"Há medo e isso não mudou. Temos múltiplos relatos de pressões sobre alunos para não denunciarem"
"Disseram a alunos que não fazia sentido seguirem com as queixas, porque nada iria acontecer, não havia provas, não valia a pena perderem o seu tempo e da faculdade para chegar a nada. Temos múltiplos relatos dessas pressões, em sala de aula, por parte de assistentes e também professores."
A afirmação é de alguém que pede para ser identificado como "tendo conhecimento do processo". "O processo" refere-se ao sucedido nos últimos meses na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) com relação ao assunto assédio, moral e sexual, de docentes sobre alunos, desde que numa reunião do Conselho Pedagógico de 12 de janeiro a presidente da Associação Académica da faculdade (AAFDL), Catarina Preto, denunciou o problema. Na mesma altura, esta representante dos estudantes frisou que reinava o medo entre os alunos, que não avançavam com denúncias até por haver a ideia de que existia total impunidade.
As pressões descritas terão ocorrido, explica o interlocutor do DN, após este jornal ter, em notícia de 4 de abril, revelado que em 11 dias, de 14 a 25 de março, um canal criado para receção de denúncias anónimas de assédio na FDUL recebera 50 validadas como relevantes, dizendo respeito a 31 docentes.
"Este tipo de pressão já existia em relação às queixas pedagógicas, mas intensificaram-se quando a questão do assédio foi tornada pública", diz a mesma fonte, reconhecendo a inexistência de queixas formais sobre essas pressões. "Obviamente que não há. Os alunos têm medo. Estamos no final de abril e não se sentem à vontade para colocar em risco as avaliações."
Significa isso que a "cultura de terror" denunciada, como o DN noticiou, por docentes e pela AAFDL no Conselho Pedagógico (e negada pela diretora da faculdade, Paula Vaz Freire, ao jornal) permanece? "A associação e os conselheiros têm feito um trabalho extraordinário no acompanhamento das pessoas em concreto. Mas como se calcula estas coisas não se alteram de um dia para o outro, e não é por o assunto ser público que se tem notado uma grande vaga de denúncias. Há medo e não mudou."
As pressões em causa não se terão verificado junto de pessoas individualmente, mas de turmas inteiras, esclarece este "conhecedor do processo", que adianta ainda esperar que o Ministério Público (MP), ao qual foi entregue, pela direção da faculdade, o relatório referente às 50 denúncias (que não descreve situações concretas nem identifica os docentes; só uma pessoa tem conhecimento dos nomes), "tenha uma atitude proativa". "O MP olhará para o que é o relatório e para o que lá está e considerará decerto o que de melhor pode fazer com aquilo, mas tudo leva a crer que permitirá abrir um inquérito e investigar."
Também na reunião do Conselho Pedagógico de 7 de março, quando foi decidida a criação de uma comissão paritária de docentes e estudantes para investigar o assédio (a qual depois decidiu proceder à abertura do referido canal de denúncias), a questão das pressões sobre os alunos, que já na reunião anterior, de 2 de março, fora abordada, esteve a ser discutida. Isso mesmo é revelado na respetiva ata, que 44 dias depois ainda não está disponível no site do Conselho Pedagógico, mas à qual o DN teve acesso.
Um dos docentes, Miguel Lemos, a quem se deve a proposta, apresentada em reunião anterior (e aprovada a 7 de março), da criação da comissão paritária, de um manual de boas práticas específico sobre assédio e de um sistema de queixas, asseverou ter conhecimento de que existiram, por parte de um professor da FDUL, "pressões concretas" sobre a direção da AAFDL "para que determinados assuntos não fossem discutidos em público", o que considerava inaceitável. Acrescentou ainda que "esses factos eram do conhecimento do presidente do conselho", António Barreto Meneses Cordeiro.
Esta informação foi apresentada depois de Meneses Cordeiro ter perguntado "se algum dos presentes teria recebido pressões para encobrir algum caso de assédio sexual ou se tinha conhecimento de que alguém tivesse recebido pressões", garantindo que ele próprio não fora pressionado nem tinha "conhecimento de pressões concretas sobre terceiros".
Lamentando que o presidente "tivesse afirmado que os factos por ele referidos não correspondiam à verdade", Lemos acabaria por abandonar a reunião, mas não sem antes revelar o nome do professor que teria contactado a AAFD.
O DN confirmou junto de terceiras pessoas que esse contacto existiu, que teve lugar antes da reunião de 2 de março, e que nele o docente em causa "se mostrou preocupado com a situação", referindo que "este tipo de casos podia pôr em causa o bom nome da faculdade", mas assegurando "estar solidário com a associação e os membros do Conselho Pedagógico". As pessoas com quem falou, é dito ao DN, "não sentiram que ele estava a dizer que era melhor não avançar com nada."
Na mesma reunião foi discutido o conceito de assédio sexual, sendo reconhecida a necessidade de o definir, e dados exemplos de situações de assédio moral de que os conselheiros tinham conhecimento indireto.
Uma das docentes, Filipa Costa e Silva, "clarificou que teria relatos de situações que poderiam corresponder a situações de assédio", sendo citada na ata dando o seguinte exemplo: "Teria ocorrido, no passado, que alunos fossem apelidados de 'burros' pela circunstância de não terem resolvido casos práticos, bem como situações em que alunos tinham medo de comparecer em sede de aula prática, sob pena de serem frontalmente humilhados."
Uma estudante disse "serem recorrentes as situações de profundo desrespeito nas orais de melhoria, começando, desde logo, pelo desrespeito pelo tempo de quinze minutos exigidos regulamentarmente nas provas orais."
A isto reagiu outro professor, João Miranda, com indignação, defendendo que as provas orais deveriam ser repetidas se o tempo regulamentar não fosse respeitado.
Ainda de acordo com a ata, um dos representantes da AAFDL disse "que se tinha vindo a normalizar, com o desenrolar dos anos, a conduta de certos docentes", ou seja, que as respetivas práticas eram conhecidas, mas que "a faculdade teria demonstrado, à medida que ouvia esses relatos, um certo desinteresse em resolvê-los e tratá-los de acordo com a importância que mereciam." E opinou que o momento presente seria o ideal para que essas questões fossem tratadas, por "um imperativo de justiça, após tantos anos em que matérias desta natureza não teriam sido tratados de forma devida."
Adiantou ainda que a normalização aludida "poderia ter contribuído para uma quebra de confiança dos alunos em relação aos órgãos de gestão da faculdade".
O presidente do Conselho Pedagógico, Meneses Cordeiro, assumiu que os três canais existentes para receção de queixas - o próprio conselho, a Direção e o Provedor do Estudantes - "não estavam a ser utilizados pelos Alunos para relatar casos de assédio sexual e moral", e que sem queixas a direção da FDUL não podia instaurar processos disciplinares. Também associou "as dificuldades sentidas na elaboração de queixas pedagógicas" à "inexistência de um código de conduta ou de um manual de boas práticas pedagógicas, nos quais os alunos pudessem fundamentar as suas queixas."
Perante esta perspetiva, João Miranda considerou estar-se "a colocar um ónus injustificado nos alunos", concluindo: "Em face dos factos conhecidos, os órgãos da faculdade deveriam tomar posição, mesmo não existindo queixas formais e não, sublinhou, colocar o ónus nos alunos."