Faculdade de Direito de Lisboa abre processo disciplinar a professor que propôs ação contra assédio 

O docente que propôs a criação do canal de queixa que resultou na apresentação de 50 denúncias de assédio em 11 dias está a ser alvo de ação disciplinar. Em causa ter referido, num órgão da faculdade, a existência de pressões sobre a Associação Académica para abafar assunto.
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Miguel Lemos, assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e autor das propostas de criação de uma comissão paritária de alunos e professores para investigar o assédio na escola e de um mecanismo de queixa específico - o qual, como noticiado pelo DN, resultou em 50 queixas "validadas" em apenas 11 dias, cuja existência a direção da escola participou ao Ministério Público - foi esta semana notificado de que lhe foi, por ordem do reitor da Universidade, instaurado um processo disciplinar.

Em causa está, em duas reuniões do Conselho Pedagógico (CP) - órgão do qual Lemos faz parte e em cujo âmbito apresentou as citadas propostas -, ter referido a existência de pressões sobre a direção da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa (AAFDL), por parte de um professor da FDUL, "para que determinados assuntos não fossem discutidos em público", o que considerou inaceitável.

A 2 de março, numa exposição entregue ao órgão na qual apresentava as propostas aludidas e narrava ter inquirido alguns alunos sobre a existência de assédio na faculdade (exposição apensa à ata nº 5 de 2022 do CP, que desde esta quinta-feira à tarde foi tornada pública), Miguel Lemos dizia: "Tive notícia de que alguns professores teriam abordado a direção da AAFDL, relativamente à discussão pública de casos de assédio na nossa faculdade. Permitam-me, quanto a este ponto, a ironia: ainda que todos os conselhos sobre o futuro profissional dos alunos sejam válidos, bem como preocupações com cuidados a ter na sua vida académica, estes "veja lá não se prejudique", estes "tenha cuidado há coisas de que é melhor não falar" no contexto de publicitação de casos de assédio moral e sexual só podem ser entendidos, e são, como formas de pressão e tentativa de encobrimento de uma realidade que, infelizmente, marca a vida académica da nossa escola. Estas abordagens são (...), elas mesmas, formas de assédio."

Na reunião seguinte, ocorrida a 7 de março, e na qual as suas propostas foram aprovadas, Lemos acabaria, como se refere na ata, por indicar quem seria o professor em causa. Fê-lo depois de o presidente do CP, António Barreto Meneses Cordeiro, ter perguntado "se algum dos presentes teria recebido pressões para encobrir algum caso de assédio sexual ou se tinha conhecimento de que alguém tivesse recebido pressões". Tendo Lemos respondido que sim e que "esses factos eram do conhecimento do presidente do conselho", como este negasse, o assistente lamentou que Meneses Cordeiro "tivesse afirmado que os factos por ele referidos não correspondiam à verdade", questionando a seguir: "Porque é que o professor Miguel Teixeira de Sousa me ligou no dia 2 de março às 16H45?"

A dedução é de que o telefonema em causa ocorreu porque o presidente do Conselho Pedagógico avisou Miguel Teixeira de Sousa das suspeitas de Lemos - facto que Meneses Cordeiro confirma ao DN.

Miguel Teixeira de Sousa admite ter falado com a presidente da AAFDL sobre o assunto assédio mas nega ter exercido qualquer pressão, considera que existiu uma "violação dos deveres de correção" por parte de Lemos, consubstanciando uma ofensa" à sua "honra e dignidade", pelo que a 17 de março apresentou uma participação disciplinar contra o assistente.

Na queixa, à qual o DN teve acesso, e na qual o relato dos factos quanto ao ocorrido na reunião do CP não coincide com o vertido na ata que só esta quinta-feira foi colocada no site da FDUL (é dito na queixa que Miguel Lemos indicou claramente o nome de Miguel Teixeira de Sousa como sendo do professor que teria pressionado a presidente da ssociação Académica, quando na ata este é mencionado por Lemos como autor de um telefonema) o professor catedrático diz ter falado, em fevereiro, com Catarina Preto - que a 12 de janeiro, em reunião do Conselho Pedagógico, denunciara a existência de casos de assédio sexual e moral de docentes sobre estudantes e um clima de medo que impedia os segundos de se queixarem, até por crerem que reinava a impunidade - comunicando-lhe ser seu conhecimento que "circulavam rumores na FDUL de situações de assédio de docentes a discentes". Ambos, relata o professor, terão "concordado que a situação era completamente inaceitável mas que, atendendo ao seu melindre, deveria ser tratada de forma apropriada". "Neste contexto", prossegue o relato do catedrático, "num espírito de total entendimento entre ambos, a Senhora Presidente [Catarina Preto] referiu que o assunto era suscetível de "arruinar a vida de qualquer um"".

