"Dizem-nos: 'Devem criticar dentro da faculdade'. Mas quando o fazemos somos castigados"
"Sinto uma identidade entre a minha situação e a do Miguel Lemos. Porque o processo disciplinar contra ele aparece na sequência de uma intervenção que fez no Conselho Pedagógico, e eu também fui alvo de um processo disciplinar por razões de exercício das minhas funções nos órgãos: critiquei o funcionamento da faculdade no Conselho Científico. Dizem-nos: "Devem criticar a faculdade dentro da faculdade". Mas quando o fazemos somos castigados."
As declarações são de Jorge Duarte Pinheiro, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, da qual foi diretor entre de 2014 a 2015. Em 2020, foi sujeito a um processo disciplinar depois de em 2019, conta, ter dito "no Conselho Científico [CC], do qual faço parte, que numa contratação de assistentes convidados não havia densificação, não havia referência aos curricula, e que isso era tanto mais complicado quando estavam em causa familiares de professores da faculdade."
A referência, como se tornaria público (houve várias notícias sobre o caso), era à contratação de Pedro Afonso Romano Martinez, neto do ex-professor da faculdade com o mesmo apelido que foi ministro de Salazar e filho de um atual professor catedrático, à época diretor da escola.
Na queixa, que teve provimento - a decisão, conhecida em setembro de 2021, foi de aplicar a Duarte Pinheiro uma repreensão escrita, suspensa por seis meses - o assistente Pedro Martinez acusa o professor de ter colocado em causa, e não apenas junto dos membros do Conselho Científico (refere também, por exemplo, uma publicação de Facebook partilhando uma notícia da Sábado sobre a sua contratação que Duarte Pinheiro comentou com a frase "amiguismos e retaliações na FDUL, importa que todos trabalhemos para que a nossa faculdade e o nosso país sejam de todos e não de um punhado de pessoas que se julgam acima de tudo e de todos") "a idoneidade e o mérito subjacente à [sua] contratação". E diz sentir-se até incomodado "pela mera presença do professor doutor Jorge Duarte Pinheiro, que sorri cinicamente sempre que o encontra nos corredores".
Estando a impugnar judicialmente o castigo, alegando que se trata de "uma violação manifesta da liberdade de expressão", Duarte Pinheiro considera que o resultado de processos disciplinares como os de que ele e Miguel Lemos são alvo é "viver-se o medo em todos os planos". Medo de que, sublinha, "há pessoas que tiram benefício. Há um sentimento de completa impunidade - ou se não é de impunidade é a ideia de que tudo isto passa e que a comunicação social se vai embora e pronto."
Como o DN noticiou esta sexta-feira, Miguel Lemos, autor das propostas de criação de uma comissão paritária de alunos e professores para investigar o assédio na escola e de um mecanismo de queixa específico - o qual, como noticiado pelo DN, resultou em 50 queixas "validadas" em apenas 11 dias, cuja existência a direção da escola participou ao Ministério Público - foi esta semana notificado de que lhe foi, por ordem do reitor da Universidade, instaurado um processo disciplinar.
Em causa está, em duas reuniões do Conselho Pedagógico (CP) - órgão do qual Lemos faz parte e em cujo âmbito apresentou as citadas propostas -, ter referido a existência de pressões sobre a direção da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa (AAFDL), por parte de docentes da FDUL, "para que determinados assuntos não fossem discutidos em público", o que considerou inaceitável.
A 2 de março, numa exposição entregue ao órgão na qual apresentava as propostas aludidas e narrava ter inquirido alguns alunos sobre a existência de assédio na faculdade (exposição apensa à ata nº 5 de 2022 do CP, que desde esta quinta-feira à tarde foi tornada pública), Miguel Lemos dizia: "Tive notícia de que alguns professores teriam abordado a direção da AAFDL, relativamente à discussão pública de casos de assédio na nossa faculdade. Permitam-me, quanto a este ponto, a ironia: ainda que todos os conselhos sobre o futuro profissional dos alunos sejam válidos, bem como preocupações com cuidados a ter na sua vida académica, estes "veja lá não se prejudique", estes "tenha cuidado há coisas de que é melhor não falar" no contexto de publicitação de casos de assédio moral e sexual só podem ser entendidos, e são, como formas de pressão e tentativa de encobrimento de uma realidade que, infelizmente, marca a vida académica da nossa escola. Estas abordagens são (...), elas mesmas, formas de assédio."
