram essas situações para as entrevistadas?
Há uma grande variedade de situações e desenlaces. E falamos aqui das entrevistadas que foram assediadas, bem como de situações de assédio de que tiveram conhecimento. Em comum, talvez, apenas o desgaste emocional e ansiedade nas mulheres que passaram por tais situações ou que se envolveram mais diretamente na tentativa de apoiar as vítimas.
Por exemplo?
Algumas mulheres assediadas mudaram de orientador ou de local de trabalho, algumas denunciaram ou tentaram, pelo menos, denunciar. Há outras que não reportaram por receio de serem prejudicadas nas suas carreiras, e casos de mulheres que reportaram sem encontrarem apoio institucional (pelo contrário, sentiram que elas é que ficaram malvistas), e ainda as que reportaram e houve alguma consequência: desde mudança de orientador ou professor (por exemplo, mudar o professor para outras turmas/horários) a casos de fim de contrato do assediador. O que notámos é que o conceito de vítima de assédio é entendido por algumas entrevistadas como sendo aplicável não apenas às mulheres assediadas, mas também às que se envolveram na clarificação dos casos.
Como se concretiza essa outra vitimização?
Tivemos entrevistadas que se sentiram prejudicadas por terem tentado investigar as situações, quer por causa do desgaste emocional (por exemplo, serem vistas por alguns colegas como não leais), que não lhes permitiu serem produtivas, do ponto de vista científico, quer por causa de consequências nefastas mais diretas para as suas carreiras (por exemplo, saírem de projetos ou terem de mudar de grupos de investigação liderados pelos homens alvo de queixa que assim exerceram represálias sobre as colegas que apoiaram as alunas que tinham denunciado).
Há casos em que gostariam de ter reagido de forma diferente?
Tivemos mulheres mais velhas que foram assediadas no início das suas carreiras e que refletiram sobre os mecanismos de que não dispuseram na altura e as consequências do seu silêncio e estratégias de evitamento (mudar de orientador, mudar de departamento ou mesmo de universidade). Não nos parece que considerem que deviam ter reagido de forma diferente, mas antes tentaram usar os seus casos pessoais para ilustrar um sistema laboral que acabava por ser complacente com o assédio e o abuso de poder e que coagia as vítimas ao silêncio como estratégia de sobrevivência na carreira. Uma entrevistada disse-nos algo do tipo "coragem não é atirarmo-nos de um penhasco", no sentido de ser preciso saber quando denunciar para não se ser duplamente penalizada e ver a carreira e aspirações profissionais destruídas.
E como veem a evolução na academia face a este fenómeno?
Tendem a convergir na perceção de que hoje é mais fácil reportar estes casos, ainda que muitas considerem os mecanismos insuficientes. De uma maneira geral, consideram que no passado era mais difícil reportar assédio sem serem fortemente penalizadas.
Notaram alguma culpabilização das vítimas?
Algumas participantes argumentam que o assédio sexual pode não ser fácil de identificar por causa da variedade de contactos sexuais que existem na academia. Por exemplo, algumas entrevistadas argumentam que é difícil identificar certos relacionamentos como sendo assédio por haver também muitas relações consensuais na academia, inclusivamente entre pessoas de diferentes gerações e graus de poder, e que, por vezes, essas relações "acabam muito mal", e algumas mulheres sentem-se então maltratadas e abusadas. Outras disseram-nos ter assistido a casos de estudantes que usavam o seu sex appeal junto dos professores e que não se pode ignorar como o sexo é usado por mulheres como trunfo nas suas ambições académicas. Ou seja, não notámos culpabilização das vítimas no sentido do "pôs-se a jeito", mas nalgumas participantes identificámos uma corresponsabilização de algumas mulheres pelo ambiente de "troca de favores sexuais" na academia sem que essas participantes equacionassem a naturalização do privilégio das hierarquias que poderão moldar essas "trocas de favores".
Há um perfil de assediador?
O padrão é a relação de poder. A maioria dos assediadores são superiores hierárquicos - orientadores, professores -, homens com poder a assediar mulheres mais novas e em situação hierárquica inferior, alunas de licenciatura, doutorandas ou mulheres em início de carreira. Também tivemos respostas que remetem para colegas na mesma categoria hierárquica e até, embora residualmente, casos de alunos que assediavam professoras.
E quanto ao género?
Em assédio sexual apenas encontrámos homens assediadores. Mas algumas das entrevistadas também falaram de situações de assédio moral em que eram mulheres a assediar.
Que ideia têm as entrevistadas do movimento #metoo?
De um modo geral, todas as entrevistadas consideram que o #metoo trouxe uma maior consciencialização para o problema do assédio sexual no mundo laboral, nomeadamente na academia. Algumas consideram que o #metoo comprovou o que já sabiam, mas outras referem que aprenderam muito com o #metoo, que não tinham consciência da dimensão do problema. Porém, estas convergências coexistem com grandes divergências quanto ao #metoo e seus efeitos. Há quem tenha uma opinião francamente positiva, considerando-o um ponto de viragem pela sua mediatização e dimensão internacional, mas também quem tenha opiniões mais cautelosas e menos entusiastas. Por exemplo, várias entrevistadas refletiram sobre as dinâmicas destes fenómenos de grandes dimensões que costumam ser acompanhados de backlash - como o que pode parecer um avanço dá às vezes lugar a fortes reações e retrocessos. Tivemos também respostas que mencionam exageros do movimento: considerar gestos despropositados mas inócuos como sendo assédio ou violência; o perigo de policiamento de qualquer comportamento; haver colegas homens com tanto receio que só já prestam atendimento com testemunhas ou de porta aberta. A nossa amostra espelha alguma da bipolarização da sociedade face ao #metoo.
Consideram haver necessidade de continuar este estudo?
Não podemos esquecer que se trata de um estudo exploratório, um pequeno projeto de apenas cinco meses com três investigadoras em dedicação parcial e que ouvimos apenas 18 académicas. Há uma variedade de questões que não abordámos ou que colocámos apenas parcialmente - ainda há muitíssimo para fazer. Como prioridade, consideramos que é importante continuar a estudar a questão do assédio sexual na academia, nomeadamente através de um inquérito a nível nacional, centrado quer nos/as estudantes, quer nos/as docentes e investigadores/as ou restantes funcionários/as. É também necessário realizar mais estudos sobre os mecanismos existentes, sobretudo nas instituições de ensino superior, e a sua eficácia na prevenção do problema.
Que tipo de questões ficaram por abordar?
Julgamos que merece especial atenção a análise do assédio sexual no contexto da gestão neoliberal da academia e da precariedade em que vive uma parte significativa do corpo docente e especialmente os/as investigadores/as. Muitos/as não têm sequer contratos de trabalho, mas bolsas de investigação temporárias, o que implica ainda maior vulnerabilidade. Trata-se de um sistema altamente hierarquizado e competitivo em que as pessoas dependem de quem tem poder para renovar contratos e bolsas, precisam de cartas de recomendação e precisam de estar associadas a projetos. Tudo isto pode criar dependências muito problemáticas e dar azo a ambientes muito tóxicos. É importante que este contexto seja analisado como sistema, não apenas para perceber e prevenir o assédio sexual, mas também o assédio moral, a apropriação do trabalho intelectual e várias formas de discriminação .