O DN já havia confirmado, junto de terceiros, a existência da intervenção de Teixeira de Sousa junto de Catarina Preto, sendo assegurado que nela o docente em causa "se mostrou preocupado com a situação", referindo que "este tipo de casos podia pôr em causa o bom nome da faculdade", mas garantindo "estar solidário com a associação e os membros do Conselho Pedagógico", não sendo, segundo foi dito ao jornal, sentido "que ele estava a dizer que era melhor não avançar com nada."

Já o presidente do Conselho Pedagógico admite ao DN que Miguel Lemos lhe comunicou, antes da reunião de 2 de março, a existência da conversa de Teixeira de Sousa com a presidente da AAFDL. Mas assevera que a pergunta que dirigiu a todos os membros do CP na reunião seguinte, de 7 de março, questionando-os sobre se tinham conhecimento de pressões ou tinham sido pressionados, nada teve a ver com essa informação que Lemos lhe tinha dado sobre as pressões que acreditava terem sido exercidas sobre a presidente da Associação Académica.

Questionado por que motivo disse nessa altura não ter conhecimento dos factos a que Lemos aludia, explica que falou com Teixeira de Sousa e com Catarina Preto sobre o assunto: "O Dr. Miguel Lemos passou-me uma determinada informação e as pessoas envolvidas disseram-me que não havia pressões. Antes da reunião falei o Dr. Miguel Lemos e disse-lhe que as pessoas em causa negavam. A minha afirmação não é sobre não conhecer os factos - era sobre não conhecer pressões concretas."

Quanto a poder ser vista como uma pressão a menção de Teixeira de Sousa ao facto de o assunto assédio pôr em causa do bom nome da faculdade, Meneses Cordeiro reconhece: "Toda esta história põe em causa o bom nome da faculdade". O que não quer dizer, adverte, "que não se deva esclarecer tudo. Mas não sei que conversa existiu entre o professor e a presidente da AAFDL." Sobre se Teixeira de Sousa lhe tinha comunicado antecipadamente que queria falar com Catarina Preto, é pouco esclarecedor: "Não sei se já sabia que o professor ia falar com a associação. O professor Teixeira de Sousa quando falou comigo disse que o objetivo era apoiar a associação académica."

Na mesma reunião do Conselho Pedagógico de 7 de março foram relatadas, por vários membros do CP, situações que lhes haviam sido contadas por estudantes e que os primeiros consideraram configurar pressões. Segundo esses relatos, pelo menos dois docentes terão assegurado, durante aulas, que fazer queixa deles não servia de nada. Um desses docentes teria até dito que fora apresentada uma queixa contra si e que esta fora "liminarmente indeferida". Facto que, de acordo com o presidente do CP, é falso - não teria sido apresentada qualquer queixa com aquelas características.

Como o DN noticiou a 22 de abril, com base em reportes de pessoas conhecedoras do processo, este tipo de pressões ter-se-ão intensificado a partir da notícia deste jornal, no início do mês, sobre a existência do relatório que elenca 50 denúncias de assédio sexual e moral efetuadas através do canal aberto por proposta de Miguel Lemos. No mesmo dia (22 de abril) em que o DN deu nota destas pressões, a direção da FDUL afirmou, em comunicado, "não ter conhecimento de docentes da faculdade que durante as aulas tenham desincentivado os alunos a apresentar queixas".

Confrontado pelo DN com a incongruência entre a afirmação da direção e o constante na ata da reunião de 7 de março, o presidente do Conselho Pedagógico reconhece que não comunicou as pressões relatadas na reunião à direção, sem conseguir explicar porquê. "Pois... Houve uma falha de comunicação. Mas eu não sei se devia ter comunicado."

Nota: texto alterado às 13H45 de 29 de abril, para retificar a informação sobre a forma como, de acordo com a ata, o nome de Miguel Teixeira de Sousa surgiu na reunião de 7 de março do Conselho Pedagógico, assim como para explicitar a diferença existente entre a versão dos factos constante na queixa do professor catedrático e a que está na ata da reunião.

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