Na reunião seguinte, ocorrida a 7 de março, e na qual as suas propostas foram aprovadas, Lemos acabaria, como se refere na ata, por indicar quem seria o professor em causa. Fê-lo depois de o presidente do CP, António Barreto Meneses Cordeiro, ter perguntado "se algum dos presentes teria recebido pressões para encobrir algum caso de assédio sexual ou se tinha conhecimento de que alguém tivesse recebido pressões". Tendo Lemos respondido que sim e que "esses factos eram do conhecimento do presidente do conselho", como este negasse, o assistente lamentou que Meneses Cordeiro "tivesse afirmado que os factos por ele referidos não correspondiam à verdade", questionando a seguir: "Porque é que o professor Miguel Teixeira de Sousa me ligou no dia 2 de março às 16H45?"
A dedução é de que o telefonema em causa ocorreu porque o presidente do Conselho Pedagógico avisou Miguel Teixeira de Sousa das suspeitas de Lemos - facto que Meneses Cordeiro confirmou ao DN: "O Dr. Miguel Lemos passou-me uma determinada informação e as pessoas envolvidas disseram-me que não havia pressões."
Miguel Teixeira de Sousa admite, na queixa que apresentou (e à qual o DN teve acesso), ter falado com a presidente da AAFDL sobre o assunto assédio mas nega ter exercido qualquer pressão. Considerando que existiu uma "violação dos deveres de correção" por parte de Lemos que consubstancia uma ofensa à sua "honra e dignidade", a 17 de março apresentou uma participação disciplinar contra o assistente.
Jorge Duarte Pinheiro considera que a situação de Miguel Lemos é ainda mais grave que a sua: "Ele é assistente, tem um contrato, um vínculo precário, e é objeto de uma participação disciplinar de um dos professores mais graduados. O contrato dele é renovado em agosto. Quem vai renovar-lhe o contrato com um processo disciplinar? E vai ser muito difícil que as pessoas que vão ser arroladas como testemunhas venham a dizer a verdade." Suspira. "Fiquei chocadíssimo com isto. Acho que ele é muito corajoso. Nem temos uma conexão político-ideológica, mas há uma conexão de valores cívicos. Lamento muito que lhe estejam a fazer isto, e à minha faculdade, que está aprisionada por uma elite dirigente que perdeu o norte."
Sublinhando que "a faculdade foi fundada na Primeira República para acabar com os privilégios da monarquia", conclui: "O que temos está algo longe disso. O bom nome da faculdade defende-se com melhores comportamentos das pessoas que lá estão, não assim. Por exemplo esta semana estive numa reunião do Conselho Científico na qual se estava a discutir a situação da faculdade - a questão do assédio, o ambiente geral, a forma como a direção está reagir. E o presidente [do CC] disse que aquela conversa não constaria da ata. Claro que não posso aceitar isso."
A existência de pressões sobre os estudantes para não apresentarem queixa contra docentes, que foi discutida na citada reunião de 7 de março do Conselho Pedagógico, na qual foram relatados casos concretos, e que fontes do DN asseguram ter-se redobrado após a notícia pública sobre os casos de assédio denunciados, foi objeto de um comunicado da direção da faculdade a 22 de abril, no qual esta afirma "não ter conhecimento de docentes da faculdade que durante as aulas tenham desincentivado os alunos a apresentar queixas".
Confrontado pelo DN com a incongruência entre a afirmação da direção e o constante na ata da reunião de 7 de março, o presidente do Conselho Pedagógico reconhece que não comunicou as pressões relatadas na reunião à direção, sem conseguir explicar porquê. "Pois... Houve uma falha de comunicação. Mas eu não sei se devia ter comunicado."